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O Retrato de Dorian Gray

Capítulos 20

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O Retrato de Dorian Gray Capítulo VI

- Já ouviu a novidade, Basil? - perguntou Lord Henry, nesse fim de tarde, quando Hallward era acompanhado até à pequena sala privada do Bristol, onde a mesa para o jantar tinha sido posta para três pessoas.

 

- Não, Harry - respondeu o artista, entregando o chapéu e o casaco ao criado, que se curvava numa vénia. - O que é? Nada de política, espero bem. Não me interessa. Quase que não se encontra um único indivíduo na Câmara dos Comuns que valha a pena pintar, ainda que muitos deles precisassem de um pequeno disfarce.

 

- Dorian Gray está noivo e vai casar - respondeu Lord Henry, observando-o enquanto falava.

 

Hallward sobressaltou-se, depois carregou os sobrolhos.

 

- O Dorian vai casar! - exclamou ele. - Impossível!

 

- É inteiramente verdade.

 

- Com quem?

 

- Com uma pequena actriz qualquer.

 

- Não posso acreditar. O Dorian é muito sensato.

 

- O Dorian é demasiado sensato para não cometer loucuras de vez em quando, meu caro Basil.

 

- Não se pode dizer que o casamento seja uma coisa que se faz de vez em quando, Harry.

 

- Excepto na América - retorquiu Lord Henry languidamente. - Mas eu não disse que ele estava casado. Disse que estava noivo. Há uma grande diferença. Recordo-me nitidamente de estar casado, mas não me lembro nada de estar noivo. Sou levado a pensar que nunca estive noivo.

 

- Mas pense nas origens do Dorian, e a sua posição social e a sua fortuna. Seria absurdo que ele casasse com alguém de nível inferior.

 

- Se quiser levá-lo a casar com esta rapariga, vá dizer-lhe isso, Basil. De certeza que o fará então. Sempre que um homem comete um disparate, fá-lo sempre pela mais nobre das causas.

 

- Espero que ela seja boa rapariga, Harry. Não quero ver o Dorian ligado a uma criatura desprezível, que viesse a aviltar-lhe a índole e arruinar-lhe a inteligência.

 

- Oh, ela é mais do que boa, é bela - murmurou Lord Henry, bebericando um vermute com bíter de laranja. - O Dorian diz que ela é lindíssima, e ele não se costuma enganar com coisas deste género. O retrato dele que você fez estimulou o seu apreço pela aparência das outras pessoas. Tem produzido esse efeito excelente, entre outros. Devemos vê-la Esta noite, se o rapaz não se tiver esquecido do que ficou combinado.

 

- Fala a sério?

 

- Muito a sério, Basil. Sentir-me-ia incomodado só de pensar que deveria estar mais a sério do que estou neste momento.

 

- Mas você aprova, Harry? - perguntou o pintor, andando de um lado para o outro, e tentando dominar-se. - É impossível que você aprove. Isso é alguma paixoneta idiota.

 

- Eu agora nunca aprovo nem reprovo nada. É uma atitude absurda que se toma em relação à vida. Não fomos postos neste mundo para divulgar os nossos preconceitos morais. Nunca presto atenção ao que dizem as pessoas vulgares, e nunca interfiro no que fazem as pessoas encantadoras. Se ficar fascinado por determinada personalidade, ela encantar-me-á sempre, seja qual for o modo de expressão que tomar. Dorian Gray apaixona-se por uma bela rapariga que faz de Julieta e pede-a em casamento. E por que não? Se casasse com Messalina, ele não seria menos interessante. Você sabe que não sou um defensor do casamento. A verdadeira desvantagem do casamento é o facto de tornar as pessoas tão altruístas. E as pessoas altruístas são desenxabidas. Falta-lhes personalidade. Há, porém certos temperamentos que se tornam mais complexos com o casamento. Conservam o seu egoísmo, e acrescentam-lhe muitos outros egos. São obrigados a ter mais do que uma vida. Tornam-se mais sumamente organizados, e ser sumamente organizado é, a meu ver, o desígnio da existência do homem. Além disso, toda a experiência tem valor e, digam o que disserem do casamento, ele é seguramente uma experiência. Espero que Dorian Gray- faça desta rapariga sua esposa, a adore apaixonadamente durante seis meses e depois fique subitamente fascinado por mais alguém. Ele seria um objecto de estudo fascinante.

 

- Você não acredita numa única palavra do que acaba de dizer, Harry; sabe bem que não. Se a vida de Dorian Gray fosse arruinada, ninguém se sentiria mais penalizado do que você. Você é muito melhor do que finge ser.

