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O Retrato de Dorian Gray

Capítulos 20

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O Retrato de Dorian Gray Capítulo XV

Essa noite, às oito e trinta, trajando com requinte e ostentando na botoeira um grande ramalhete de violetas de Parma, Dorian Gray era conduzido por criados e muitas mesuras até à sala de visitas de Lady Narborough. Sentia a cabeça a latejar devido a um desenfreado nervosismo, e uma louca excitação, mas inclinou-se sobre a mão da sua anfitriã com a desenvoltura e graciosidade de sempre. Talvez nunca aparentemos tanta naturalidade como quando temos de representar um papel. Por certo, era impossível que todos os que nessa noite olhavam para Dorian Gray acreditassem que ele sofrera uma tragédia tão horrível como qualquer tragédia dos nossos dias. Aqueles dedos tão distintos nunca poderiam ter agarrado uma faca pecaminosa, nem aqueles lábios risonhos clamado sobre Deus e a bondade. Ele próprio não pôde deixar de se surpreender com a calma do seu comportamento, e, por um instante, sentiu vivamente o terrível prazer de uma vida dupla.

 

Era uma pequena reunião, preparada um pouco de improviso por Lady Narborough, mulher muito inteligente, e com o que Lord Henry costumava descrever como os restos de uma fealdade realmente notável. Revelara-se excelente esposa de um dos nossos mais enfadonhos embaixadores, e, depois de ter enterrado convenientemente o marido num mausoléu de mármore, que ela se encarregara de desenhar, e de ter casado as filhas com homens ricos e bastante idosos, dedicava-se agora aos prazeres da ficção francesa, da culinária francesa e do esprit francês, quando o conseguia.

 

Dorian era um dos seus preferidos especiais, e dizia-lhe sempre que se dava por extremamente satisfeita por não o ter conhecido durante a juventude.

 

- Tenho a certeza, meu querido, de que me teria apaixonado loucamente por si - costumava dizer -, e atirado a minha touca aos moinhos por sua causa (¹). Felizmente que ainda não se pensava em si nessa altura. As nossas toucas eram tão deselegantes, e os moinhos tão ocupados a tentar fazer vento, que nunca tive um namorico. Porém, foi tudo por culpa do Narborough. Ele era terrivelmente míope, e não se tem prazer em enganar um marido que nunca vê nada.

 

*¹. Tradução literal, por motivo dos comentários que a personagem faz a seguir. A tradução livre corresponderia a "atirado com a minha reputação às malvas". (N, da T.)

 

Os convidados dessa noite eram um pouco enfadonhos. Acontecia que, como ela, por detrás de um leque muito coçado, explicava a Dorian, uma das filhas casadas viera inesperadamente visitá-la e, para cúmulo, até trouxera o marido.

 

- Parece-me muito indelicado da parte dela, meu querido - dizia, segredando. - É certo que vou sempre visitá-los no Verão, quando regresso de Homburg, mas uma velha como eu precisa de ar puro de vez em quando, e, além disso, sou eu que lhes trago alguma animação. Não faz ideia da vida que eles levam ali. É a pura e sadia vida campestre. Levantam-se cedo por terem tanto que fazer, e deitam-se cedo por terem tão pouco em que pensar. Desde o tempo da rainha Isabel que não há um escândalo por aqueles sítios, e, por consequência, adormecem todos a seguir ao jantar. Não se sente ao pé de nenhum deles. Há-de sentar-se ao meu lado para me distrair.

 

Dorian murmurou umas palavras de cortesia, e passeou os olhos pela sala. Era, de facto, uma reunião fastidiosa. Estavam duas pessoas que nunca vira, e o resto era constituído por Ernest Harrowden, uma daquelas mediocridades tão banais dos clubes de Londres que não têm inimigos mas que são profundamente detestados pelos amigos; Lady Ruxton, uma mulher de quarenta e sete anos, exageradamente ataviada, de nariz adunco, que se esforçava por cair em descrédito, mas que era particularmente tão feia que, para grande decepção sua, não havia ninguém que acreditasse em algo que a desfeiteasse, Mrs. Erlynne, uma nulidade com ambições, que ceceava deliciosamente, e de cabelo ruivo, Lady Alice Chapman, filha da anfitriã, uma rapariga insípida e com ar desmazelado, com uma daquelas caras tipicamente britânicas que, uma vez vistas, são logo esquecidas; o marido dela, criatura rubicunda, de suíças brancas, e que, como muitos da sua classe, estava convencido de que a jovialidade desmedida pode compensar uma total ausência de ideias.

