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As Aventuras de Robin Hood - Livro 1

Capítulos 1

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As Aventuras de Robin Hood Capítulo 05

Àquele tumultuado início de noite sucedeu um final calmo e silencioso. O monge mais moço e Lincoln voltaram da expedição à floresta onde enterraram o bandido morto. Marian e Marguerite só mesmo em sonhos se lembravam do barulho da batalha. Allan, Robin, Lincoln e os dois religiosos recuperavam as forças em profundo sono. Somente Gilbert Head estava ainda acordado.

Junto à cama de Ritson, que perdera os sentidos, ele esperava ansioso que o agonizante abrisse os olhos e não conseguia acreditar… acreditar que aquele indivíduo de faces lívidas e desfeitas, marcado pelo vício e envelhecido pela devassidão mais do que pela idade, fosse o alegre e bonito Ritson de antigamente, irmão querido de Marguerite e noivo da infeliz Anete.

De mãos juntas, Gilbert exclamou:

— Permita Deus que ele não morra logo!

E Deus o permitiu. Quando o sol nascente inundou o quarto de luz, Ritson, como se despertasse do sono da morte, estremeceu, deu um longo gemido de arrependimento e, tomando a mão do cunhado, levou-a aos lábios e balbuciou estas palavras:

— Pode me perdoar?

— Primeiro fale — respondeu Gilbert, que tinha pressa de ouvir esclarecimentos sobre a morte da sua irmã Anete e sobre o nascimento de Robin. — O perdão virá depois.

— Morrerei menos infeliz.

O acamado já ia começar as revelações quando um barulho de vozes alegres se ouviu na sala do andar térreo.

— Pai, está dormindo? — perguntou Robin ao pé da

— Já é hora de partir para Nottingham, se quisermos voltar ainda hoje — acrescentou Allan

— Se aceitarem, amigos — juntou-se o monge hercúleo —, participo da viagem, pois tenho uma boa obra a realizar no castelo de Nottingham.

— Venha, pai, desça para que a gente se despeça.

Contrariado, Gilbert desceu, temendo que o doente expirasse a qualquer momento. Queria voltar ao quarto assim que pudesse, esperando não ser mais interrompida aquela conversa solene da qual deveriam sair revelações importantes.

Foram rápidos então os adeuses a Robin, Allan e o monge. Marian e Marguerite os acompanhariam até não muito longe de casa, num passeio matinal, para se distraírem, e Lincoln foi enviado a Mansfieldwoohaus por um pretexto qualquer. O padre Eldred, por sua vez, aproveitou a oportunidade para visitar a aldeia. Todos voltariam a se reunir no final do dia.

— Estamos sozinhos agora; você fala e eu escuto — disse Gilbert, voltando a se sentar à cabeceira de Ritson.

— Não vou entrar em detalhes, irmão, sobre todos os crimes, todas as monstruosidades de que sou culpado. Seria demorado demais. E para que, aliás, contar tudo isso? Sei que dois assuntos apenas o interessam: Anete e Robin, não é?

— É verdade. Comece por Robin — respondeu Gilbert, que temia que o moribundo não tivesse tempo para as duas confissões.

— Você sabe que deixei Mansfieldwoohaus, há vinte e três anos, e fui trabalhar para Filipe Fitzooth, barão de Beasant. Esse título lhe fora dado pelo rei Henrique, como recompensa pelos serviços prestados durante a guerra contra a França. Filipe Fitzooth era o filho caçula do velho conde de Huntingdon, morto bem antes da minha chegada à casa, e que deixara todos os seus bens e títulos para o filho mais velho, Robert Fitzooth.

“Algum tempo depois da herança, Robert perdeu a esposa em trabalhos de parto e concentrou todo seu afeto no herdeiro que lhe foi deixado. A frágil e delicada criança só sobreviveu à custa de cuidados constantes e zelosos. O conde, que não se consolava da morte da mulher, tinha pouca esperança com relação ao futuro de seu filho e se deixou dominar pela tristeza. Em pouco tempo ele morreu, confiando ao irmão Filipe a missão de cuidar do único descendente da sua raça.

“Filipe de Fitzooth, que já ostentava o título de barão de Beasant, assumiu o imperioso dever, mas a ambição, o desejo de galgar a hierarquia nobiliárquica e a possibilidade de herdar uma fortuna colossal o fizeram esquecer as recomendações do irmão. Após alguns dias de hesitação, decidiu se livrar da criança. Logo, porém, teve que abrir mão do projeto pois o jovem Robert vivia cercado de numerosa criadagem, lacaios, guardas e os habitantes do condado, os quais lhe eram devotados e não deixariam de protestar ou até se revoltar caso Filipe Fitzooth se atrevesse a abertamente usurpar os seus direitos.

“Ele pensou melhor e levou em consideração a fraca constituição do herdeiro que, na opinião dos médicos, não demoraria a sucumbir se levasse vida desregrada ou se dedicasse a exercícios violentos.

“Foi com essa intenção que Filipe Fitzooth me chamou para o seu serviço. O conde chegava aos dezesseis anos e, pelos infames cálculos do tio, eu deveria levá-lo à perdição, usando os meios que fossem necessários: quedas, acidentes, doenças. Ou seja, tudo deveria ser tentado para que ele rapidamente morresse. Tudo, exceto o assassinato.

“Envergonhado confesso, bravo Gilbert, que fui um digno e dedicado executor das ordens do barão de Beasant, que não podia controlar de perto meu trabalho corruptor e assassino, uma vez que o rei Henrique o havia colocado no comando de um corpo do exército na França. Que Deus me perdoe! Eu poderia ter aproveitado a sua ausência para desfazer aquela trama odiosa, mas, pelo contrário, esforcei-me para ganhar a recompensa prometida para o dia em que anunciasse a morte de Robert.

“Ele, porém, à medida que cresceu, ficou mais forte. Não se cansava mais: por mais que corrêssemos, dia e noite, sob qualquer tempo, campos e florestas, tabernas e lugares suspeitos, era eu que em geral pedia para descansar. Meu amor-próprio ficava ferido e se o barão me houvesse enviado um bilhete, uma só palavra ambígua que me permitisse abalar aquela maravilhosa e indestrutível saúde, eu não hesitaria a utilizar algum veneno lento para cumprir minha obra.

“A tarefa, então, ficava mais difícil a cada dia. Gastei todos os recursos da imaginação e não encontrei meio natural nenhum para abalar o estranho vigor do meu pupilo. Eu mesmo é que me desgastava e estava a ponto de romper meu trato com o barão de Beasant, quando finalmente percebi algumas mudanças na fisionomia e nos modos do jovem conde. Mudanças de início quase imperceptíveis, mas que foram se tornando visíveis, reais, definidas. Ele perdeu a vivacidade e a alegria; permanecia triste e em devaneios por horas a fio. Nas caçadas, quedava-se imóvel na hora da largada ou passeava solitariamente, enquanto os cães perseguiam a presa. Pouco comia e dormia, parou de beber, afastou-se das mulheres e mal falava comigo uma ou duas vezes por dia.

