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Romeu e Julieta

Capítulos 6

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Romeu e Julieta ATO IV

Cena I

 

Verona. Cela de Frei Lourenço. Entram ƒrei Lourenço e Páris.

 

FREI LOURENÇO — Quinta-feira, senhor? O prazo é curto.

PÁRIS — Foi o pai Capuleto que assim quis, sem que eu propenso esteja para frouxa deixar a pressa dele.

FREI LOURENÇO — Mas dissestes que não sabeis ainda o que a donzela sobre isso resolveu. Esse caminho não o considero certo; não me agrada.

PÁRIS — Chora sem pausa a morte de Tebaldo. Por essa causa, pouco conversamos a respeito de amor; não sorri Vênus numa casa de lágrimas. Agora, senhor, ficai sabendo que o pai dela considera nocivo ela entregar-se desse modo à tristeza, e tem em sua sabedoria posto pressa às núpcias, para sustar a inundação das lágrimas.  O  que  na  solidão  toma  incremento, pode minguar na vida em sociedade. Sabeis, pois, as razões de tanta pressa.

FREI LOURENÇO (à parte) — Quisera não saber quais os motivos que à dilação obrigam. — Vede, conde: aí vem a dama em direção à cela.

(Entra Julieta.)

PÁRIS — Feliz encontro, minha esposa e dona!

JULIETA — Assim poderá ser, quando casar-me.

PÁRIS   —   O   "poderá"  será   na   quinta-feira próxima.

JULIETA — O que tiver de ser, será.

FREI LOURENÇO — É um dito muito certo.

PÁRIS — Aqui viestes para vos confessar com este monge?

JULIETA — Dar-vos uma resposta, já seria confessar-me convosco.

PÁRIS — Revelai-lhe que me tendes amor. JULIETA — A vós diria que lhe dedico amor.

PÁRIS — Do mesmo modo lhe direis que me amais, tenho certeza.

JULIETA — Se assim fosse, teria mais valia não vos dizer no rosto, mas nas costas.

PÁRIS — Pobre alma, o rosto as lágrimas te ofendem.

JULIETA — É vitória pequena para as lágrimas, pois, antes disso, ele já era feio.

PÁRIS — Mais o ofendeste agora, assim falando, do que com tuas lágrimas.

JULIETA — Calúnia não foi, senhor; só disse o que é verdade.

PÁRIS — Teu rosto é meu; com isso o caluniaste.

JULIETA — Pode ser, que a mim mesma não pertence. Tendes vagar agora, santo padre, ou voltar devo à tarde, para a missa?

FREI LOURENÇO — Tenho vagar agora, minha filha pensativa. Senhor, será preciso que nos deixeis sozinhos.

PÁRIS — Deus não queira que eu possa perturbar a devoção! Julieta, quinta-feira, bem cedinho, hei de vos despertar. Até esse instante, adeus: Ficai com este beijo pio. (Sai.)

JULIETA — Oh! fecha a porta logo! E, após a teres fechado, vem também chorar comigo. Já não há esperança, nem remédio, não há socorro algum.

FREI LOURENÇO — Ó Julieta! já sei do teu desgosto. Ele ultrapassa de muito meus espíritos. Disseram-me que vais casar na quinta-feira próxima com o Conde Páris, sem que nada possa adiar a cerimônia.

JULIETA — Não me fales, padre, no que soubeste a esse respeito, se o meio não disseres de evitá-lo. Se em toda tua ciência não achares nenhum recurso, ao menos chamai sábia minha resolução, pois esta faca já já me ensejará remédio pronto. Meu coração e o de Romeu reunidos foram por Deus; as mãos tu nos juntaste. Antes, pois, que esta mão, por ti fechada na de Romeu, possa servir de timbre para outra transação, ou que o meu fido coração, com perfídia revoltosa, corra para outro, assim os dois liquido. Por tudo isso, com tua experiência, dá-me logo um conselho. Do contrário, verás como esta faca sanguinária de árbitro vai servir entre mim própria e a minha dor imensa, decidindo sobre o que a autoridade de teus anos e de tanto saber não conseguiram levar a termo honroso. Não retardes a resposta. Viver me causa tédio, se falar não me vieres do remédio.

