A Revolução do Bichos Posfácio
Repensando A revolução dos bichos | Christopher Hitchens (2006)
Certo dia no final da década de 1930, pouco depois de regressar da Guerra Civil Espanhola, George Orwell estava fazendo uma de suas longas caminhadas solitárias pelo interior da Inglaterra. Como haveria de recordar mais tarde:
Pensei em denunciar o mito soviético numa história que fosse fácil de compreender por qualquer pessoa e fácil de traduzir para outras línguas. No entanto, os detalhes concretos da história só me ocorreriam depois, na época em que morava numa cidadezinha, no dia em que vi um menino de uns dez anos guiando por um caminho estreito um imenso cavalo de tiro que cobria de chicotadas cada vez que o animal tentava se desviar. Percebi então que, se aqueles animais adquirissem consciência de sua força, não teríamos o menor poder sobre eles, e que os animais são explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira como o proletariado é explorado pelos ricos.
O conceito de “direitos dos animais” ainda não existia na época, de maneira que Orwell decidiu fazer um uso antropomórfico de sua percepção. Dessa vez os animais iriam adquirir fala, inteligência e a coragem de derrubar seus exploradores humanos. Mas sua tragédia seria uma escravidão nova e mais impiedosa nas mãos de seus semelhantes. Todos os animais seriam proclamados iguais, só que — de acordo com uma expressão que desde então entrou para o vocabulário do nosso tempo — “alguns são mais iguais que outros”.
Orwell só terminaria o livro seis anos depois, preocupado que estava com o início da Segunda Guerra Mundial, com seus problemas de saúde e com a necessidade de ganhar a vida como jornalista free-lancer e locutor de rádio. O manuscrito original quase se perdeu quando seu apartamento em Londres foi atingido por um dos primeiros mísseis conhecidos como “bombas voadoras”, disparado do outro lado do canal pelos nazistas. E como veremos, por muito pouco não deixou de ser publicado. Mas vale a pena assinalar o momento germinal da história: a ambição declarada de Orwell era “analisar a teoria de Marx do ponto de vista dos animais”. Ele servira na Espanha com as milícias do POUM, um partido quase trotskista que sofrera uma repressão terrível nas mãos do aparato policial dominado pelos soviéticos, e Orwell e sua mulher, Eileen, tiveram, como ele dizia, “muita sorte de sair da Espanha com vida”. Não menos importante, em Barcelona tinham visto
gente inocente ser atirada na prisão só por suspeita de desvio da ortodoxia. No entanto, quando voltamos à Inglaterra, encontramos muitos observadores sensatos e bem informados que acreditavam nos relatos mais fantasiosos — envolvendo conspirações, traição e sabotagem — que a imprensa fazia dos processos de Moscou.
Na mesma medida em que os acontecimentos da Espanha assim se transformaram, em seu espírito, numa alegoria dos fatos mais amplos que aconteciam na Rússia, A revolução dos bichos se transformou numa sátira sobre a experiência soviética como um todo. “Ao longo dos últimos dez anos”, escreveu ele em 1947, “convenci-me de que a destruição do mito soviético era essencial para conseguirmos reviver o movimento socialista.”
Todos os trechos que cito aqui foram tirados de um prefácio que Orwell escreveu para uma edição de A revolução dos bichos publicada inicialmente em ucraniano e distribuída nos campos de refugiados que se espalhavam pela Europa desde 1945. * Para os refugiados ucranianos, que não só tinham sobrevivido à guerra como também assistido à stalinização de seu país, à coletivização e à fome que a acompanhava, a história precisava de muito pouco em matéria de contexto ou explicação. No entanto, mais de meio século se passou desde aquele momento, e alguns de seus contornos merecem reforço, além de um certo reexame.
No momento em que a ação do livro começa, todos os bichos da opressiva fazenda do sr. Jones são convocados para ouvir a última mensagem do velho porco moribundo que era o animal mais respeitado de toda a propriedade. O velho Major analisa a vida de provação e sacrifício dos animais, conclama todos a derrubar seus opressores e pinta um quadro de um futuro radioso baseado no princípio da ajuda mútua e da prosperidade. Propõe um hino, “Bichos da Inglaterra”, para servir como sua versão da “Internacional Socialista”. Em seguida morre, mas a mensagem arrebatadora dessa figura inspirada em Marx logo é adotada pelos porcos mais cultos, a intelligentsia do mundo animal. Conseguem forjar uma aliança entre os fortes cavalos Sansão e Quitéria, que representam o proletariado, e os elementos disparatados do campo e da classe média representados pelas ovelhas, pelas vacas, pelas galinhas e outras forças dos pastos e do quintal. Só a égua branca Mimosa — um tipo pequeno-burguês que tinha sido alvo dos mimos do sr. Jones — e Moisés, o corvo — ave de uma eloquência crocitante e vocação de pregador que fala de um mundo além do céu —, permanecem indiferentes. Numa série de batalhas, não só expulsam o sr. Jones como ainda derrotam suas tentativas de restaurar-se no poder com a ajuda de fazendeiros vizinhos. Começa então um período de intensa construção, acompanhada de isolamento e perigo e, cada vez mais, da sensação de que os porcos se tinham apoderado de uma fatia excessiva de poder e privilégios.