“Sem esperar que se abrisse em confidências, procurei espioná-lo para descobrir a causa de tão patente mudança. Mas era difícil, pois ele sempre encontrava pretextos para se livrar de mim.

“Um dia em uma caçada, perseguíamos um cervo e chegamos aos limites da floresta de Huntingdon. O conde resolveu que parássemos para descansar e depois me disse, sem dar muita explicação:

“ — Roland, espere ao pé desse carvalho. Volto dentro de algumas horas.

“Acatei e o conde se embrenhou pelo mato. Amarrei os cães numa árvore e saí atrás dele, seguindo pela vegetação as marcas da sua passagem. Mas apesar do meu esforço, ele escapou e vaguei por um bom tempo, tanto que acabei me perdendo.

“Bem desapontado pelo desperdício da oportunidade para desvendar o mistério em que Robert se escondia, eu tentava voltar à árvore junto à qual devia esperá-lo, mas ouvi a poucos passos de mim, por trás de umas moitas, uma voz carinhosa, uma voz bem moça… Parei, afastei sem fazer barulho a vegetação e vi, sentados lado a lado, conversando e rindo de mãos dadas, meu amo e uma bela menina de dezesseis ou dezessete anos.

“— Entendi tudo — pensei comigo mesmo. — Essa é uma novidade pela qual o sr. barão de Beasant não esperava! Robert está apaixonado e isso explica a insônia, a tristeza, a falta de apetite e, sobretudo, os passeios solitários.

“Prestei atenção ao que diziam os dois enamorados, esperando descobrir algum segredo, mas nada ouvi além das palavras de praxe em tais circunstâncias.

“O dia declinava. Robert se levantou e, dando o braço à amiga, acompanhou-a até a orla da floresta, onde um criado a esperava, com dois cavalos. Eu os seguia de longe e ali eles se separaram, com meu amo voltando apressado para onde me havia deixado.

“Consegui chegar antes, desamarrei os cães e toquei a trompa o mais forte que pude.

“— Por que esse barulho? — ele perguntou ao chegar.

“— O sol já se pôs, sr. conde. Temia que tivesse se perdido na floresta.

“— Não me perdi — ele respondeu com frieza. — Vamos para o castelo. “Os encontros de Robert com a bem-amada se repetiram muitas vezes.

Para facilitar as coisas, ele acabou me pondo a par do segredo, e só o transmiti ao barão de Beasant depois de me informar perfeitamente sobre a situação da jovem. Miss Laura pertencia a uma família com grau nobiliárquico menos elevado do que a de Robert, mas cuja aliança não constituía nenhum desdouro.

“O barão mandou que eu impedisse a qualquer preço o casamento, chegando inclusive a dizer que, se necessário, eu sacrificasse a moça.

“A ordem me pareceu cruel, perigosa e, acima de tudo, difícil de se executar. Quis dizer não, mas como poderia, vendido que estava, de corpo e alma, ao barão de Beasant?

“Não sabia mais qual partido tomar nem a qual demônio pedir conselho até que, confiante e indiscreto como todo homem enamorado, Robert me contou que havia escondido de miss Laura a sua posição social, para ter certeza de realmente ser amado. A jovem o imaginava filho de um lenhador e, mesmo assim, se dispunha ao casamento.

“Ele alugou uma casinha modesta no vilarejo de Loockeys, em Nottinghamshire, para lá morar por certo tempo com sua jovem mulher. Para que ninguém desconfiasse, ao deixar o castelo de Huntingdon dissemos que ele ia passar uma temporada na Normandia com o tio, o barão de Beasant.

“E o plano funcionou maravilhosamente bem. Um padre casou em segredo os dois enamorados, tendo sido eu a única testemunha, e fomos viver na tal casa de Loockeys.

“Longos dias de alegria se passaram, apesar das ordens explícitas do barão, que eu mantinha ao corrente dos acontecimentos e me ameaçava por não haver impedido a união… Na verdade, não tive como; abençoado seja Deus, posso dizer agora!

“Após um ano de felicidade sem qualquer contratempo, Laura deu à luz um filho, mas isso lhe custou a vida.”

— E esse filho — atalhou cheio de ansiedade Gilbert — seria…?

— Isso mesmo, a criança que lhe confiamos há quinze anos.

— Robin, então, é conde de Huntingdon?

— Exatamente, Robin é conde, Robin…

Graças à febre do remorso, Ritson havia conseguido falar até então, mas bastou a interrupção para que voltasse a parecer prestes a expirar.

— Meu filho adotivo é conde — repetiu com orgulho o velho Gilbert Head —, conde de Huntingdon! Mas continue, irmão, continue a história de Robin.

Ritson reuniu o que lhe restava de força e prosseguiu:

— Desconsolado, Robert perdeu todo ânimo e ficou prostrado a ponto de acabar adoecendo gravemente.

“Muito descontente comigo, o barão de Beasant avisou seu regresso e acreditei agir conforme os seus interesses mandando enterrar a condessa Laura num convento das proximidades, sem revelar sua condição de mulher do conde Robert. A criança foi deixada com uma ama de leite, uma camponesa conhecida minha. Como anunciado, o barão voltou à Inglaterra e, achando preferível não desmentir a viagem de Robert à França, mandou que fosse transportado ao castelo, dizendo que havia adoecido durante a viagem.

“O destino favorecia o barão de Beasant, que atingia suas metas e já se imaginava herdando os títulos e a fortuna do conde de Huntingdon, Robert, prestes a morrer…

“Pouco antes de dar seu último suspiro, o infortunado rapaz chamou o tio à sua cabeceira, contou seu casamento com Laura e o fez jurar sobre o Evangelho que cuidaria do pequeno órfão. O barão jurou… mas antes até que o cadáver do infeliz esfriasse, fui chamado à câmara mortuária e foi a minha vez de jurar sobre o Evangelho que jamais revelaria, enquanto vivesse, o casamento de Robert, o nascimento do filho e as circunstâncias da sua morte.

“Minha dor foi imensa, pois chorava pela lembrança do meu amo, ou melhor, pupilo, meu companheiro tão amável e bom, magnífico comigo e com todos; mas era preciso obedecer ao barão de Beasant.

“De forma que jurei e trouxemos até aqui a criança deserdada.”