 

Dorian sentia-se um pouco arrependido de ter vindo, quando Lady Narborough, olhando para o grande relógio de bronze dourado, que se esparramava num espavento de curvas sobre o pano cor de malva que decorava o rebordo da chaminé, exclamou:

 

- Que desagradável este atraso de Henry Wotton! Mandei-lhe recado esta manhã, e ele prometeu-me solenemente que não faltava.

 

A presença de Harry sempre servia de consolo e, quando a porta se abriu e ouviu a sua arrastada voz musical, que tornava encantadoras as suas desculpas insinceras, deixou de sentir tédio.

 

Mas não conseguiu comer nada ao jantar. Todos os pratos servidos eram retirados sem Lhes tocar. Lady Narborough repreendia-o permanentemente por aquilo a que chamava um «insulto ao pobre do Adolphe, que inventou o menu especialmente para si», e, de vez em quando, Lord Henry olhava para ele, surpreendido com o seu silêncio e o seu ar ausente. O mordomo não deixava de lhe encher a taça de champanhe. Bebia com sofreguidão, mas a sede parecia aumentar.

 

- Dorian - acabou por dizer Lord Henry, enquanto o chaudfroid era servido -, que se pássa consigo esta noite? Parece deprimido.

 

- Estou convencida de que está apaixonado - exclamou Lady Narborough -, e que não se atreve a dizer-me por recear que eu fique com ciúmes. E tem muita razão. Com certeza que ficaria.

 

- Minha querida Lady Narborough - murmurou Dorian, a sorrir -, passou toda uma semana sem que me tenha apaixonado, para ser mais exacto, desde que Lady Ferrol se ausentou de Londres.

 

- Como é que vocês os homens podem apaixonar-se por aquela mulher! - exclamou. - Realmente, não consigo entender.

 

- Muito simplesmente porque ela se lembra da infância dasenhora, Lady Narborough - disse Lord Henry - Ela é o único elo entre nós e os bibes que a senhora usava.

 

- Ela não se lembra nada dos meus bibes, Lord Henry. Mas eu lembro-me muito bem dela em Viena há trinta anos, e de como estava décolletée nessa altura.

 

- Ainda está décolletée - respondeu ele, pegando numa azeitona entre os seus longos dedos -, e quando traz um vestido muito elegante parece uma édition de luxe de um medíocre romance francês. É realmente espantosa e surpreende-nos constantemente. Tem uma extraordinária capacidade de amor pela família. Quando morreu o terceiro marido, o cabelo, com o desgosto, ficou louro.

 

- Como pode falar assim, Harry! - exclamou Dorian.

 

- É uma explicação muito romântica - riu a anfitriã. – Mas um terceiro marido, Lord Henry! Não está a querer dizer que o Ferrol é o quarto.

 

- Claro que é, Lady Narborough.

 

- Não acredito numa única palavra.

 

- Pode perguntar a Mr. Gray. Ele é um dos seus amigos muito íntimos.

 

- É verdade, Mr. Gray?

 

- Ela assim mo afiança, Lady Narborough - respondeu Dorian. - Perguntei-lhe se, à semelhança do que fizera Margarida de Navarra, mandara embalsamar os corações deles e os trazia pendurados à cinta. Disse-me que não, visto nenhum deles ter coração.

 

- Quatro maridos! Palavra de honra, isso revela trop dezèle.

 

- Trop de audace, tenho-lho dito - disse Dorian.

 

- Oh, ela tem audácia suficiente para seja o que for, meu querido. E como é o Ferrol? Não o conheço.

 

- Os maridos das mulheres muito belas pertencem à classe dos criminosos - observou Lord Henry, tomando uns goles de vinho.

 

Lady Narborough deu-lhe uma pancada com o leque.

 

- Lord Henry, não me surpreende nada que o mundo diga que o senhor é extremamente maldoso.

 

- Mas qual mundo? - perguntou Lord Henry, erguendo as sobrancelhas. - Só se for o outro. As minhas relações com este mundo são excelentes.