Qualquer um que conheça um pouco a história da Revolução Russa já terá percebido as semelhanças. E Orwell ainda fez o possível para sublinhar e enfatizar alguns paralelos. A excomunhão dos dissidentes, a reescritura da história, os julgamentos espetaculares e as execuções em massa são representados com grande nitidez. O fim do nobre cavalo Sansão, que trabalha até morrer e no final é despachado da maneira mais cínica, é uma cena de emoção intensa e terrível, e sabe-se que tende a comover mesmo os leitores mais jovens, que só têm uma noção muito vaga da analogia histórica. (Vários dos contemporâneos de Orwell lhe escreveram contando que seus filhos tinham gostado muito do livro só pela sua história.) Mas é o cuidado com os detalhes que impressiona: Moisés, o corvo, acaba obtendo permissão de voltar à fazenda, assim como Stálin permitiu a reentrada em atividade da Igreja ortodoxa russa durante a Segunda Guerra Mundial, e a “Internacional Socialista” foi substituída por versos e palavras de ordem mais simples.
Por isso, é mais estranho ainda que, em determinado aspecto, a analogia seja extremamente enganosa e incompleta. É muito óbvio, e não só devido ao nome, que Napoleão deve representar Stálin. E é igualmente óbvio, inclusive no que diz respeito a seu exílio e sua queda em desgraça, que o outro líder dos porcos, Bola-de-Neve, pretende representar Trotski. Mas onde fica Lênin nisso tudo? Tenho minha própria especulação acerca do motivo de Orwell ter composto seu “conto de fadas” rural (como ele próprio chamava seu livro) como um Hamlet sem o príncipe. Naquela época, a esquerda em geral ainda não se decidira quanto a Lênin. Os trotskistas denunciavam Stálin como o “coveiro” do leninismo; os stalinistas reivindicavam o manto de Lênin. Só as forças conservadoras diziam que o leninismo e o stalinismo não passavam de dois nomes para a mesma coisa. E toda a “moral” da história se perde se a ideia da revolução dos bichos for perversa ou irracional desde o início. Assim, conscientemente ou não, Orwell apaga a figura que teria deixado sua história um pouco complicada demais. (Estranhamente, ou talvez por motivos semelhantes, também existe um Stálin, na forma do Grande Irmão, e um Trotski, na forma de Emmanuel Goldstein, em 1984. Mas Lênin está ausente.)
O leitor pode ter reparado que Orwell, acima, afirma que sua finalidade é “reviver o movimento socialista”. Era uma aspiração compartilhada pelos refugiados ucranianos e poloneses que lhe escreveram logo depois da Segunda Guerra Mundial, perguntando se poderiam traduzir o livro para sua língua. O primeiro deles foi Ihor Sevcenko, que escreveu para Orwell em abril de 1946:
A parte dos nossos emigrantes que foi parar no exílio não só devido a convicções nacionalistas, mas pelo que sentiam vagamente tratar-se de uma procura da “dignidade humana” e da “liberdade”, não se sente nem um pouco reconfortada quando algum intelectual de direita lhe faz uma advertência eloquente. Estava especialmente ansiosa para ouvir alguma coisa desse tipo, mas produzida no campo socialista, do qual se sentia intelectualmente mais próxima […] Em várias ocasiões traduzi diferentes trechos de A revolução dos bichos. Meus ouvintes eram refugiados soviéticos. O efeito sempre foi impressionante. Concordavam com quase todas as suas interpretações. Sentiam-se profundamente afetados por cenas como as dos animais cantando “Bichos da Inglaterra” no alto da encosta.