— E o barão de Beasant, depois de se tornar por usurpação conde de Huntingdon, que fim levou? — perguntou Gilbert.

— Morreu num naufrágio, no litoral da França. Eu estava com ele, do mesmo modo que o acompanhei vindo aqui, e trouxe à Inglaterra a notícia da sua morte.

— E quem o sucedeu?

— O rico abade de Ramsey, William

— Não acredito! Um abade desfruta do que pertence a meu filho?

— Esse mesmo abade me engajou a seu serviço e há poucos dias injustamente me despediu, por ter brigado com um dos seus criados. Com o coração cheio de raiva, jurei me vingar… E mesmo morrendo a vingança se concretizará, pois seria não conhecer Gilbert Head achar que Robin vá passar muito tempo sem pleitear o que é seu.

— É um direito! E do qual ele não será mais privado — garantiu Girbert.

— Ou morrerei tentando. Quem são os parentes por parte de mãe? Para eles também é interessante que Robin seja reconhecido conde da Inglaterra.

— Sir Guy de Gamwell-Hall é o pai da condessa

— Como assim!? O velho sir Guy de Gamwell-Hall, que mora do outro lado da floresta com seus seis robustos filhos, hercúleos caçadores de Sherwood?

— Ele mesmo, irmão.

— Pois com a sua ajuda vou tirar do castelo de Huntingdon o sr. abade, o rico e poderoso abade de Ramsey e barão de Broughton, como as pessoas chamam.

— Posso contar então como certa minha vingança, irmão? — perguntou Ritson com voz forte.

— Pela minha palavra e por meu braço, juro, se Deus me der vida até lá, que Robin será conde de Huntingdon, apesar de todos os abades da Inglaterra! E olhe que são muitos!

— Terei com isso reparado pelo menos alguns dos meus erros.

A agonia de Ritson durou e ele, de vez em quando, recuperava forças para novas confissões. Não havia ainda contado tudo; seria por vergonha ou a proximidade da morte já lhe obscurecia a memória?

— É verdade — murmurou de repente o moribundo, depois de um demorado estertor. — Já ia me esquecendo de uma coisa importante… muito importante.

— Fale — disse Gilbert dando-lhe apoio à cabeça. —

— O cavaleiro e a jovem dama a quem você deu hospitalidade…

— Sim?

— Eu devia matá-los. Ontem… o barão Fitz-Alwine me pagou para isso. E temendo que eu não os encontrasse, enviou também aqueles meus cúmplices, que vocês desbarataram na última noite. Não sei por que o barão os quer mortos… avise a eles da minha parte. Para que não se aproximem do castelo de Nottingham.

Uma má sensação invadiu Gilbert, pois era tarde demais para avisar Allan e Robin, que tinham partido exatamente para Nottingham.

— Ritson, temos conosco um frade beneditino; não quer que eu vá buscá-lo para reconciliá-lo com Deus?

— Não, estou condenado! Condenado, condenado. E não chegaria a tempo… estou morrendo.

— Coragem, irmão.

— Estou morrendo, e se me perdoar, Gilbert, prometa me enterrar entre o carvalho e a faia, junto à encruzilhada que leva a Mansfieldwoohaus. Cave minha tumba entre as duas árvores. Pode prometer isso?

— Prometo.

— Obrigado, bom Gilbert…

Mas contorcendo-se de desespero, Ritson acrescentou:

— Não imagina os meus crimes! Preciso confessar tudo!… Vai ainda prometer me enterrar onde pedi?

— Prometo.

— Gilbert Head, a sua irmã, você se lembra?

— Anete! — murmurou o guarda-florestal, pálido e com um gesto convulsivo das mãos. — Como não lembraria? O que sabe da minha pobre irmã desaparecida na floresta, raptada por um fora da lei ou devorada pelos lobos? A doce e bonita Anete.

Com o tremor da morte e a voz quase sumida, Ritson disse:

— Assim como você amava Marguerite, Gilbert, que é minha irmã, amei Anete. Amei-a loucamente, ao delírio, e ninguém sabia que eu a amava tanto. Um dia encontrei-a por acaso na floresta e esqueci que um homem honrado deve respeitar a jovem com quem pretende se casar. Anete altivamente me rejeitou, jurando nunca me perdoar… Implorei de joelhos, disse que me mataria… Ela se sensibilizou e ali mesmo, junto às árvores onde pedi para ser enterrado, trocamos juras de amor… Poucos dias depois, enganei-a de forma indigna, horrível… Um amigo, vestido de padre, casou-nos em segredo.

— Com mil diabos! — rugiu Gilbert, vermelho de raiva e se agarrando à madeira da cama para não estrangular o miserável.

— Sei que mereço a morte e isso não vai tardar… Gilbert, não me mate, não contei tudo ainda… Anete achou então que nos casamos. Era pura, inocente demais para desconfiar da perfídia, aceitando tudo que inventei para adiar a revelação do casamento à sua família. Consegui fazer isso até o momento em que engravidou. Tornou-se impossível então que continuasse sob o teto do seu pai. Na mesma época, você se casou com minha irmã. Anete me pressionou para que tornássemos público o nosso próprio casamento, tinha chegado a hora. Mas eu não a amava mais e sonhava ir embora sem avisar nada. Num fim de tarde, ela marcou de nos encontrarmos no mesmo carvalho em que eu havia jurado amá-la eternamente. Fui até lá com a cabeça cheia de sinistros pensamentos e com frieza ouvi todas as queixas e súplicas, misturadas a lágrimas e soluços. Mas por que não continuei surdo e indiferente quando, lançando-se aos meus pés e abraçando minhas pernas, pediu que a apunhalasse, em vez de abandoná-la. Mal essas palavras: “Mate-me” atravessaram os seus lábios, o demônio, tenho certeza, o demônio me fez sacar o punhal e desferi uma, duas, três punhaladas… Estávamos sozinhos, já noite caída… Fiquei parvo, de pé, sem me mexer, não tinha consciência do crime, não me lembrava mais do que fizera e acho que nem pensava em coisa alguma. De repente, senti nas pernas uma sensação de calor e era o sangue de Anete que escorria em mim! Despertei da letargia, dei-me conta do crime e quis fugir, mas as mãos dela seguraram meu pé e ouvi a sua voz suave dizer: “Obrigada, Roland, obrigada!” Deus quis me punir por toda a vida, pois no momento em que compreendi o que havia feito, não tive forças para me matar por cima do pobre cadáver.

— Maldito miserável! Matou minha irmã! — repetia Gilbert toda vez que Ritson parava para tomar fôlego. — O que fez do corpo, assassino infame?

