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A Revolução dos Bichos

Capítulos 10

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A Revolução do Bichos Capítulo 05

Com a chegada do inverno, Mimosa tornou-se cada vez mais importuna. Todas as manhãs atrasava-se para o trabalho e dava a desculpa de dores misteriosas, embora gozasse de excelente apetite. A qualquer pretexto largava o trabalho e ia para o açude, em cuja beira permanecia admirando a própria imagem refletida na água. Corriam também boatos de maior seriedade. Um dia, quando Mimosa entrou no pátio, toda contente, sacudindo a cauda e mascando um talo de feno, Quitéria abordou-a. 

“Mimosa”, disse ela, “tenho um assunto muito sério para tratar. Hoje de manhã vi você olhando por cima da sebe que separa a nossa granja de Foxwood. Do outro lado estava um empregado do senhor Pilkington. E ele — embora eu estivesse longe, tenho quase certeza de que vi isso — falava com você e fazia festa em seu focinho. Que quer dizer isso, Mimosa?” 

“Ele não fez! Eu não estava! Não é verdade!”, gritou Mimosa, agitando-se e escarvando a terra. 

“Mimosa! Olhe nos meus olhos. Você me dá sua palavra de honra de que o homem não a tocou no focinho?” 

“Não é verdade!”, repetiu Mimosa, sem olhar Quitéria de frente, depois virou-se e galopou para o campo. 

Quitéria teve uma ideia. Sem dizer nada a ninguém, foi à baia de Mimosa e virou a palha com o casco. Ali estavam, escondidos, um montinho de torrões de açúcar e vários novelos de fitas de diversas cores. 

Três dias mais tarde, Mimosa desapareceu. Durante algumas semanas ninguém teve notícias de seu paradeiro, até que os pombos trouxeram o informe de que a haviam visto na parte mais afastada de Willingdon, atrelada a uma bonita charrete vermelha e preta, em frente a uma taverna. Um homem gordo, de rosto vermelho, calças xadrez e polainas, com todo o tipo de estalajadeiro, passava-lhe a mão no focinho e dava-lhe torrões de açúcar. Estava de pelo bem tosado e usava uma fita escarlate no topete. Parecia muito satisfeita, disseram os pombos. Os bichos nunca mais falaram em Mimosa. 

Em janeiro, o tempo piorou terrivelmente. A terra, dura como ferro, não permitia o trabalho no campo. Houve muitas reuniões no celeiro grande, e os porcos passaram ao planejamento dos trabalhos a realizar na estação seguinte. Ficara acertado que os porcos, sendo manifestamente mais inteligentes que os outros animais, decidiriam todas as questões referentes à política agrícola da granja, embora suas decisões devessem ser ratificadas pelo voto da maioria. Essa combinação teria funcionado muito bem, não fossem as disputas entre Bola-de-Neve e Napoleão. Esses dois discordavam em todos os pontos passíveis de discordância. Se um propunha o aumento da área de plantio de cevada, era certo que o outro proporia uma área maior para o cultivo de aveia, e se um dissesse que tais e tais lotes eram ótimos para plantar repolho, o outro diria que só prestavam para nabos. Cada qual tinha seus seguidores, e havia debates violentos. Nas reuniões, Bola-de-Neve frequentemente obtinha a maioria, por seus discursos brilhantes, porém Napoleão era o melhor na cabala de apoio durante os intervalos. Obtinha sucesso especial com as ovelhas. Ultimamente elas haviam criado o hábito de balir “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” em ocasiões próprias ou impróprias, e muitas vezes interrompiam a reunião dessa maneira. Notou-se que mostravam especial disposição de atacar o “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” justo quando Bola de-Neve chegava a um momento crucial de seus discursos. Bola de-Neve estudara atentamente alguns números atrasados da revista O Agricultor e o Criador de Gado, encontrados na casa-grande, e andava com a cabeça cheia de projetos de invenções e melhoramentos. Falava com grande conhecimento de causa sobre drenagens, ensilagem, escórias básicas, e havia elaborado um complexo esquema segundo o qual os bichos evacuariam diretamente no campo, em pontos diferentes cada dia, para economizar o trabalho do transporte de esterco. Napoleão não fazia projetos próprios, apenas dizia com toda a calma que os de Bola-de Neve não dariam em nada e parecia aguardar sua vez. De todas as divergências, porém, nenhuma foi tão séria quanto a do moinho de vento. 

