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A Mulher da Capa Preta

Capítulos 5

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A Mulher da Capa Preta Capítulo 5

Descida à Loucura

O apartamento de Arthur havia se tornado um reflexo de sua mente: desordenado, caótico, um lugar onde o tempo parecia não existir mais. As cortinas estavam sempre fechadas, o ambiente exalava o cheiro de mofo e papel velho, e o som da rua mal penetrava a camada densa de isolamento que ele criava ao seu redor. A única coisa que se movia ali dentro era ele — e as sombras que pareciam acompanhá-lo a cada passo.

Dias, talvez semanas haviam se passado desde a última noite no cemitério. Ele já não sabia mais o que era real. A voz de Carol o seguia, ecoando nos corredores, nos espelhos e até mesmo nos suspiros do vento. Às vezes, ela sussurrava coisas doces, promessas de um futuro juntos. Outras, ela apenas ria — um som que o fazia querer gritar e rasgar a própria pele.

Arthur não tinha mais um emprego. Não havia como manter uma rotina, como sair e fingir normalidade quando tudo o que ele via e ouvia era ela. Seus amigos, as poucas pessoas que ainda tentavam se comunicar, agora evitavam-no. Rodrigo, o velho amigo que o levou à festa de São João, tentou visitá-lo uma vez, mas Arthur o expulsou aos gritos, acusando-o de não entender, de não ver o que ele via. Desde então, o telefone não tocava mais.

Foi numa manhã, quando a luz fraca do sol penetrou pelas frestas da janela, que Arthur finalmente percebeu que estava sozinho. Completamente sozinho. E Carol? Ela estava em todo lugar e lugar nenhum, um espectro que o observava de longe, sussurrando segredos que ele nunca conseguia decifrar. Ele precisava encontrá-la de novo. Sentir sua presença. Precisava entender.

Foi então que ele decidiu voltar ao cemitério.

A noite estava gélida, o ar impregnado com um cheiro metálico que lembrava sangue e ferrugem. Arthur atravessou os portões do cemitério com passos hesitantes. Cada lápide parecia observá-lo, cada cruz e estátua de anjo uma testemunha silenciosa de sua degradação.

Ele andou sem rumo por algum tempo, os olhos varrendo a escuridão em busca de qualquer sinal dela. Mas o lugar estava vazio, silencioso demais. E então, ele ouviu.

— Arthur...

A voz veio de algum lugar à sua esquerda, um sussurro frágil e convidativo. Ele girou, os olhos arregalados.

— Carol? — Ele chamou, a voz trêmula e rouca.

Nada. Apenas o vento, carregando folhas secas e o som distante da cidade adormecida.

— Eu estou aqui... — o sussurro soou novamente, agora à sua direita.

Arthur virou-se bruscamente, o coração disparado. E então a viu — uma silhueta no meio da névoa, de pé ao lado de uma grande árvore morta. Ela usava a capa preta, o rosto escondido pela sombra, mas ele sabia que era ela.

Com passos trôpegos, ele avançou. A cada metro que se aproximava, sentia o mundo ao seu redor se desvanecer. A cidade, o cemitério, tudo desaparecia. Apenas Carol e ele existiam.

— Você voltou — ele murmurou, os dedos trêmulos se estendendo para tocá-la.

Mas, quando sua mão quase roçou o tecido, ela recuou, desaparecendo na névoa.

— Não! — Arthur gritou, a dor de vê-la se afastar quase física. — Por favor, não me deixe!

— Eu nunca vou te deixar — ela sussurrou de algum lugar atrás dele.

Arthur girou, o olhar frenético procurando por ela, mas só encontrou escuridão e vazio.

— O que você quer de mim? — ele gritou, caindo de joelhos. — Por que me trouxe aqui?

— Porque eu preciso de você, Arthur — ela murmurou, a voz mais próxima agora, acariciando seus ouvidos como um toque gelado. — Preciso que você me liberte.

— Como? — ele arfou, as lágrimas escorrendo por seu rosto pálido. — O que eu tenho que fazer?

O silêncio que se seguiu foi opressor. E então, muito lentamente, ela apareceu na borda de sua visão, parada ao lado de uma lápide alta e antiga. Arthur se levantou, tropeçando até ela.

A lápide era diferente das outras, coberta por musgo e quase invisível sob a sombra das árvores. Ele estendeu a mão e limpou a poeira, revelando a inscrição gravada na pedra fria:
“Aqui jaz Carol. Que nunca mais a terra prenda seu espírito inquieto.”

Arthur piscou, os olhos fixos no nome. E então, algo clicou dentro de sua mente. Ela estava presa ali. Condenada a vagar pelo cemitério, a aparecer para estranhos e desaparecer sem nunca encontrar descanso. Era isso que ela queria dele.

— Você... — ele começou, a voz falhando. — Você quer ser livre?

Ela assentiu lentamente, os olhos tristes e esperançosos.

Arthur sentiu o estômago revirar. Ele faria qualquer coisa por ela. Qualquer coisa para acabar com sua dor. Mas como libertar alguém que já estava morta?

— Eu preciso de você, Arthur — ela repetiu, dando um passo à frente. Ele sentiu o frio emanando dela, como uma névoa que envolvia seus ossos. — Eu preciso que você me acompanhe. Que me ajude a escapar.

— Como? — ele repetiu, desesperado.

Ela levantou a mão, o dedo apontando para seu próprio peito.

— Tudo o que você precisa fazer... é aceitar.

Arthur não entendeu. Ele a encarou, os olhos perdidos nos dela. E então, muito lentamente, como em um sonho, ele sentiu o próprio corpo se inclinar para frente, o peito pressionado contra o dela. 

Sentiu o frio, a dor. Sentiu-se afundar em algo escuro e profundo, como se o chão estivesse se abrindo para engoli-lo.

— Arthur! — alguém gritou, a voz vinda de muito longe.

Ele piscou, e o mundo ao seu redor pareceu voltar com um choque. Ele estava de pé, sozinho, a lápide diante dele, as sombras ondulando. E à distância, alguém corria em sua direção.

— Arthur! — Rodrigo apareceu no campo de visão, ofegante. — O que você está fazendo aqui?

Arthur piscou, confuso. A presença de Carol se dissipou como fumaça, e ele olhou ao redor, perdido.

— Eu... eu estava com ela — ele murmurou.

Rodrigo agarrou seus ombros, o olhar alarmado.

— Não, cara, você estava sozinho. Fiquei preocupado e fui procurá-lo. Você estava desaparecido por dias! O apartamento estava vazio. Na volta, virei a esquina e vi você entrando aqui.

— Não... — Arthur tentou protestar, mas as palavras se desfizeram em seus lábios.

Rodrigo o puxou para longe da lápide, os passos rápidos e decididos. Ele o levou para fora do cemitério, a cada passo parecendo mais difícil para Arthur respirar. A presença dela se desvanecia. Carol estava desaparecendo.

— Não! — ele gritou, tentando se desvencilhar. — Eu preciso voltar! Ela precisa de mim!

— Precisa de você? — Rodrigo explodiu, os olhos incrédulos. — Arthur, ela está morta! Você não entende? Você está obcecado por um fantasma!

Arthur ficou mudo. Ele sabia que era verdade. Mas isso não mudava nada. A voz dela ainda estava lá, no fundo de sua mente, chamando-o. Ele precisava libertá-la. Não importava o que acontecesse. E, mesmo enquanto Rodrigo o levava para longe, Arthur sabia. 

Ele voltaria. E, da próxima vez, ele não deixaria ninguém interferir.

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