— Enquanto ela agradecia, os raios da lua, atravessando a folhagem, iluminaram a sua pálida figura e entendi que me perdoava… Estendeu em seguida as mãos e deu seu último suspiro, depois de murmurar ainda: “Obrigada, Roland, obrigada. Prefiro a morte do que a vida sem o seu amor! Que ninguém saiba o que aconteceu… enterre meu corpo junto dessa árvore.” Não sei por quanto tempo permaneci ali, fulminado, sem sentidos ao lado do cadáver da infeliz Anete. Só voltei a mim pela impressão de uma forte dor no braço, que parecia estar sendo dilacerado por dentes afiados. Não era só impressão: um lobo, atraído pelo cheiro de sangue, me mordia… A luta que travei com o animal me devolveu o sangue-frio. Percebi que se não enterrasse rapidamente o corpo da minha vítima, o crime seria descoberto. Abri uma cova entre o carvalho e a faia de que falei e, depois de cobrir a pobre Anete, fugi, torturado por remorsos, andando às cegas pela floresta até o amanhecer… Foi quando vocês me encontraram estendido no chão, todo mordido e coberto de sangue… Os lobos estavam atrás de mim, iam me devorar e, sem vocês, eu já receberia logo ali o castigo por meu crime! No dia seguinte, estando todos alarmados com o desaparecimento de Anete, nada contei e até ajudei a procurá-la, levantando a suspeita de que algum fora da lei a houvesse raptado ou que animais ferozes a tivessem devorado…

Gilbert não ouvia mais; apoiado no parapeito da janela, ele chorava. Em vão o miserável moribundo gritou: “Estou morrendo! Não se esqueça do carvalho!” Imóvel e mergulhado na dor, o irmão de Anete permaneceu ali por muito tempo e, quando voltou a se aproximar da cama, Ritson estava morto.

DURANTE TODA A AGONIA de Roland Ritson, nossos três viajantes a caminho de Nottingham, Allan, Robin e o frade, aquele mesmo frade de enorme apetite, coração valente e vigorosa corpulência, rapidamente atravessavam a imensa floresta de Sherwood. Conversavam, riam e cantavam. Às vezes era o volumoso frade que contava alguma aventura maliciosa, quando não a voz límpida de Robin que começava uma balada, ou Allan que, com suas reflexões inteligentes, impressionava os companheiros de viagem.

— Mestre Allan — disse Robin a certo momento —, o sol já indica o meio-dia e meu estômago nem se lembra mais do que ingeriu pela manhã. Se aceitar a ideia, podemos descer até a beira do riacho que corre ali perto; tenho provisões na bolsa e podemos comer enquanto descansamos.

— A proposta é de muito bom senso, meu filho — aparteou o monge. — Tem meu apoio do fundo do coração, posso dizer até que dos meus dentes.

— Nada contra, Robin — disse Allan. — Lembro só que é imprescindível que eu chegue ao castelo de Nottingham antes de o sol se pôr, e se esse descanso for nos atrasar, prefiro continuar.

— Como queira — respondeu Robin. — Se continuar, continuamos também.

— Ao riacho! Ao riacho! — implorou o padre. — Faltam apenas três milhas para Nottingham e podemos cobrir dez vezes essa distância antes que escureça. Não vai ser uma horinha de descanso e uma boa comida que vão nos impedir.

Mais tranquilo com a observação do frade, Allan aceitou dar uma parada e foram os três se sentar à sombra de um grande carvalho, no fundo de um agradável vale, por onde serpenteava um riozinho de águas puras e transparentes, sobre um leito de seixos brancos e rosados e margens de relva florida.

— Que lindo lugar! — exclamou Allan, olhando em detalhe as belezas daquele retiro do mundo. — Esse pequeno paraíso terrestre, caro Robin, me parece um tanto afastado da sua casa para que venha descansar aqui com frequência, não?

— Tem razão. É raro virmos aqui. Somente uma vez por ano e não quando tudo está verde, florescente e bonito como hoje, e sim durante o inverno, com tudo devastado e o vento a sacudir lugubremente as árvores despidas de folhagem e carregadas de O coração se enche de tristeza, como o céu de nuvens, e o luto da natureza se solidariza ao nosso.

— Por que o luto, Robin?

— Está vendo aquela faia que se ergue no meio de um maciço de roseiras-bravas? Há um túmulo ao lado, do irmão do meu pai, Robin Hood, de quem herdei o nome. Eu nem era nascido, meu pai e ele voltavam de uma caçada e foram atacados por Defenderam-se com bravura, mas, infelizmente, meu tio Robin recebeu uma flechada em pleno peito e caiu para não se levantar mais. Depois de vingá-lo, Gilbert ergueu esse humilde mausoléu que visitamos todo ano para rezar e chorar, no mesmo dia em que aconteceu a desgraça.

— Não há lugar no universo, por mais bonito, que o homem não tenha profanado — observou sentenciosamente o frade.

Em seguida, mudando de tom, acrescentou com alegre impaciência:

— E então, Robin, vamos deixar dormirem os mortos e pensar em quem está vivo e aqui presente. Mortos não têm fome, mas ela nos devora. Vamos lá, abra essa sacola! Pelo que disse, contém tesouros comestíveis.

Sentados na relva à beira do riacho, os três companheiros banquetearam à vontade, graças à boa previdência de Marguerite e um bom cantil de couro cheio de um vinho envelhecido da França, que passou e voltou a passar tantas vezes das mãos às bocas e vice-versa que os três foram ficando bem expansivos e a pausa prevista se prolongou bastante, sem que ninguém percebesse. Robin cantou várias canções. Sentindo-se no sétimo céu, Allan descrevia com pompa os encantos e qualidades de lady Christabel. O frade falava pelos cotovelos e gritou ao eco chamar-se Gil Sherbowne, de boa família camponesa, e que preferia, em vez da vida no convento, o cotidiano ativo e independente dos moradores da floresta. Disse também ter comprado, do frade superior do convento, e pago bem caro, o direito de agir como bem entendesse e de fazer uso do bastão.

— Por isso me chamam frei Tuck — ele explicou —, pelo talento na estocada, em geral com o hábito erguido até a altura dos joelhos. Sou bom com quem é bom e mau com quem é mau. Estendo a mão aos amigos e o porrete aos inimigos. Canto baladas para rir ou canções para beber, dependendo se queira rir ou beber. Rezo para os carolas, salmodio o Oremus para os beatos e sei boas anedotas para quem detesta homilias. Este é o frei Tuck! E o senhor, cavaleiro Allan, como se apresentaria a nós?

— Vou me apresentar, então, se me deixar também falar — brincou Allan.

Era Robin quem tinha nas mãos o cantil, que não estava ainda vazio, e frei Tuck fez um gesto para pegá-lo.