Não muito longe das casas havia um outeiro que era o ponto mais alto da granja. Depois de realizar uma pesquisa no solo, Bola-de Neve declarou ser o local ideal para a construção de um moinho de vento que poderia acionar um dínamo e suprir de energia elétrica toda a granja. As baias teriam luz e aquecimento no inverno, haveria força para uma serra circular, para moagem de cereais, para o corte da beterraba de forragem e para um sistema de ordenha elétrica. Os animais nunca tinham sequer ouvido falar nessas coisas (pois a granja era antiquada, com aparelhagem das mais primitivas) e escutaram boquiabertos Bola-de-Neve fazer desfilar como por encanto, ante sua imaginação, as figuras dos aparelhos mais espetaculares, máquinas que fariam todo o serviço em seu lugar, enquanto eles aproveitariam a folga pastando ou cultivando a mente através da leitura e da conversação. 

Em poucas semanas, o projeto de Bola-de-Neve para o moinho de vento ficou pronto. Os detalhes mecânicos foram retirados principalmente de três livros que haviam pertencido ao sr. Jones — Mil coisas úteis para sua casa, Seja o seu próprio pedreiro e Eletricidade para principiantes. Bola-de-Neve utilizou como estúdio um galpão que antes abrigara incubadoras e cujo piso era de madeira lisa, própria para desenhar. Lá permanecia horas a fio, com os livros abertos sob o peso de uma pedra e uma barra de giz entre as duas pontas do casco. Andava lépido para lá e para cá, riscando linhas e mais linhas e soltando guinchos de entusiasmo. 

Aos poucos o projeto foi se transformando numa complicada massa de manivelas e engrenagens que cobria quase metade do assoalho, e que os outros animais achavam completamente ininteligível — mas impressionante. Pelo menos uma vez por dia, cada um vinha olhar os desenhos de Bola-de-Neve. Até as galinhas e os patos apareciam, pisando com grande dificuldade para não estragar os riscos de giz. Apenas Napoleão permaneceu desinteressado. Havia se declarado contra o moinho de vento desde o início. Um dia, entretanto, chegou de surpresa para ver o projeto. Caminhou pesado em volta do galpão, olhou detidamente cada detalhe do desenho, farejou-o uma ou duas vezes, depois deteve-se a contemplá-lo por alguns instantes pelo canto dos olhos; então de repente levantou a pata, urinou sobre o projeto e saiu sem proferir palavra. 

A granja estava profundamente dividida com respeito ao moinho de vento. Bola-de-Neve não negava que sua construção era um empreendimento difícil. Seria necessário carregar pedras e transformá-las em paredes, depois construir as pás, e por fim haveria necessidade de dínamos e fios (onde seriam encontrados, Bola-de-Neve não dizia). Mas afirmava que tudo poderia ser feito em um ano. Depois disso, dizia, tanto trabalho seria poupado que bastariam apenas três dias de trabalho por semana. Napoleão, por seu lado, argumentava que a grande necessidade do momento era aumentar a produção de alimentos, e que eles morreriam de fome se perdessem tempo com o moinho de vento. Os animais dividiram se em duas facções que se alinhavam sob os dísticos: “Vote em Bola-de-Neve e na semana de três dias” e “Vote em Napoleão e na manjedoura cheia”. Benjamim foi o único animal que não tomou partido. Recusava-se a crer, tanto em que haveria fartura de alimento como em que o moinho de vento economizaria trabalho. Moinho ou não moinho, dizia ele, a vida seguiria como sempre — ou seja, mal. 

Além da disputa sobre o moinho de vento, havia o problema da defesa da granja. Eles bem sabiam que, embora os humanos tivessem sido derrotados na Batalha do Estábulo, poderiam fazer outra tentativa, mais em força, para retomar a granja e restaurar Jones. Tinham as melhores razões para tentar, pois a notícia da derrota se espalhara por todo o interior e tornara os animais das granjas vizinhas mais rebeldes do que nunca. Como de hábito, Bola de-Neve e Napoleão não estavam de acordo. Segundo Napoleão, o que os animais deveriam fazer era conseguir armas de fogo e instruir-se em seu emprego. Bola-de-Neve achava que deveriam enviar mais e mais pombos e provocar a rebelião entre os bichos das outras granjas. O primeiro argumentava que, incapazes de defender-se, estavam destinados à submissão; o outro alegava que, fomentando revoluções em toda parte, não teriam necessidade de defender-se. Os animais ouviam Napoleão, depois Bola-de-Neve, e não chegavam a conclusão nenhuma sobre quem tinha razão; na verdade, estavam sempre de acordo com quem falava no momento. 