 

- Toda a gente que eu conheço diz que o senhor é muito mau -exclamou a velha senhora, abanando a cabeça.

 

Lord Henry ficou sério por uns momentos.

 

- É perfeitamente monstruosa - disse, por fim - a maneira como as pessoas andam hoje por aí a dizer nas nossas costas coisas que são verdades absolutas.

 

- Ele não tem emenda, pois não? - exclamou Dorian, inclinando-se para a frente.

 

- Espero bem que não - respondeu a sua anfitriã, a rir. - Mas se, na realidade, vocês todos adoram Madame de Ferrol desta maneira ridícula, terei de casar-me de novo para estar na moda.

 

- A senhora nunca voltará a casar, Lady Narborough - interrompeu Lord Henry. - Foi muito feliz. Quando uma mulher se casa outra vez, é porque detestava o primeiro marido. Quando um homem se casa outra vez, é porque adorava a primeira esposa. As mulheres tentam a sorte, os homens arriscam a sua.

 

- Narborough não era perfeito - exclamou a senhora.

 

- Se o tivesse sido, não o teria amado, minha querida senhora - foi a resposta. - As mulheres amam-nos pelos nossos defeitos. Se os tivermos em número suficiente, perdoam-nos tudo, até a nossa inteligência. Parece-me que nunca tornará a convidar-me para jantar, Lady Narborough, depois do que acabo de dizer, mas é a pura verdade.

 

- Claro que é verdade, Lord Henry. Se nós as mulheres não os amássemos pelos seus defeitos, onde estariam vocês todos? Nenhum de vocês se teria casado. Seriam um bando de infelizes solteirões. Todavia, isso não os iria modificar muito. Nos dias de hoje, todos os casados vivem como se fossem solteiros, e os solteiros como se fossem casados.

 

- Fin de siècle - murmurou Lord Henry.

 

- Fin du globe - respondeu a sua anfitriã.

 

- Eu queria que fosse fin du globe - disse Dorian, soltando um suspiro. - A vida é uma enorme desilusão.

 

- Ah, meu querido - exclamou Lady Narborough, enquanto calçava as luvas -, não me diga que esgotou a vida. Quando um homem diz isso, ficamos a saber que a vida o esgotou a ele. Lord Henry é muito perverso, e às vezes desejo tê-lo sido também, mas o senhor está destinado a ser bom, parece ser tão bom. Tenho de lhe conseguir uma boa esposa. Lord Henry, não acha que Mr. Gray devia casar?

 

- Ando sempre a falar-lhe nisso, Lady Narborough – respondeu Lord Henry, fazendo uma vénia.

 

- Então temos de procurar a parceira ideal para ele. Esta noite vou passar os olhos com muita atenção pelo Debrett (1), e elaboro uma lista de todas as raparigas aceitáveis.

 

- Inclui as idades, Lady Narborough? - perguntou Dorian.

 

- É claro que incluo, com ligeiras alterações. Mas não nos devemos precipitar. Quero que seja do género que o The Morning Post denomina por enlace equilibrado, e que ambos sejam felizes.

 

- Os dislates que se dizem sobre casamentos felizes! - exclamou Lord Henry. - Um homem pode ser feliz com qualquer mulher, desde que não a ame.

 

*1. Compilação da lista dos membros da aristocracia britânica, incluindo respectiva genealogia, aqui referenciada pelo apelido do seu autor, John Debrett. (N. da I.)

 

- Como o senhor é cínico! - acudiu a velha senhora, arrastando para trás a cadeira e acenando para Lady Ruxton. - Tem de vir em breve jantar comigo outra vez. O senhor é, de facto, um excelente tónico, muito melhor do que aquele que me é receitado por Sir Andrew. Mas tem de me dizer que pessoasgostaria de encontrar. Quero que seja uma reunião deliciosa.

 

- Gosto de homens com futuro, e de mulheres com um passado - respondeu. - Ou acha que, assim, seria uma reunião de saias?

 

- Receio bem que sim - disse ela, a rir, levantando-se. - Mil perdões, minha querida Lady Ruxton - acrescentou. – Não reparei que ainda não terminara o seu cigarro.

 

- Não tem importância, Lady Narborough. Fumo em demasia. Futuramente, vou ser mais comedida.