FREI LOURENÇO — Pára, filha! Vislumbro uma esperança, mas a tal ponto desesperadora, como é desesperado o que queremos impedir que aconteça. Se energia tens suficiente para suicidar-te, só para a mão não dar ao Conde Páris, será melhor, então, que te resolvas a empreender algo que suicídio lembra, para afastar o opróbrio, assim lutando com a morte, para dela te furtares. Se ousares isso, arranjarei os meios.

JULIETA — Oh! mandai que eu me jogue das ameias daquela torre, mas de casamento com o conde não faleis; ou concitai-me a andar pelas estradas de assaltantes, ou a esconder-me em ninhos de serpentes; amarrai-me com ursos rugidores; numa carneira me fechai à noite, cheia de ossos humanos, que se choquem, de tíbias negras, crânios sem mandíbulas; mandai-me entrar num túmulo recente, para esconder-me, ao lado do defunto, sob sua própria mortalha; coisas essas que, só de ouvir, tremer já me fizeram. Sem a menor vacilação, sem medo, tudo farei, contanto que prossiga como esposa sem mancha de quem amo.

FREI LOURENÇO — Escuta, então: vai para casa, mostra-te alegre e dize que disposta te achas a desposar o conde. Quarta-feira é amanhã; amanhã, à noite, deita-te sozinha, sem que fique a ama no quarto. Toma este frasco, e quando te deitares em tua cama, bebe seu conteúdo, que pelas veias, logo, há de correr-te humor frio, de efeito entorpecente, sem que a bater o pulso continue em seu curso normal, parando logo. Calor nenhum nem hálito tua vida poderão atestar; mudadas ficam essas rosas das faces e da boca em cinza desmaiada, a cair vindo as janelas dos olhos, como quando fecha o dia da vida a morte escura. Do maleável poder os membros todos ficando, então, privados, hão de frios e rígidos tornar-se como a morte. Vinte e quatro horas ficarás com esse tétrico aspecto da engelhada morte, para acordar como de um doce sono. Quando, portanto, cedo vier o noivo despertar-te do leito, estarás morta. Então — como é costume em nossa terra — com belas vestes, num esquife aberto, posta serás no mesmo antigo túmulo em que toda a família Capuleto tem sido sepultada. Nesse em meio, antes de despertares, Romeu há de, por minhas cartas, conhecer o que houve e virá para cá. Aguardaremos, eu e ele, que despertes, conduzindo-te Romeu, na mesma noite, para Mântua. Do opróbrio ameaçador esse projeto te livrará, se o medo feminino ou o capricho volúvel, à última hora, não te privarem do valor consueto.

JULIETA — Dai-mo! dai-mo! e vereis se tenho medo.

FREI   LOURENÇO    —  Eis   aqui.   Parti  logo  e conservai-vos     nessa     resolução.    Vou    mandar prestes a Mântua um portador com uma carta de minha parte para teu marido.

JULIETA     —   Triunfe   o    amor,   e   eis    tudo resolvido. Adeus, meu caro padre. (Saem.)

 

 

Cena II

 

O mesmo, Sala em casa de Capuleto. Entram Capuleto, senhora Capuleto, ama e criados.

 

CAPULETO — Convidai as pessoas desta lista. (Sai o criado.) E tu, maroto aí! Vai contratar- me vinte hábeis cozinheiros.

SEGUNDO CRIADO — Não arranjareis nenhum cozinheiro ruim, senhor, porque eu me incumbirei de verificar se eles sabem lamber os dedos.

CAPULETO — E de que modo conseguirás isso?

SEGUNDO CRIADO — Ora, senhor, o cozinheiro que não sabe lamber os dedos, não presta. Por isso, deixarei de trazer os que não souberem fazê-lo.