— Nada disso! Um minuto! — disse o — Só passo adiante se não interromper Allan Clare.

— Juro que não interrompo, mas passe o vinho.

— Veremos quando o cavaleiro tiver terminado.

— É muita maldade! Nem consigo respirar de tanta sede!

— Pois mate-a com água.

O monge fez uma careta e se deitou na relva, como se preferisse dormir a ouvir a história de Allan Clare.

— Sou de origem saxã — começou o cavaleiro. — Meu pai era muito ligado ao chanceler de Henrique II, Thomas Becket,27e isso causou todo o seu infortúnio, pois ele teve que se exilar quando o ministro morreu.

Robin quase imitou o frade, pois os elogios pomposos de Allan à própria família o interessavam muito pouco, mas mudou de ideia assim que o nome de Marian foi pronunciado. Com o coração agitado, passou a ouvir… e ouviu tão atento que não percebeu Tuck se erguer de fininho nos cotovelos e tirar das suas mãos o cantil de couro. Toda vez que Allan parava de falar da bela Marian, Robin encontrava como levar a conversa de volta ao que o interessava. Mas teve que aguentar o cavaleiro descrever seus amores e demoradamente se extasiar lembrando os encantos da nobre Christabel, filha do barão de Nottingham. Muito comunicativo por efeito do vinho francês, ele expôs todo o ódio que tinha pelo fidalgo.

— Enquanto minha família gozou dos favores da corte, o barão de Nottingham via com bons olhos o nosso amor e me dizia seu filho, mas assim que os ventos mudaram, fechou a porta e deixou claro que eu nunca me casaria com Christabel. Por minha vez jurei o contrário, lutando desde então por isso. E creio ter conseguido… Hoje à noite, isso mesmo, logo mais terá que me dar a mão de Christabel ou será Descobri por acaso um segredo que, se o revelar, posso levá-lo à ruína e à morte. E é o que vou fazer quando estivermos frente a frente, vou propor uma troca: “barão de Nottingham, meu silêncio por sua filha”.

E teria continuado na mesma toada por bastante tempo ainda e Robin, que mentalmente fazia comparações entre Marian e Christabel, não pensava interrompê-lo, mas Allan de repente notou que o sol já descia no horizonte.

— Precisamos ir — alarmou-se.

— Precisamos ir, frei Tuck — chamou Robin.

Mas o frade dormia deitado de lado, com o cantil vazio apertado contra o peito.

Ficou para o cavaleiro o trabalho de acordar o religioso e Robin correu ao túmulo do irmão de Gilbert, pois seria um sacrilégio ir embora sem uma homenagem.

Já fazia o sinal da cruz após uma rápida oração, quando ouviu gritaria, imprecações e risadas. O cavaleiro e o frade lutavam, ou melhor, o frade rodopiava seu terrível porrete por cima da cabeça de Allan, que tentava aparar os golpes com a lança e ria, ria às gargalhadas, enquanto o beneditino vociferava maldições.

— Ei, amigos! Que mosca os picou? — gritou Robin.

— A sua lança pode picar, mas meu bastão bate forte, belo fidalgo — berrava o frade rubro de raiva.

Allan ria e se protegia dos ataques, mas ao ver algumas gotas de sangue descerem por baixo da batina, pingando na grama, entendeu que a reação do adversário se justificava e imediatamente se deu por vencido. O monge interrompeu então a exibição, resmungando profundamente e demonstrando claros sinais de dor. Levando a mão às costas e erguendo a barra do hábito, respondeu ao jovem arqueiro, que perguntava o motivo de tudo aquilo:

— O motivo, os motivos aqui estão. É vergonhoso, criminoso perturbar a devoção de um santo homem, furando-o com o ferro da lança, num lugar em que a ponta não encontra osso algum.

Allan tinha tentado acordar o religioso espetando-o no traseiro com a ponta da lança, mas é claro que apenas para fazer graça, sem querer machucá-lo a ponto de tirar sangue, de forma que se desculpou sinceramente. Restabelecida a paz, a pequena caravana voltou à estrada rumo a Nottingham. Em menos de uma hora chegaram à cidade e subiram a colina no alto da qual se situava o castelo feudal.

— Certamente abrirão a porta para mim, quando eu disser que quero falar com o barão — observou Allan —, mas vocês, meus amigos, quais razões vão apresentar para entrar?

— Não se preocupe com isso — respondeu o frade. — Sou o confessor de uma jovem, seu guia espiritual, e essa moça comanda como bem entende as manobras da ponte levadiça. Entro no castelo, graças a ela, de noite e de dia. Mas tome cuidado o senhor, belo cavaleiro, pois se for tão rude com o barão quanto comigo, vai estragar seus próprios planos; é a um verdadeiro leão que está indo provocar na toca; aja com moderação ou pobre de você!

— Serei moderado e firme, ao mesmo

— Que Deus o inspire, chegamos! Tenham cuidado! — e com seu vozeirão o frade gritou: — Que a bênção do meu venerado patrono, o grande são Bento,29estenda a graça sobre a sua cabeça e a dos seus, mestre Herbert Lindsay, guardião das portas do castelo de Nottingham! Deixe-nos entrar. Acompanham-me dois amigos. Um pretende conversar com seu amo sobre coisas de grande importância e o outro precisa se refazer e descansar. E eu, se ainda o permitir, darei à sua filha conselhos espirituais que o estado da sua alma exige.

— É você, alegre e honrado Tuck, pérola dos frades da abadia de Linton?

— veio lá de dentro a resposta calorosa. — Seja bem-vindo com seus amigos, caríssimo gentleman.

Imediatamente a ponte levadiça foi acionada e os visitantes puderam entrar no castelo.

— O barão já se retirou para os seus aposentos — respondeu o guardião a Allan, que pediu para ser conduzido à presença do castelão. — Se as palavras que tem a dizer não forem extremamente agradáveis, aconselho a deixá-las para amanhã, pois ele está bastante irritadiço.

— Doente? — perguntou o frade.

— A gota o incomoda num ombro e ele sofre como um condenado. Se fica sozinho, range os dentes e pede socorro. Se alguém o atende, ele espuma de raiva e ameaça de morte quem lhe dirigir até mesmo uma palavra de consolo. Ah, meus amigos! — acrescentou mestre Herbert com tristeza. — Desde que monsenhor foi ferido na cabeça com aqueles golpes de cimitarra, no país de Jerusalém,31perdeu toda paciência e bom senso.

— Não estou nem um pouco preocupado com seu mau humor — disse Allan. — E quero falar com ele agora mesmo.

— Se assim desejar… Ei! Tristam! — gritou o guardião, chamando um criado que atravessava o pátio. — Como está o humor de Sua Senhoria?