Por fim, chegou o dia em que o projeto de Bola-de-Neve ficou pronto. Na reunião do domingo seguinte deveria ser posta em votação a questão de começar ou não o trabalho no moinho de vento. Quando os animais se reuniram no grande celeiro, Bola-de Neve levantou-se e, embora fosse interrompido de vez em quando pelo balido das ovelhas, expôs suas razões em favor da construção do moinho de vento. Depois levantou-se Napoleão, para rebater. Disse calmamente que o moinho de vento era uma tolice e que não aconselhava ninguém a votar a favor daquilo. Sentou-se de novo; falara durante trinta segundos, se tanto, e parecia indiferente ao resultado. Ante isso, Bola-de-Neve pôs-se de pé outra vez, calou a gritos as ovelhas, que começavam a balir de novo, e irrompeu num candente apelo em favor do moinho de vento. Até então, os bichos estavam quase igualmente divididos em sua simpatia, mas num instante a eloquência de Bola-de-Neve arrastou a todos. Com sentenças ardentes, pintou um quadro de como poderia ser a Granja dos Bichos quando o trabalho sórdido fosse tirado dos ombros de todos. Sua imaginação ia agora além da mó de cereais e do corta-nabos. A eletricidade — disse ele — ia mover debulhadoras, arados, grades, rolos compressores, ceifeiras e atadeiras, além de prover a cada baia sua própria luz, água quente e fria e um aquecedor elétrico. Quando parou de falar, não havia mais dúvida quanto ao resultado da votação. Porém nesse exato instante Napoleão levantou-se, e dando uma estranha olhadela de viés para Bola-de-Neve, soltou um guincho estridente que ninguém nunca ouvira antes. 

Houve um terrível latido do lado de fora, e nove cães enormes usando coleiras tachonadas de bronze entraram aos saltos no celeiro. Jogaram-se sobre Bola-de-Neve, que saltou do lugar onde estava mal a tempo de escapar àquelas presas. Num instante, zuniu porta afora com os cães em seu encalço. Espantados e aterrorizados demais para falar, os bichos amontoaram-se na porta para observar a caçada. Bola-de-Neve corria pelo campo em direção à estrada, como só um porco sabe correr, mas os cachorros se aproximavam. De repente ele caiu, e pareceu que o pegariam. Mas levantou-se outra vez e voou como um desesperado. Já os cães o alcançavam de novo. Um deles quase fechou as mandíbulas no rabicho de Bola-de-Neve, que o sacudiu bem na hora. Aí fez um esforço extremo e, ganhando algumas polegadas, se enfiou por um buraco da sebe e sumiu. 

Calados e aterrados, os animais voltaram furtivamente para dentro do celeiro. Logo chegaram os cachorros, latindo. A princípio, ninguém pôde imaginar de onde tinham vindo aquelas criaturas, mas o mistério logo se aclarou: eram os cachorrinhos que Napoleão havia tomado das mães e criado em segredo. Embora ainda não tivessem completado o crescimento, já eram cães enormes, mal encarados como lobos. Permaneceram junto a Napoleão, e notou se que sacudiam a cauda para ele da mesma maneira como os outros cachorros outrora faziam para Jones. 

Napoleão, com os cães a segui-lo, subiu para o estrado de onde o Major fizera seu discurso. Anunciou que daquele momento em diante terminariam as reuniões aos domingos de manhã. Eram desnecessárias, disse ele, uma perda de tempo. Para o futuro, todos os problemas relacionados com o funcionamento da granja seriam resolvidos por uma comissão de porcos, presidida por ele, que se reuniria em particular e depois comunicaria as decisões aos demais. Os animais continuariam a reunir-se aos domingos para saudar a bandeira, cantar “Bichos da Inglaterra” e receber as ordens da semana; não haveria debates. 

A despeito do estado de choque em que a expulsão de Bola-de Neve os deixara, os bichos caíram das nuvens com aquela notícia. Vários teriam protestado, se conseguissem achar os argumentos. Até Sansão ficou um tanto inquieto. Murchou as orelhas, sacudiu o topete várias vezes e fez um esforço tremendo para pôr em ordem as ideias; mas afinal não conseguiu pensar em nada para dizer. Alguns porcos, porém, tinham maior flexibilidade de raciocínio. Quatro jovens porcos castrados, colocados na primeira fila, soltaram altos guinchos de protesto e levantaram-se, falando a um só tempo. Mas os cachorros, junto de Napoleão, deram um rosnado fundo e ameaçador, e os porcos calaram-se, sentando-se de novo. Aí estrondaram as ovelhas um formidável balido de “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”, que durou cerca de um quarto de hora, acabando com qualquer hipótese de discussão. 

Mais tarde, Garganta foi mandado percorrer a granja para explicar a nova situação aos demais. 