 

Lord Henry riu-se.

 

- Gostamos de pensar tão bem dos outros porque temos medo de nós mesmos. A base do optimismo é simplesmente o terror. Consideramo-nos generosos porque atribuímos ao nosso semelhante o mérito de possuir aquelas virtudes que poderão vir a beneficiar-nos. Tecemos louvores ao banqueiro a fim de podermos sacar a descoberto, e encontramos boas qualidades no assaltante, na esperança de que ele poupe as nossas algibeiras. Acredito em tudo o que disse. Sinto o maior desprezo pelo optimismo. Quanto a uma vida arruinada, só o é aquela cujo desenvolvimento é interrompido. Se se quiser estragar o temperamento de alguém, basta reformá-lo. Quanto ao casamento, isso seria um disparate, evidentemente. Mas existem outros e mais interessantes laços entre homens e mulheres. Por certo que os encorajarei. Têm o atractivo de estar na moda. Mas veja, o Dorian acaba de chegar. Ele pode informá-lo melhor do que eu.

 

- Meu caro Harry, meu caro Basil, devem felicitar-me! - disse o rapaz, tirando a capa de abas forradas de cetim e cumprimentando os amigos, apertando-lhes a mão. - Nunca estive tão feliz. Claro que foi repentino, mas todas as coisas realmente agradáveis o são. E, no entanto, parece-me ser a única coisa de que andei à procura toda a minha vida.

 

Estava corado de excitação e alegria e extremamente bonito.

 

- Espero que você seja sempre muito feliz, Dorian – disse Hallward -, mas não lhe perdoo não me ter comunicado o seu noivado. Comunicou-o a HarrY.

 

- E eu não lhe perdoo por ter chegado atrasado para o jantar - interrompeu Lord Henry, colocando a mão no ombro do rapaz, e sorrindo enquanto falava. - Venham, sentemo-nos para saber como é a comida do novo chefe de cozinha, e então você vai contar-nos como tudo aconteceu.

 

- De facto não há muito que contar - exclamou Dorian, quando se sentaram à pequena mesa redonda. – Aconteceu simplesmente isto. Depois de o ter deixado ontem à noite, Harry, mudei de roupa, jantei no pequeno restaurante italiano da Rupert Street que você me indicou e fui para o teatro às oito horas. A Sibyl fazia de Rosalinda. Claro que o cenário era horrível, e Orlando, absurdo. Ah! Mas Sibyl! Haviam de a ter visto! Quando apareceu nas suas roupas de rapazinho era de um encanto extraordinário. Trazia um gibão de veludo cor de musgo com mangas cor de canela, meias estreitas castanhas com ligas, uma graciosa boina verde com uma pena de falcão pregada com uma jóia, e uma capa de capuz forrada de um vermelho mate. Nunca me parecera tão requintada. Tinha toda a graça delicada daquela estatueta de terracota que você tem no estúdio, Basil. O cabelo emoldurava-lhe o rosto como folhas escuras em volta de uma rosa pálida. Quanto à sua actuação... bem, vão ter ocasião de vê-la esta noite. É simplesmente uma artista nata. Sentado naquele sórdido camarote, senti-me totalmente arrebatado. Esquecime que estava em Londres e no século XIX. Sentia-me longe com a minha amada, numa floresta que nenhum homem jamais vira. Quando o espectáculo terminou, fui ao camarim falar com ela. Quando estávamos sentados os dois, surgiu de repente nos seus olhos uma expressão que nunca vira antes. Os meus lábios aproximaram-se dos seus. Beijámo-nos. Não sei descrever--lhes o que senti nesse momento. Era como se toda a minha vida se tivesse reduzido a um perfeito ponto de alegria cor-de-rosa. Toda ela estremecia e tremia como um narciso branco. Depois pôs-se de joelhos e beijou-me as mãos. Eu sinto que não devia contar-vos tudo isto, mas não posso evitá-lo. Evidentemente que o nosso noivado é um segredo absoluto. Ela nem sequer contou à própria mãe. Não sei o que os meus tutores irão dizer. Lord Radley vai com certeza ficar furioso. Não me importo. Já não falta um ano para eu atingir a maioridade. E então posso fazer o que eu quiser. Fiz bem Basil, não concorda, em ir buscar o meu amor à poesia e encontrar uma esposa nas peças de Shakespeare? Os lábios que Shakespeare ensinou a falar murmuraram-me o seu segredo ao ouvido. Os braços de Rosalinda abraçaram-me, e eu beijei Julieta na boca.