Foi em resposta a esse pedido que Orwell escreveu seu primeiro e único posfácio a este livro, do qual retirei as citações acima. A edição resultante, traduzida e barata, foi recolhida e queimada pelas autoridades de ocupação americanas na Alemanha, temerosas de que sua distribuição pudesse ofender as contrapartidas do Exército Vermelho na outra “zona”. E nem foi esse o único destino irônico que as primeiras edições do livro acabaram tendo. Os comunistas e seus simpatizantes no Ministério da Informação britânico do tempo da guerra (um dos quais seria mais tarde denunciado como agente da KGB) fizeram naturalmente o possível para inibir a publicação da obra, que poderia causar embaraços a Stálin, então aliado de guerra. Mas até T. S. Eliot, o doyen do mundo editorial conservador, rejeitou A revolução dos bichos quando o livro lhe foi submetido, e achava que o romance era inoportuno — para não falar do quanto era inadequado apresentar os comunistas como porcos. Nos Estados Unidos, o livro foi rejeitado duas vezes. A primeira recusa, que pode ter sido simples idiotice, veio da Dial Press, que escreveu para Orwell dizendo-lhe que não havia mercado para histórias com animais na América (numa cultura dominada por Walt Disney!). A segunda rejeição foi claramente ideológica. Arthur Schlesinger Jr. enviou um exemplar do livro para a Random House, onde foi rejeitado por um importante companheiro de viagem comunista chamado Angus Cameron. Embora A revolução dos bichos tenha acabado encontrando pequenos editores em tiragens limitadas, tanto em Londres quanto em Nova York, quase foi condenado ao destino de Lutando na Espanha, o livro praticamente ignorado que Orwell escrevera sobre suas experiências com o stalinismo na Guerra Civil Espanhola. Talvez seja justo que este livro tenha sido um caso prematuro de samizdat.
Numa medida impressionante e surpreendente, continua a existir nessa forma. Tendo se transformado num clássico da Guerra Fria (a CIA mais tarde compensaria de sobra a destruição do livro pelo exército americano, ajudando a patrocinar sua ampla distribuição em inúmeros países do mundo, junto com uma versão de propaganda em desenho animado), hoje é consagrado na Europa Oriental como uma das primeiras afirmações originais do antitotalitarismo. Mas na China continua proibido, muito embora uma versão musical já tenha sido encenada por ousados vanguardistas, e na Coreia do Norte, claro, nem sequer é conhecido. Um amigo comunista me telefonou da China alguns anos atrás para dizer que achava que eu podia ter razão sobre Orwell, no fim das contas. Acabara de ler um discurso de um dos líderes do partido, dizendo que os camponeses precisavam enriquecer, e que “alguns deles iriam ficar mais ricos que os outros”. Foi a primeira vez que ouvi falar em Deng Xiaoping.
No Zimbábue, em resposta à repressão generalizada promovida pelo partido governante de Robert Mugabe, bem como ao uso de alimentos como arma para premiar ou punir os eleitores, o jornal da oposição simplesmente mandou reimprimir o texto de A revolução dos bichos na forma de um folhetim diário ilustrado. Sem qualquer comentário adicional: a única pista era o par de óculos parecidos com os de Mugabe usado pela figura de Napoleão. Em pouco tempo, a sede do jornal sofreu um atentado a bomba, com explosivos de alta potência disponíveis apenas para o exército do país. Do mundo islâmico, o livro continua banido, o que é justificado, alega-se, pelo fato de retratar porcos. Pouco importa que os porcos sejam apresentados como o opressor: o literalismo corânico permanece absoluto. E pode haver outros motivos para a proibição: pouco tempo atrás, fui abordado por dissidentes iranianos que pretendiam produzir uma edição pirata que, esperam, possa denunciar a corrupção e a ganância dos supostos puritanos que governam a República Islâmica.
O livro é famoso por terminar com os animais reunidos do lado de fora, no frio, observando o rapprochement entre porcos e seres humanos e incapazes de distinguir quem era o quê. Isso já foi entendido, erradamente, como a afirmação da equivalência moral entre capitalismo e comunismo, e por essa razão o trecho foi cortado do desenho produzido pela CIA. Na verdade, como sabemos pelo próprio Orwell, o final era uma referência sarcástica ao então famoso encontro de Teerã reunindo Churchill, Roosevelt e Stálin. Saudado num primeiro momento como uma promessa de cooperação no pós-guerra entre os diversos blocos, o encontro lhe pareceu uma reunião cínica destinada à partilha do butim, cujos efeitos dificilmente haveriam de durar muito. (O acordo subsequente firmado em Yalta, consolidando a divisão da Europa e do resto do mundo, inaugurou o estado de permanente “Guerra Fria” — expressão cunhada por Orwell — que caracterizaria 1984.) O que o romance na verdade nos diz, com seus amenos empréstimos de Swift e Voltaire, é que aqueles que renunciam à liberdade em troca de promessas de segurança acabarão sem uma nem outra. Essa é uma lição que transcende o momento em que foi escrita.
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