 

- Peço-lhe que não o faça, Lady Ruxton - interveio Lord Henry. - A moderação é fatal. O suficiente é tão mau como uma refeição. O mais do que suficiente é tão bom como um banquete.

 

Lady Ruxton olhou-o de um modo curioso.

 

- Deve vir ver-me uma tarde destas para me explicar isso. Parece-me uma teoria fascinante - murmurou, ao sair rapidamente da sala.

 

- Agora, vejam lá se não ficam muito tempo a falar de política e escândalos - gritou da porta Lady Narborough. – Se o fizerem, nós vamos com certeza começar a discutir lá em cima.

 

Os homens desataram a rir, e Mr. Chapman levantou-se solenemente do seu lugar ao fundo da mesa e dirigiu-se para a cabeceira. Dorian Gray mudou de lugar e foi sentar-se ao lado de Lord Henry. Mr. Chapman começou a falar em voz alta sobre a situação na Câmara dos Comuns. Ria ostensivamente dos seus adversários. A palavra doctrinaire, vocábulo que aterroriza a mentalidade britânica, ouvia-se com frequência por entre os seus frouxos de riso. Um prefixo aliterante servia de ornamento de oratória. Hasteava a bandeira do Reino Unido até aos pináculos do Pensamento. A estupidez hereditária da raça, que ele jovialmente designava por sólido bom senso inglês, era apontada como verdadeiro baluarte da sociedade.

 

Lord Henry fez um leve sorriso e voltou-se para olhar para Dorian.

 

- Sente-se melhor, meu caro amigo? - perguntou-lhe. - Durante o jantar parecia um pouco abatido.

 

- Estou óptimo, Harry. Apenas cansado. Mais nada.

 

- Ontem à noite você esteve sedutor. A jovem duquesa é-lhe muito dedicada. Disse-me que vai visitá-lo a Selby.

 

- Prometeu ir no dia vinte.

 

- O Monmouth também lá vai estar?

 

- Sim, vai, Harry.

 

- Ele maça-me tremendament, quase tanto como maça a mulher. Ela é muito inteligente, inteligente demais para mulher. Falta-lhe o encanto inexplicável da fragilidade. São os pés de barro que tornam precioso o ouro da imagem. Os pés dela são muito bonitos, mas não são pés de barro. Pés de alva porcelana, se você concordar. Passaram pelo fogo, e o que não é destruído pelo fogo endurece. Ela teve as suas aventuras.

 

- Há quanto tempo está casada? - perguntou Dorian.

 

- Há uma eternidade, pelo que ela me diz. Segundo o nobiliário, creio que há dez anos, mas dez anos ao lado do Monmouth devem parecer uma eternidade, com mais algum tempo somado. Vai mais alguém?

 

- Vão os Willoughbys, Lord Rugby e a esposa, a nossa anfitriã, Geoffrey Clouston, o grupo do costume. Convidei Lord Grotrian.

 

- Gosto dele - comentou Lord Henry - Há muita gente que não gosta, mas eu acho-o uma pessoa encantadora. Ele compensa a sua maneira de vestir, por vezes extravagante, com uma educação absolutamente requintada. É um indivíduo muito moderno.

 

- Não sei se ele poderá vir, Harry. Possivelmente terá de ir a Monte Carlo com o pai.

 

- Ah! As pessoas de família são um impecilho! Faça os possíveis para que ele apareça. A propósito, Dorian, ontem à noite você retirou-se muito cedo. Saiu antes das onze horas. O que fez a seguir? Foi directamente para casa?

 

Dorian lançou-lhe um olhar fugidio, e carregou o semblante.

 

- Não, Harry - disse, por fim. - Só cheguei a casa por volta das três.

 

- Esteve no clube?

 

- Estive - respondeu. Depois arrependeu-se. - Não, não foi bem assim. Não fui ao clube. Andei por aí. Não me lembro do que fiz... Você é tão curioso, Harry! Quer sempre saber o que os outros fazem. E eu quero sempre esquecer o que fiz. Entrei em casa às duas e meia, se quiser saber a hora exacta. Esquecera-me da chave em casa, e o meu criado teve de me abrir a porta. Se quiser provas que confirmem o assunto, pode perguntar-lhe.