 

- Sim, Dorian, suponho que fizeste bem - disse Hallward, lentamente.

 

- Você viu-a hoje? - perguntou Lord Henry.

 

Dorian Gray negou com movimento de cabeça.

 

- Deixei-a na floresta de Arden, e vou encontrá-la num pomar de Verona.

 

Lord Henry bebericou o seu champanhe de um modo pensativo.

 

- Em que momento exacto mencionou a palavra casamento, Dorian? E o que respondeu ela? É provável que você se tenha esquecido completamente.

 

- Meu caro Harry, eu não considerei isto como uma transacção comercial e não fiz nenhuma proposta formal de casamento. Disse-lhe que a amava, e ela respondeu que não era digna de ser minha esposa. Que não era digna! Ora, o mundo inteiro comparado com ela não tem valor algum.

 

- As mulheres são espantosamente práticas - murmurou Lord Henry -, muito mais práticas do que nós. Em situações desse género nós esquecemonos frequentemente de falar em casamento, mas elas fazem-nos lembrar.

 

Hallward pousou a mão no braço dele.

 

- Não continue, Harry. O Dorian ficou ofendido. Ele não é como os outros homens. Nunca faria ninguém infeliz. Tem uma índole demasiado delicada.

 

Lord Henry olhou do outro lado da mesa.

 

- O Dorian nunca se ofende comigo - respondeu. - Fiz a pergunta pela razão mais plausível, pela única razão que, na verdade, nos desculpa por fazer uma pergunta: simples curiosidade. Eu tenho uma teoria, segundo a qual são sempre as mulheres a proporem-nos casamento e não nós a propor casamento às mulheres. Com excepção, claro, na vida da classe média. Mas também as classes médias não são modernas.

 

Dorian Gray riu-se, atirando a cabeça para trás.

 

- Você é inteiramente incorrigível, Harry, mas não me importo. É impossível ficar zangado consigo. Quando vir Sibyl Vane, você sentirá que o homem que a ultrajasse seria uma fera, sem coração. Não posso compreender como é que alguém pode querer humilhar o ser que ama. Eu amo Sibyl Vane. Quero colocá-la sobre um pedestal de ouro e ver o mundo venerar a mulher que me pertence. O que é o casamento? Um voto irrevogável. É por isso que você fala dele com escárnio. Ah! Não faça zombaria... É um voto irrevogável que eu quero cumprir. Sou fiel porque ela confia em mim, sou bom porque ela acredita em mim. Quando estou com ela, lamento tudo o que você me ensinou. Torno-me diferente daquele que você conheceu. Modifiquei-me, e o simples toque da mão de Sibyl Vane faz-me esquecer de você e de todas as suas erradas, e fascinantes, e venenosas, e deliciosas teorias.

 

- E que são? - perguntou Lord Henry, servindo-se de um pouco de salada.

 

- Ora, as suas teorias da vida, e as suas teorias do amor, e as suas teorias do prazer. Em suma, todas as suas teorias, Harry.

 

- O prazer é a única coisa que merece ter uma teoria - respondeu, com a sua voz lenta e melodiosa. - Mas receio não poder reivindicar a minha teoria como pertença minha. Ela pertence à Natureza e não a mim. O prazer é o teste da Natureza, o seu sinal de aprovação. Quando somos felizes somos sempre bons, mas quando somos bons nem sempre somos felizes.

 

- Ah, mas o que entende você por bons? - exclamou Basil Hallward.

 

- Sim - repetiu Dorian como um eco, recostando-se na cadeira e olhando para Lord Henry, por cima dos pesados ramos de íris de lábios púrpura que estavam no centro da mesa -, o que entende você por bons, Harry?

 

- Ser bom é estar de harmonia consigo mesmo - retorquiu ele, tocando no pé delicado do cálice com os seus dedos pálidos e finos. - O conflito é ser obrigado a estar de harmonia com os outros. O que é importante é a nossa própria vida. Quanto às vidas dos nossos semelhantes, se desejarmos ser moralistas ou puritanos, podemos alardear as nossas opiniões morais sobre elas, mas elas não nos dizem respeito. Além disso, o individualismo tem realmente um objectivo mais elevado. A moralidade moderna consiste em aceitar o modelo da própria época. Considero que uma forma da mais grosseira imoralidade é o facto de qualquer homem de cultura aceitar o modelo da sua época.