— Na mesma. Esbraveja e urra como um tigre porque o médico não dobrou a seu gosto uma das ligaduras. Imagine que expulsou a pontapés o coitado do médico e me obrigou, com um punhal, a substituí-lo, avisando que se não fizesse direito me cortaria o nariz.

— Insisto, sr. cavaleiro — voltou a dizer Herbert —, não procure monsenhor esta noite, espere até amanhã.

— Não vou esperar um minuto e nem mais um segundo. Leve-me até o quarto dele.

— Assim exige?

— Assim exijo.

— Que então Deus o proteja! — resignou-se o velho Lindsay, fazendo o sinal da cruz. — Tristam, conduza o cavalheiro.

O criado ficou branco de medo e tremeu da cabeça aos pés. Estava feliz por ter escapado são e salvo das garras daquela besta feroz e não se sentia nada disposto a novo risco. Com razão previa que a ira do barão se abateria sobre o acompanhante, tanto quanto sobre a visita.

— Monsenhor provavelmente espera a visita do cavalheiro? — ele tentou saber, com ar embaraçado.

— Não, meu amigo.

— Permite-me então que o previna?

— Não. Eu o acompanharei. Podemos ir.

— Ai! — lamentou-se o pobre-diabo. — É o meu fim!

E lá se foi ele, seguido por Allan, enquanto o velho guardião dos portões comentava rindo:

— Pobre Tristam! Sobe a escada para o quarto do barão como se fosse a do cadafalso. Pela santa missa! Deve estar com o coração batendo aos Mas estou me atrasando aqui, meus amigos, em vez de passar em revista as sentinelas dos muros. Provavelmente vai encontrar minha filha na copa, frei Tuck. Se Deus assim permitir, volto a vê-los em menos de uma hora.

— Ótimo — disse o monge agradecendo.

E o frade saiu por um dédalo de corredores, galerias e escadas, com Robin a segui-lo, consciente de que, sozinho, se perderia mil vezes no caminho. Frei Tuck, pelo contrário, conhecia com exatidão tudo aquilo. Para ele, o castelo de Nottingham era tão familiar quanto a abadia de Linton, e foi contente de si e orgulhoso dos direitos há muito tempo conquistados que bateu à porta da copa.

— Entre — respondeu uma voz jovial e alegre.

Assim fizeram eles e, ao reconhecer a volumosa figura, uma bela mocinha de no máximo dezesseis ou dezessete anos, longe de se assustar, dirigiu-se vivamente até os visitantes, com um gracioso e amável sorriso.

— Ora, ora! — pensou Robin. — É esta a ingênua penitente do santo padre. Por Deus! Essa saudável menina de olhos borbulhantes de alegria, lábios vermelhos e sorridentes, é a mais bela cristã que já vi.

E não conseguiu disfarçar a impressão que lhe causava a beleza da simpática  mocinha,  pois  quando  a  bela  Maude  estendeu  para  ele  as mãozinhas, desejando boas-vindas, Tuck, como bom camarada que tinha se tornado, exclamou:

— Não se contente com as mãos, garoto, veja essa boca, esses belos lábios vermelhos e beije-os. Nada de timidez! A timidez é a virtude dos tolos.

— Era só o que faltava! — respondeu a moça, sacudindo a cabeça bem- humorada. — O que está pensando, como se atreve a dizer uma coisa dessas, meu reverendo?

— Meu reverendo! Meu reverendo! — repetiu o frade em tom ambíguo. Robin aceitou o conselho do frade, apesar da fraca resistência da moça, eTuck em seguida fez o mesmo, como beijo de misericórdia, disse ele, acrescentando outro, “da paz”… Ou seja, sejamos francos e convenhamos que, no final das contas, Maude tratava o irmão Tuck muito mais como namorado do que como guia espiritual. Convenhamos também que os modos do frade eram bem pouco canônicos.

Foi o que achou Robin e, enquanto prestavam homenagem às bebidas e comidas com que Maude encheu a mesa, candidamente ele insinuou que o religioso se parecia muito pouco com um temível e respeitado confessor.

— Um pouco de afeto e intimidade entre parentes nada tem de repreensível — alegou o frade.

— São parentes? Eu não sabia.

— Em grau bastante próximo, jovem amigo, muito próximo e com pouquíssimas restrições, pois meu avô era filho de um dos sobrinhos do primo da tia-avó de Maude.

—  Entendo. É um parentesco perfeitamente bem delineado.

Maude ficara bem vermelha durante todo esse diálogo e parecia implorar que Robin não o prolongasse. Garrafas se esvaziaram e na copa muito se ouviu o choque dos copos em brindes, os risos e ainda o murmúrio dos beijos roubados a Maude.

No auge daquela farra, a porta da copa foi bruscamente aberta e um sargento, acompanhado de seis soldados, entrou.

Cumprimentou polidamente a moça e, olhando com severidade os convidados, disse:

— São os companheiros do homem que veio visitar nosso amo, lorde Fitz-Alwine, barão de Nottingham?

— Somos sim — respondeu Robin sem qualquer preocupação.

— O que têm com isso? — perguntou irmão Tuck, mais ousado.

— Acompanhem-me à presença de monsenhor.

— Por quê? — questionou outra vez Tuck.

— Não sei. São as ordens que tenho, obedeçam.

— Antes disso, bebam alguma coisa — propôs a bela Maude, oferecendo ao militar um copo de cerveja. — Não vai lhes fazer mal.

— obrigado.

Depois de esvaziar o copo, o sargento repetiu aos convidados a ordem de segui-lo.

Robin e Tuck obedeceram, lamentando deixar a bela Maude sozinha e triste na copa.

Depois de atravessarem imensas galerias e uma sala de armas, o militar parou diante de uma porta grande de carvalho, solidamente fechada, e deu três pancadas fortes.

— Entrem — ouviu-se uma voz brutal.

— Sigam-me — disse o sargento a Robin e a Tuck.

— Entrem, entrem logo, patifes, bandidos, condenados. Entrem — esbravejava o velho barão. — Entre, Simon.

O sargento finalmente abriu a porta.

— Até que enfim, aí estão os canalhas! Por onde andou desde que o mandei procurá-los? — perguntou o barão, lançando ao comandante da pequena tropa olhares fulminantes.

— Se Sua Senhoria permite, precisei…

— Está mentindo, cão! Como se atreve a ainda se desculpar, depois de me fazer esperar três horas?

— Três horas? Milorde se engana. Mal se passaram cinco minutos desde que me deu a ordem de trazer essas pessoas.