CAPULETO — Está bem; vai logo. (Sai o segundo criado.) Vai faltar muita coisa; o tempo é curto. Quem saberá dizer-me se Julieta foi à cela do monge?

AMA — Foi, realmente.

CAPULETO — Talvez ele lhe dê um bom conselho. É uma rapariguinha cabeçuda.

AMA — Ei-la contente; vem da confissão. (Entra Julieta.)

CAPULETO — Então, cabeçudinha? Onde estivestes saracoteando?

JULIETA — Onde aprendi, realmente, a arrepender-me do pecado grave de desobedecer a vossas ordens, tendo-me frei Lourenço, esse santo homem, ordenado que viesse aqui prostrar- me para pedir perdão. Perdão vos peço. De hoje em diante sereis meu guia em tudo.

CAPULETO — Ide chamar o conde; contai-lhe isso. Será firmado o enlace amanhã cedo.

JULIETA — Vi o conde na cela de Lourenço, tendo-lhe dado tudo o que é possível conceder dentro da área da modéstia.

CAPULETO — Isso me alegra muito. Bem; levanta-te. Assim vai tudo bem. Vou ver o conde. Com a breca! Olá, maroto! vai buscá-lo. Deus louvado. Esse frade reverendo, toda a cidade o tem em grande estima.

JULIETA — Quereis, ama, ir comigo até o meu quarto para escolhermos juntas os enfeites que mais próprios achardes para a festa?

SENHORA CAPULETO — Não; até quinta- feira há muito tempo.

CAPULETO — Vai, ama; vai com ela. Nós iremos até à igreja amanhã.

(Saem Julieta e a ama.)

SENHORA CAPULETO — Vão faltar provisões, e é quase noite.

CAPULETO — Oh diabo! Vou mexer-me; e tudo, tudo, mulher, termina bem, posso afirmar- te. Vai ajudar Julieta nos enfeites. Deixem-me só; hoje não vou deitar-me. Por esta vez serei dona de casa. Olá, rapazes! Qual! saíram todos. Irei sozinho ver o Conde Páris, para animá-lo para amanhã cedo. O coração por demais leve sinto desde que essa menina criou juízo.

(Saem.)

 

 

Cena III

 

O mesmo. Quarto de Julieta. Entram Julieta e a ama.

 

JULIETA — Sim, estas são as peças mais bonitas. Mas, gentil ama, deixa-me esta noite; desejo ficar só, pois necessito de rezar muito, para que consiga fazer sorrir o céu para o meu lado, pois bem sabeis: tenho a alma atormentada e cheia de pecados.

(Entra a senhora Capuleto.)

SENHORA CAPULETO — Ocupada bastante, não? Necessitais de mim?

JULIETA — Não, senhora; escolhemos, tão- somente, quanto nos pareceu mais necessário para amanhã vestir na cerimônia. Assim, vos peço me deixeis sozinha, dormindo a ama esta noite em vosso quarto, pois sei que vos achais assoberbada de ocupações para esta festa súbita.

SENHORA CAPULETO — Boa noite, então. E tu, podes deitar-te; não temos precisão de teus serviços.

(Saem a senhora Capuleto e a ama.)