“Camaradas”, ele disse, “tenho certeza de que cada animal compreende o sacrifício que o Camarada Napoleão faz ao tomar sobre seus ombros mais esse trabalho. Não penseis, camaradas, que a liderança seja um prazer. Pelo contrário, é uma enorme e pesada responsabilidade. Ninguém mais que o Camarada Napoleão crê firmemente que todos os bichos são iguais. Feliz seria ele se pudesse deixar-vos tomar decisões por vossa própria vontade; mas às vezes poderíeis tomar decisões erradas, camaradas; e então, onde iríamos parar? Suponhamos que tivésseis decidido seguir Bola-de-Neve, com suas miragens de moinho de vento — logo Bola de-Neve, que, como hoje sabemos, não passava de um criminoso?” 

“Ele foi valente na Batalha do Estábulo”, disse alguém. 

“Valentia não basta”, respondeu Garganta. “A lealdade e a obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito, tempo virá em que verificaremos que o papel de Bola-de Neve foi muito exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina férrea! Esse é o lema para os dias que correm. Um passo em falso, e o inimigo estará sobre nós. Por certo, camaradas, não quereis Jones de volta, hein?” 

Uma vez mais, esse argumento era irrespondível. Sem dúvida alguma, os bichos não desejavam Jones de volta; e se a realização dos debates dominicais podia ter essa consequência, então que cessassem os debates. Sansão, que já tivera tempo de pensar, expressou o sentimento geral: “Se é o que diz o Camarada Napoleão, deve estar certo”. E daí por diante adotou a máxima “Napoleão tem sempre razão”, acrescentando-a ao seu lema particular “Trabalharei mais ainda”. 

Já com o tempo melhor, iniciou-se a arada da primavera. O galpão em que Bola-de-Neve desenhara o projeto do moinho de vento foi trancado, e os desenhos, provavelmente apagados. Todos os domingos, às dez horas, os animais reuniam-se no grande celeiro para receber as ordens da semana. A caveira do velho Major, já sem carnes, fora desenterrada e colocada sobre um toco ao pé do mastro, junto da espingarda. Após o hasteamento da bandeira, os animais deviam desfilar reverentemente perante a caveira, antes de entrar no celeiro. Já não sentavam todos juntos, como antes. Napoleão, com Garganta e outro porco chamado Mínimo, dono de notável talento para compor canções e poemas, aboletavam-se sobre a parte fronteira da plataforma, os nove cachorros em semicírculo ao redor deles, e os outros porcos atrás. O restante dos animais ficava de frente para eles, no chão do celeiro. Napoleão lia as ordens da semana num áspero estilo militar, e após cantarem uma única vez “Bichos da Inglaterra”, os animais se dispersavam. 

No terceiro domingo após a expulsão de Bola-de-Neve, os bichos ficaram muito surpresos ao ouvir Napoleão anunciar que o moinho de vento seria finalmente construído. Napoleão não deu nenhuma explicação sobre o motivo que o fizera mudar de ideia, apenas alertando os animais de que essa tarefa extraordinária significaria trabalho mais duro, podendo até ser necessário reduzirem-se as rações. O projeto, entretanto, estava formulado até o último detalhe. Uma comissão especial de porcos trabalhara nele durante as três últimas semanas. A construção do moinho de vento, com vários outros melhoramentos, deveria levar dois anos. 

Naquela tarde, Garganta explicou aos outros bichos, em particular, que Napoleão nunca fora contra a construção do moinho de vento. Pelo contrário, ele é que advogara a ideia desde o início, e o projeto que Bola-de-Neve havia desenhado no assoalho do galpão das incubadoras fora, na realidade, roubado de entre os papéis de Napoleão. O moinho de vento era, na verdade, criação do próprio Napoleão. Por que, então, perguntou alguém, ele falou tanto contra o moinho? Garganta olhou, manhoso. Aí é que estava a esperteza do Camarada Napoleão, disse. Ele fingira ser contra o moinho de vento, apenas como manobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que era um péssimo caráter e uma influência perniciosa. Agora que Bola-de-Neve saíra do caminho, o projeto podia prosseguir sem a sua interferência. Isso, disse Garganta, era uma coisa chamada tática. Repetiu inúmeras vezes: “Tática, camaradas, tática!”, saltando à roda e sacudindo o rabicho, com um riso jovial. Os bichos não estavam muito certos do significado da palavra, mas Garganta falava de modo tão persuasivo, e três cachorros — que por coincidência estavam com ele — rosnavam tão ameaçadores que eles aceitaram a explicação sem mais perguntas.

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