— Escravo insolente! Ousa me desmentir, debaixo do meu nariz! Velhacos é o que são todos — e, dirigindo-se aos soldados que nada entendiam: — Não obedeçam mais a esse traidor! Desarmem-no, ao calabouço! Se ousar qualquer resistência no caminho, que seja sem piedade lançado no mais profundo subterrâneo! Sentido! Obedeçam!

Os soldados procuraram se encorajar uns aos outros e se aproximaram para desarmar o sargento que, mais morto do que vivo, se manteve em silêncio.

— Patifes! — recomeçou o barão. — Nem deixam o homem responder minhas perguntas? Como se atrevem?

Os soldados recuaram.

— E agora, celerado, agora que demonstrei toda minha bondade, impedindo que esses brutos o desarmem, vai me dizer ou não se esses dois cães aí presentes são os companheiros do atrevido que ousou vir me insultar?

— São, milorde.

— E como tem certeza, imbecil? Como sabe? Como averiguou?

— Eles confessaram, milorde.

— Meteu-se então a interrogá-los sem minha autorização?

— Eles o disseram por conta própria, milorde, quando mandei que me seguissem até aqui.

— Disseram, disseram — imitou o barão a voz trêmula do pobre homem. — Grandes coisas! Acredita no que qualquer um diz?

— Milorde, achei…

— Cale-se, cretino! Chega, saia daqui.

O sargento comandou meia-volta a seus homens.

— Espere!

— Alto! — comandou o sargento.

— Não. Vá embora, vá embora! Novo sinal do sargento.

— Para onde estão indo, miseráveis?

Foi comandado alto pela segunda vez.

— Saiam, estou Cachorros inúteis, bando de lesmas, saiam!

A patrulha não deu tempo para nova contraordem e chegou ao posto de serviço ouvindo ainda o barão vociferar.

Robin seguira com atenção as diferentes fases da interessante conversa entre Fitz-Alwine e o sargento. Estava pasmo e, mais surpreso do que assustado, travou conhecimento com o agitado e estranho senhor do castelo de Nottingham.

Cerca de cinquenta anos, estatura mediana, olhos miúdos e vivos, nariz aquilino, bigodes compridos, sobrancelhas grossas, feições enérgicas, rosto corado e quase sanguíneo, com estranha expressão de selvageria em todos os seus modos, era este o seu retrato. Usava uma couraça escamada e ampla veste de pano branco, em que sobressaía em vermelho a cruz dos paladinos da Terra Santa. Naquele temperamento inflamável, vitriólico, por assim dizer, a menor contrariedade provocava explosões terríveis. Um olhar, uma palavra, um gesto que lhe desagradassem o transformavam em inimigo implacável, fazendo-o então sonhar apenas com vingança e morte.

O tipo de interrogatório por que passariam nossos dois amigos deixava que se previssem novas tempestades para aquela noite, e foi com um tom sardônico e irônica crueldade que o barão começou:

— Aproxime-se, jovem lobo de Sherwood, e você também, monge vagabundo, verme de convento, aproxime-se! Vão me dizer, assim espero, sem dissimulação nem rodeios, por que se atreveram a vir a meu castelo e que plano mal-intencionado os fez deixar o mato e o covil, Falem e tratem de ser claros, pois tenho meios maravilhosos para extrair palavras da goela até de um mudo e, por são João de Acre,32é o que aplico no couro de hereges como vocês!

Robin o olhou com desprezo e nem se deu ao trabalho de responder. O monge guardou o mesmo silêncio, mas crispou as mãos no formidável bastão, aquele nobre pau de corniso que o leitor já conhece e no qual o frade se apoiava, caminhando ou descansando, pois achava ganhar com isso ares veneráveis.

— Ah, não querem responder! Querem bancar os fidalgos? — exclamou o barão. — E posso saber a qual motivo devo a honra da visita? Realmente formam uma boa dupla: um bastardo de fora da lei e um mendigo imundo!

— O barão não nos conhece, não sou bastardo de proscrito nenhum e o frade não é um mendigo imundo. O barão não sabe o que diz!

— Lacaios sórdidos!

— Continua a dizer tolice. Não sou lacaio seu nem de ninguém mais. E se o religioso aqui presente estender a mão em sua direção, não será para pedir esmola.

Tuck alisou o bastão.

— Ah! O cachorro-do-mato se atreve a me desafiar, a me insultar! — exclamou o barão, quase sufocando de raiva. — Ei! Já que tem orelhas compridas, que o preguem por elas na porta principal do castelo e lhe apliquem ainda cem boas chibatadas.

Lívido de indignação, mas guardando o sangue-frio, Robin ficou mudo e encarou firmemente o terrível Fitz-Alwine, já escolhendo uma flecha na aljava. O barão hesitou, mas fingiu não perceber a intenção do rapaz. Após um segundo de silêncio, voltou a falar, em tom menos violento:

— A juventude sempre me leva a ser mais tolerante e, apesar da impertinência, não vou mandá-lo já às masmorras. Mas vai ter que responder minhas perguntas e, ao mesmo tempo, lembrar-se de que continua vivo apenas por bondade minha.

— Não estou em seu poder como imagina, nobre senhor — respondeu Robin com arrogante frieza. — E como prova disso, não responderei a suas perguntas.

Habituado a uma obediência passiva e completa por parte dos seus servidores e dos mais fracos, o barão ficou boquiaberto, mas logo em seguida vários pensamentos se atropelaram em seu cérebro, formulando frases incoerentes e insultos.

— Ah! Ah! — deu um riso estridente. — Acha mesmo que não está em meu poder, cria de urso mal-educado? Não vai responder, mestiço de macaco, filho de bruxa? Basta um gesto meu, um olhar, um sinal e vai para o inferno. Espere só para ver, vou estrangulá-lo com meu cinto.

Impassível, Robin mantinha armado o arco, com uma flecha pronta para o barão, até que Tuck interveio, dizendo com toda cordialidade:

— Espero que Sua Senhoria não ponha em prática essas ameaças…

As palavras do frade quebraram a tensão e Fitz-Alwine se virou para ele, como um lobo enraivecido desvia a atenção para nova presa.

— Amarre essa língua de víbora, padre do diabo! — berrou, medindo Tuck dos pés à cabeça. E em seguida acrescentou, querendo dar mais zombaria à expressão de seu olhar: — É o melhor exemplo desses esfomeados vorazes chamados frades mendicantes.

— Não é exatamente o que acho, monsenhor — respondeu placidamente mestre Tuck. — E se assim permitir, com todo o respeito que se deve a tão alta personalidade, sua maneira de ver as coisas é totalmente falsa, demonstrando absoluta carência de bom senso. Talvez o tenha perdido num acesso mais violento de gota, milorde. Ou quem sabe no fundo de uma garrafa de gim.

Robin caiu na gargalhada.