JULIETA — Adeus. Deus sabe quando nos veremos outra vez. Pelas veias me passeia um medo frio e lânguido, que quase deixa o calor da vida inteiriçado. Vou chamá-los de novo para darem-me coragem. Ama!... Mas, por que vir cá? Precisarei representar sozinha meu terrível papel. Vamos, frasquinho. E se esta droga não fizer efeito? Terei de me casar amanhã cedo? Não; isto o impedirá. Fica aqui perto. (Põe de lado um punhal.) E se for um veneno que esse frade com astúcia me deu para matar-me, temendo o opróbrio que podia vir-lhe do casamento, por me haver casado com Romeu antes disso? Sinto medo. Contudo, quero crer, não o faria, pois como santo é tido há muito tempo. Não devo ter tão baixo pensamento. E se, depois de estar na sepultura, eu vier a despertar, sem que Romeu chegue para salvar-me? Oh caso horrível! Não ficarei asfixiada dentro da sepultura, cuja boca imunda não respira ar sadio, e, assim, morrendo sufocada sem vir o meu Romeu? Ou se eu viver, não será mui plausível que aquela imagem de negror e morte, associada ao pavor do próprio ponto — um sepulcro, carneira onde há centenas de meus antepassados; onde se acha desde pouco Tebaldo ensangüentado, a decompor-se em seu sudário branco; onde, assim dizem, em determinadas horas da noite espíritos vagueiam?... Ai! ai de mim! Pois não será possível que eu venha a despertar antes do tempo?... Aquele cheiro repugnante, os gritos que como o das mandrágoras, ao serem arrancadas da terra, influem loucura em todos quantos porventura os ouvem... Ao despertar não ficarei demente no meio desses medos pavorosos, pondo-me, louca, a remexer nos ossos de meus antepassados, e a puxar de seu lençol Tebaldo mutilado? Ou, tomada de fúria, com um osso de um dos meus bisavós, que irá servir-me de clava não farei saltar meu cérebro desesperado? Oh! vede! o espírito parece de meu primo, que anda em busca de Romeu, que espetou seu pobre corpo na ponta do punhal. Pára, Tebaldo! Romeu, aqui! Bebo isto por tua causa.

(Cai sobre o leito, para dentro das cortinas.)

 

 

Cena IV

 

O mesmo. Sala da casa de Capuleto. Entram a senhora Capuleto e a ama.

 

SENHORA CAPULETO — Ama, toma estas chaves e nos traze mais temperos e cheiro.

AMA — Os pasteleiros querem marmelo e tâmara.

(Entra Capuleto.)

CAPULETO — Depressa! Mexam-se! Vamos! O segundo galo já cantou e o sinal de apagar fogo há muito já foi dado. São três horas. Cuida dos bolos, minha boa Angélica, sem poupar coisa alguma.

AMA — Ide, ide embora, metediço; o lençol está chamando. Por minha fé, assim ficais doente, por haverdes velado a noite toda.

CAPULETO — Nem um pouquinho. Ora essa! Muitas noites já passei acordado por motivos bem menores, sem ter ficado doente.

SENHORA CAPULETO — É certo, em vossa mocidade andáveis a caçar ratos; mas agora eu tomo sobre mim o trabalho de poupar-vos de tais caçadas.

(Saem a senhora Capuleto e a ama.)

CAPULETO — Oh ciúmes! ciúmes! (Entram três ou quatro criados, com espetos, achas de lenha e cestos.) Amigos, que levais aí dentro?

PRIMEIRO CRIADO — Coisas que o cozinheiro reclamou, senhor; não sei bem o que seja.

CAPULETO — Pressa! pressa! (Sai o primeiro criado.) e tu, maroto, traze lenha seca; Pedro pode indicar onde é o depósito.

SEGUNDO CRIADO — Tenho cabeça para achar a lenha; não vou incomodar para isso o Pedro. (Sai.)

CAPULETO — Raios! Boa resposta! O sem- vergonha tem gênio alegre, ah! ah! Dará bom cepo. Por minha fé, já é dia; mais um pouco e o conde chegará mais os seus músicos. Foi o que ele que disse. (Ouve-se música..) Ei-lo! Já o ouço. Ama! Mulher! Estou chamando. Olá! (Volta a ama.) Vai acordar Julieta e prepará-la. Vou conversar com Páris. Toda pressa! Mais pressa nisso! O noivo já está pronto. Mais pressa! digo.

(Saem.)

 

 

Cena V

 

O mesmo. Quarto de Julieta. (Entra a ama.)