 

- Mas, certamente, se se vive simplesmente para si mesmo, Harry, pagase um preço terrível por isso, ou não? – sugeriu o pintor.

 

- Sim, hoje em dia cobram-nos em excesso por tudo. A meu ver, a verdadeira tragédia dos pobres é a de não poderem dar-se ao luxo de coisa nenhuma senão a auto-recusa. Os pecados belos, como as coisas belas, são privilégio dos ricos.

 

- Há outros processos de pagamentos além do dinheiro.

 

- Que processos, Basil?

 

- Ora, imagino que com o remorso, com o sofrimento, com... bem, com a consciência da degradação.

 

Lord Henry encolheu os ombros.

 

- Meu bom amigo, a arte medieval é fascinante, mas as emoções medievais são obsoletas. Podem ser usadas em ficção. Evidentemente. Mas, nesse caso, as únicas coisas que podem usar-se em ficção são as que de facto deixaram de ser usadas. Pode crer que um homem civilizado jamais lamenta o prazer, e que um homem incivilizado jamais sabe o que é o prazer.

 

- Eu sei o que é o prazer - afirmou Dorian Gray. - É adorar alguém.

 

- Sempre é melhor do que ser adorado - respondeu ele, brincando com algumas peças de fruta. - Ser adorado é uma maçada. As mulheres tratam nos exactamente como a Humanidade trata os seus deuses. Veneram-nos, e depois andam sempre a importunar-nos com pedidos.

 

- Eu diria antes que tudo o que nos pedem já nos foi dado primeiro por elas - murmurou o rapaz, gravemente -, Elas geram em nós o amor. Têm, pois, o direito de o pedir de volta.

 

- É absolutamente verdade, Dorian - concordou Hallward.

 

- Não há nada que seja a verdade absoluta - contestou Lord Henry.

 

- Isto é - interrompeu Dorian. - Você tem de admitir, Harry, que as mulheres dão aos homens o verdadeiro ouro das suas vidas.

 

- É possível - comentou ele, com um suspiro -, mas querem invariavelmente... a sua restituição em trocos miudinhos. É isso que se torna preocupante. As mulheres, como dizia, com espírito, um francês, inspiram-nos o desejo de realizar obras-primas, e impedem-nos sempre de as executar.

 

- Harry, como você é horrível! Nem sei por que gosto tanto de si.

 

- Há-de gostar sempre de mim, Dorian - replicou ele. - Querem tomar café, meus amigos? - Criado, sirva-nos café, e um bom champanhe, e traganos cigarros. Não, cigarros não, ainda tenho alguns. Basil, não posso permitir que fume charutos. Tem de fumar um cigarro. Um cigarro é o modelo perfeito de um prazer perfeito. É delicioso e deixa-nos insatisfeitos. Que mais podemos desejar? Como estava a dizer, Dorian, você há-de gostar sempre de mim. Represento para si todos os pecados que nunca teve coragem de cometer.

 

- Não diga disparates, Harry! - exclamou o rapaz acendendo um cigarro na chama de um dragão de prata que soprava fogo, e que o criado tinha pousado em cima da mesa. - Vamos para o teatro. Quando Sibyl aparecer no palco, você terá um novo ideal de vida. Ela representará para si algo que nunca conheceu.

 

- Já conheci tudo - disse Lord Henry, com um olhar fatigado - e estou sempre pronto para uma nova emoção.

 

- Mas suponho que, pelo menos para mim, isso não existe. Mesmo assim, pode ser que a sua admirável rapariga me faça vibrar. Adoro teatro. É muito mais real do que a vida. Vamos, então. Dorian, você vem comigo. Lamento muito, Basil, mas só há lugar para dois na berlinda. Você vai ter que seguirnos de fiacre.

 

Levantaram-se e vestiram os casacos, bebendo o café de pé. O pintor estava silencioso e preocupado. Dominava-o uma certa melancolia. Este casamento era-lhe insuportável, e, no entanto, parecia-lhe preferível a muitas outras coisas que poderiam ter acontecido. Uns minutos depois, passaram ao andar inferior. Hallward seguiu sozinho, como fora combinado, e via as luzes brilhantes da pequena berlinda que ia à sua frente. Apoderou-se dele uma estranha sensação de perda. Sentia que Dorian Gray nunca voltaria a ser para si tudo o que havia sido no passado. A vida interpusera-se entre eles. Os olhos toldaram-se-lhe, e via como numa névoa as ruas movimentadas e iluminadas.

 

Quando o fiacre parou ao chegar ao teatro, tinha a impressão de ter envelhecido. 

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