 

Lord Henry encolheu os ombros.

 

- Meu caro amigo, isso não me interessa! Vamos até à sala de visitas. Não quero xerez, obrigado, Mr. Chapman. Aconteceu-lhe alguma coisa, Dorian. Conte-me o que se passa. Você está diferente esta noite.

 

- Não se preocupe comigo, Harry. Estou apenas irritável e de mau humor. Passo por sua casa amanhã ou depois. Apresente as minhas desculpas a Lady Narborough. Não vou lá acima. Vou para casa. Preciso de ir para casa.

 

- Está bem, Dorian. Espero vê-lo amanhã à hora do chá. A duquesa também vai.

 

- Farei os possíveis por aparecer, Harry - disse ele, abandonando a sala.

 

Quando regressava a casa, tinha a percepção de que voltara aquela sensação de terror que ele supunha ter estrangulado. As perguntas banais de Lord Henry levaram-no a perder o sangue-frio por uns instantes, e ele precisava ainda de o manter. As coisas que representavam um perigo tinham de ser destruídas. Estremeceu. Detestava a ideia de lhes tocar sequer.

 

Porém, tinha de ser feito. Ele bem o sabia, e, depois de ter trancado a porta da biblioteca, abriu o armário secreto para onde atirara o sobretudo e a mala de Basil Hallward. Um lume enorme ardia na lareira. Acrescentou-lhe outra acha. O cheiro de roupa chamuscada e de cabedal queimado era insuportável. Foram precisos três quartos de hora para que tudo fosse consumido pelo fogo. Quando terminou, sentia-se fraco e enjoado. Queimou umas pastilhas argelinas num defumador de cobre perfurado, e refrescou as mãos e a testa com um vinagre perfumádo de almíscar.

 

De repente sobressaltou-se. Os olhos tomaram um brilho estranho, e mordia nervosamente o lábio inferior. No espaço entre duas das janelas, encontrava-se um armário florentino de ébano com embutidos de marfim e lápis-lazúli. Fitava-o como uma coisa que causa simultaneamente fascínio e medo, como se guardasse algo que desejava e que, todavia, quase abominava. Respirava ofegante. Assaltou-o uma ânsia louca. Acendeu um cigarro e depois atirou-o fora. As pálpebras descaíram, e as longas pestanas quase lhe roçavam as faces. Mas continuava a fitar o armário. Por fim, ergueu-se do sofá em que se havia deitado, aproximou-se dele e, depois de o abrir com a chave, carregou numa mola secreta. Apareceu uma gaveta triangular deslizando lentamente. Os dedos dirigiram-se instintivamente para lá, enfiaram-se nela e agarraram algo. Era uma pequena caixa chinesa de laca negra e ouro velho, minuciosamente trabalhada, os lados ostentando desenhos de curvas onduladas, e os cordões de seda enfeitados com cristais redondos e borlas de fios de metal entrançados. Abriu-a. Continha uma massa verde, lustrosa como a cera, com um singular odor forte e persistente.

 

Hesitou por momentos, com um sorriso estranhamente imóvel. Depois, tremendo de frio, apesar de o ambiente da sala estar muito quente, endireitouse e olhou para o relógio. Faltavam vinte minutos para a meia-noite. Voltou a guardar a caixa, fechando as portas do armário a seguir, e entrou no quarto.

 

Quando a meia-noite batia as suas pancadas de bronze na escuridão, Dorian Gray, vestindo com simplicidade, de cachecol enrolado ao pescoço, saiu de casa furtivamente e de mansinho.

 

Na Bond Street encontrou um fiacre puxado por um bom cavalo. Chamou-o e, em voz baixa e grave, deu um endereço ao cocheiro.

 

O homem abanou a cabeça num gesto de recusa.

 

- Isso fica muito longe para mim - murmurou.

 

- Aqui tem um soberano (1) - disse-lhe Dorian. - E terá outro se conduzir depressa.

 

- Está bem, senhor - respondeu o homem -, chegamos lá dentro de uma hora.

 

E, depois de ter guardado a moeda, obrigou o cavalo a dar meia volta e dirigiu-se velozmente para as bandas do rio.

 

*1. Moeda de ouro no valor de uma libra (o mesmo que uma libra esterlina). (N. da T.) 

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