 

AMA — Senhora, olá! Julieta! É quase certo que ainda esteja a dormir. Eh, ovelhinha! Então, senhora? Então? Que dorminhoca! Então, amor? Senhora! Estou chamando... Coraçãozinho! Noiva!... Como! Muda? Agora desforrais a vossa parte, dormindo uma semana; mas garanto-vos que na noite que vem o Conde Páris repouso não terá, porque repouso também não possais ter. Deus me perdoe. Santa Virgem e amém! Que sono calmo! Mas preciso acordá-la. Olá, senhora! Que o conde venha vos tirar da cama, e hei de vos espantar. Não falei certo? Como assim? Já vestistes toda a roupa, e outra vez a dormir? Vou despertá-la, Senhora! Olá!... Oh Deus!... Socorro! A patroa está morta!... Aqui!... Socorro! Oh dia triste! Assim nunca eu nascesse. Aqua vitae! Senhor! Senhora!... Acudam!..

(Entra a senhora Capuleto.)

SENHORA CAPULETO — Que barulheira é essa?

AMA — Oh dia triste!

SENHORA CAPULETO — Que aconteceu? AMA — Olhai, senhora... Oh dia!

SENHORA CAPULETO — Oh! minha única filha! Minha filha! Reanima-te, olha para mim, ou deixa-me morrer também contigo. Aqui! Socorro! Vai chamar gente!

(Entra Capuleto.)

CAPULETO — Que vergonha! Trazei Julieta logo; o noivo já chegou.

AMA — Está sem vida, morta, sem vida! Oh dia desgraçado!

SENHORA CAPULETO — Oh que dia! Morreu!

Morreu! Morreu!

CAPULETO — Deixai-me vê-la. Oh dor! Já está gelada. O sangue está parado; os membros, duros. Estes lábios e a vida há muito tempo separados já estão. A morte se acha sobre ela como geada mui precoce sobre a flor mais gentil de todo o campo.

AMA — Oh dia lamentável!

SENHORA CAPULETO — Oh tristeza!

CAPULETO — A morte que a tirou de mim com o fito de fazer-me gemer, a língua me ata, não me deixando pronunciar palavra.

(Entram ƒrei Lourenço e Páris, com músicos.)

FREI LOURENÇO — A noiva já está pronta para a igreja?

CAPULETO — Sim, para ir para a igreja, sem que nunca possa de lá voltar. Ó filho, a morte, na véspera do dia de tuas núpcias, deitou-se com tua noiva; é minha herdeira; cortejou minha filha. Morrer quero, para levar à morte o que possuo: vida, bens; tudo é dela.

PÁRIS — Quis tanto ver a face deste dia, para enfim contemplar este espetáculo?

SENHORA CAPULETO — Dia infeliz, maldito, desgraçado! A hora mais triste que já viu o tempo em toda a sua peregrinação comprida e laboriosa. Uma só filha, uma só, pobre filha, e tão amada, para gozo e consolo um ser apenas, e a cruel morte arrancar-ma, assim, da vista

AMA — Oh dia triste! Oh dia triste! Oh dor! O dia mais escuro e lamentável que eu vi em toda. a vida. Oh dia triste! Oh dia odioso! Oh dia! Oh dia triste Nunca vi dia de tão densas trevas. Oh dia triste! Oh dia!

PÁRIS — Ludibriado, ofendido, separado desprezado, destruído... Morte odiosa, ludibriado por ti, por ti, cruel morte, arruinado de todo. Oh amor! Oh vida...! Não, vida não: amor na própria morte!

CAPULETO — Odiado, desprezado, desolado, martirizado, morto! Inconsolável tempo, por que motivo vieste agora matar, matar nossa solenidade? Oh filha! Filha, não: alma querida! Já não vives! morreste! Ah! minha filha já não vive e, com ela, sepultada vai ser minha alegria.