Irritado, o barão pegou um missal e jogou-o na cabeça do frade, com tanta força que o pobre Tuck, violentamente atingido, balançou atordoado. Mas rapidamente se recuperou e, nada habituado a receber tal tipo de presente sem imediatamente demonstrar gratidão, ergueu o terrível porrete e desferiu uma violenta pancada no ombro doente de Fitz-Alwine.

O nobre lorde cambaleou, rugiu, mugiu como um touro na arena ao ser espetado pela primeira bandarilha e se esticou para despendurar da parede o espadagão das cruzadas. Tuck, porém, não lhe deu tempo e, mantendo a ofensiva, acertou forte porretada no altíssimo, nobilíssimo e poderosíssimo senhor de Nottingham que, apesar da pesada armadura e dos achaques gotosos, corria de dar gosto ao redor do quarto, tentando escapar das terríveis pauladas.

O barão já gritava por socorro há vários minutos, quando o sargento que havia trazido Tuck e Robin entreabriu a porta e, passando a cabeça, fleumaticamente perguntou se estavam precisando dele.

Ágil como se tivesse retornado aos vinte anos de idade, o barão com um só salto foi do canto do quarto, a que tinha sido encurralado pelo bastão de Tuck, à porta que o sargento não se decidia a abrir toda sem sua ordem expressa, mesmo que fosse para prestar socorro.

O pobre sargento, que merecia ser visto como salvador, como um anjo da guarda, recebeu toda a ira do amo, impotente contra o frade, sob a forma de chutes e socos.

Cansando-se, enfim, de bater no ser inofensivo que não se atrevia a qualquer revide — para um vassalo, naquela época, o nobre era sagrado e inatacável —, o barão recuperou fôlego e deu ordem ao sargento para que prendesse e lançasse Robin e o frade no fundo de um calabouço.

Vendo-se livre dos ataques, o sargento partiu como um raio, gritando: às armas! às armas!, e voltando logo depois com uma dúzia de soldados.

Diante do reforço, o monge pegou em cima da mesa um crucifixo de marfim, colocou-o diante de Robin, que já pensava em disparar algumas flechas, e gritou:

— Em nome da santíssima Virgem, em nome do seu Filho, morto por nós, ordeno que me deixem passar. Desgraça e excomunhão a quem quiser

Pronunciadas com voz de trovão, tais palavras petrificaram os soldados e o religioso se retirou sem maiores problemas. Robin já ia seguir o amigo quando, a um sinal do barão, os homens o agarraram e tiraram seu arco e suas flechas, empurrando-o de volta para o fundo do quarto.

Cansado e moído de pancadas, o barão se jogou numa poltrona.

— Agora nós dois — disse ele quando conseguiu, depois de muito esforço, falar. — Nós dois.

Esses acontecimentos se passaram numa época em que não era prudente atacar os filhos da Igreja, como, para sua desventura, Henrique II foi obrigado a reconhecer, em sua briga com Thomas Becket.34 Por isso o barão preferira deixar o monge ir embora, imaginando porém descontar isso em Robin.

— Acompanhou Allan Clare até aqui? — perguntou, em tom ironicamente calmo. — Sabe dizer por qual motivo ele veio à minha casa?

Outro qualquer que não fosse Robin se imaginaria perdido, perdido sem escapatória, vendo-se à mercê de um personagem tão cruel quanto o velho

Fitz-Alwine. Mas o jovem e valoroso arqueiro de Sherwood era desses que nunca tremem, mesmo diante da morte iminente e certa. Respondeu, então, com admirável calma:

— Posso confirmar que acompanhei o sr. Allan Clare, mas ignoro o que o trouxe aqui.

— Está mentindo!

Robin sorriu com desdém e a calma que o barão procurava aparentar cedeu lugar a uma violenta explosão de raiva. Só que quanto mais descontrolado se mostrava, mais Robin sorria.

— Há quanto tempo conhece Allan Clare? — voltou a perguntar o fidalgo.

— Há vinte e quatro horas.

— Está mentindo! Está mentindo! — enfurecia-se o barão.

Perdendo a paciência com tanto insulto, Robin respondeu impassível:

— Eu é que minto? Você é que nega a verdade, velho intratável! Em todo caso, já que minto, ótimo, não mentirei mais, pois não dou mais uma palavra.

— Garoto teimoso, quer que o mande jogar do alto das muralhas no fosso do castelo, junto com o seu cúmplice Allan Clare, dentro de uma hora, depois de ter confessado? Uma pergunta ainda, se não responder, está perdido. Não foram atacados, vindo para cá?

Robin não respondeu. Exasperado, mas controlando-se, Fitz-Alwine deixou a poltrona e se armou com a espada. Robin olhava fixamente o barão e esperava. Um assassinato certamente seria cometido, mas a porta de repente se abriu, dando passagem a dois homens. Ambos tinham bandagem suja de sangue na cabeça e se movimentavam com dificuldade. As roupas estavam rasgadas e cheias de lama, fazendo com que parecessem sair de uma briga em que não tinham levado a melhor. Ao ver Robin, deram juntos um grito de surpresa e o rapaz, não menos espantado, reconheceu- os como sobreviventes do grupo de bandidos que, na noite anterior, havia atacado a casa de Gilbert Head. A cólera do barão foi ao paroxismo, ouvindo o que acontecera e vendo Robin ser apontado como um dos mais perigosos adversários. Tanto que nem esperou o final da narrativa e gritou furioso:

— Tirem esse miserável daqui! Que seja jogado numa cela! Vai mofar até resolver contar o que sabe sobre Allan Clare e implorar de joelhos perdão pelas insolências… Até lá, nem pão nem água. Que morra de fome.

— Então adeus, barão Fitz-Alwine. Se for preciso preencher essas duas condições para sair, não nos veremos Adeus, então, para sempre — disse Robin.

Os soldados já o empurravam para apressar a sua retirada quando ele, resistindo, voltou-se ainda para o barão e acrescentou:

— Faria a gentileza, senhor, de avisar Gilbert Head, o honesto e corajoso guarda da floresta de Sherwood, que pretende me hospedar sem comida por algum tempo? Agradeceria muito e faço o pedido porque, sendo milorde pai, pode perfeitamente imaginar a aflição de quem ignora o paradeiro do filho ou da filha desaparecidos.

— Com mil diabos! Sumam com esse falastrão!

— Não vá imaginar que eu queira a sua companhia por mais tempo, ilustre barão de Nottingham. A vontade de que não mais nos vejamos é mútua.

Assim que foi retirado do quarto, Robin pôs-se a cantar a plenos pulmões e sua voz jovial e límpida ressoava ainda nas sombrias galerias do castelo, quando a porta do calabouço se fechou com ele dentro.

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