FREI LOURENÇO — Calma! peço-vos; a cura da desordem vir não pode da desorientação. Tal como vós, tinha o céu parte nesta bela criança. Agora o céu tem tudo, o que é, por certo, melhor para a donzela. Não vos fora possível subtrair da morte a parte que tínheis nela, mas o céu à dele vida eterna vai dar. O que queríeis era vê-la elevada; todo o vosso céu consistia justamente nisso. E agora a lastimais, vendo-a exaltada, tão acima das nuvens, no alto céu? Com vosso amor amais a vossa filha tão mal que vos mostrais desesperados por sabê-la tão bem? As bem casadas não são as que assim vivem muito tempo; mas bem casada está quem morre cedo. Interrompei o pranto; sobre o belo corpo espalhai bastante rosmaninho, e, tal como é de praxe, em suas vestes mais vistosas levai-o para a igreja.

Embora chorar mande a natureza, ri a razão ao choro da tristeza.

CAPULETO — Tudo o que havia para o festival usado ora vai ser no funeral. Os instrumentos viram melancólicos sinos; nosso festim, jantar funéreo; nossos hinos solenes, puras nênias; as flores nupciais irão de enfeite servir para o cadáver, transmudando-se, assim, em seu contrário as coisas todas.

FREI LOURENÇO — Retirai-vos, senhor; acompanhai-o, minha senhora; e vós, conde, também. Que todos se preparem para o belo corpo levar à tumba. Porventura o céu vos pune por qualquer maldade; não o irriteis, pois essa é a sua vontade.

(Saem Capuleto, a senhora Capuleto, Páris e monge.)

PRIMEIRO MÚSICO — Por minha fé, podemos guardar as gaitas e ir embora.

AMA — Ah! meus homens, guardai-as, guardai-as, que isso é um caso doloroso!

PRIMEIRO MÚSICO — Oh! é certo; poderia ser melhor.

(Entra Pedro.)

PEDRO — Músicos! Olá! “Alegra-te, coração! Alegra-te, coração!” Se quereis que eu viva, tocai “Alegra-te coração!”

PRIMEIRO MÚSICO — Por que “Alegra-te, coração?”

PEDRO — Oh! músicos, porque meu próprio coração toca “O coração me pesa de tristeza”. Oh! tocai uma litania alegre, para reconfortar-me.

SEGUNDO MÚSICO — Não, nada de litanias; não é hora de tocar música.

PEDRO — Então não quereis tocar? MÚSICOS — Não.

PEDRO — Nesse caso vou tratar-vos como o mereceis.

PRIMEIRO MÚSICO — De que modo pretendes tratar-nos?

PEDRO — Não será com dinheiro, é claro; mas com pilhérias. Vou arranjar-vos um arranhador de rabeca.

PRIMEIRO MÚSICO — Nesse caso eu arranjarei para ti um servente de cozinheiro.

PEDRO — E eu vos atirarei na cabeça a faca do servente de cozinheiro. Eu sou assim; não levo semínimas para casa. Vou fazer de vós ré e fá. Tomastes nota?

PRIMEIRO MÚSICO — Se de nós fizerdes ré e fá, viraremos notas.

SEGUNDO MÚSICO — Por obséquio, por obséquio: esconde essa faca e mostra o espírito.

PEDRO — Tomai cuidado com meu espirito! Vou malhar-vos com meu espírito de aço e embainhar minha faca. Respondei-me como homens: Quando a dor e a tristeza libertinas me oprimem a cabeça e o coração, a música de notas argentinas... Por que “notas argentinas”? Por que “música de notas argentinas”? Que dizeis a isso, Simão Catling?

PRIMEIRO MÚSICO — Ora, senhor, porque a prata tem um som agradável.

PEDRO — Tolice! Que pensais, Hugo Rabeca?

SEGUNDO MÚSICO — Penso que “notas argentinas” significam que os músicos tocam suas notas para adquirir prata.

PEDRO — Oh! peço perdão. E sois cantores! Vou dar a explicação por vós. A frase “música de notas argentinas” significa que os músicos nunca vêem ouro com suas notas...a música de notas argentinas com seu poder me deixa outra vez são.

PRIMEIRO MÚSICO — Que sujeito pestilencioso!

SEGUNDO MÚSICO — Que se enforque! Vamos; entremos, para assistir ao enterro e esperar pelo jantar.

(Saem.)

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