O Príncipe Conselhos Práticos e Fortuna
- Capítulo 19: Sobre evitar ser odiado.
- Capítulo 20: Se as fortalezas ajudam ou prejudicam o príncipe.
- Capítulo 21: Sobre como ganhar apoio dos súditos.
💡 Resumo: Estratégias práticas para governar com apoio popular e controlar as massas.
CAPÍTULO XIX
DE COMO SE DEVA EVITAR O SER DESPREZADO E ODIADO
(DE CONTEMPTU ET ODIO FUGIENDO)
Porque falei das mais importantes das qualidades acima mencionadas, desejo discorrer rapidamente sobre as outras, sob estas generalidades: que o príncipe pense (como acima se disse em parte) em fugir àquelas circunstâncias que possam torná-lo odioso e desprezível; sempre que assim proceder, terá cumprido o que lhe compete e não encontrará perigo algum nos outros defeitos. Odioso o tornará, acima de tudo, como já disse, o ser rapace e usurpador dos bens e das mulheres dos súditos, do que se deve abster; e, desde que não se tirem nem os bens nem a honra à universalidade dos homens, estes vivem felizes e somente se terá de combater a ambição de poucos, o que se refreia por muitos modos e com facilidade. Desprezível o torna ser considerado volúvel, leviano, efeminado,
pusilânime, irresoluto, do que um príncipe deve guardar-se como de um escolho, empenhando-se para que nas suas ações se reconheça grandeza, coragem, gravidade e fortaleza; com relação às ações privadas dos súditos, deve querer que a sua sentença seja irrevogável; deve manter-se em tal conceito que ninguém possa pensar em enganá-lo ou traí-lo.
O príncipe que dá de si esta opinião é assaz reputado e, contra quem é reputado, só com muita dificuldade se conspira; dificilmente é atacado, desde que se considere excelente e seja reverenciado pelos seus. Na verdade, um príncipe deve ter dois temores: um de ordem interna, de parte de seus súditos, o outro de natureza externa, de parte dos potentados estrangeiros. Destes se defende com boas armas e bons amigos; e sempre que tenha boas armas terá bons amigos. A situação interna, desde que ainda não perturbada por uma conspiração, estará segura sempre que esteja estabilizada a externa; mesmo quando esta se agite, se o príncipe organizou-se e viveu como eu já disse, desde que não desanime, resistirá a qualquer impacto, como salientei ter feito o espartano Nábis.
Mas, a respeito dos súditos, quando os negócios externos não se agitam, deve-se temer que conspirem secretamente, contra o que o príncipe se assegura firmemente fugindo de ser odiado ou desprezado e mantendo o povo com ele satisfeito; isto é de necessidade seja conseguido, como já acima se falou longamente. Um dos mais poderosos remédios de que um príncipe pode dispor contra as conspirações é não ser odiado pela maioria, porque sempre, quem conjura, pensa com a morte do príncipe satisfazer o povo, mas, quando considera que com isso irá ofendê-lo, não se anima a tomar semelhante partido, mesmo porque as dificuldades com que os conspiradores têm de se defrontar são infinitas. Por experiência vê-se que muitas foram as conspirações mas poucas tiveram bom fim, pois quem conspira não pode ser sozinho, nem pode ter por companheiros senão aqueles que acredite estarem descontentes; mas, logo que tenhas revelado a um descontente a tua intenção, lhe dás motivo para ficar contente porque, evidentemente, ele pode daí esperar todas as vantagens; de forma que, vendo o ganho certo de um lado, sendo o outro dúbio e cheio de perigo, é preciso seja ou extraordi 112 nário amigo teu ou implacável inimigo do príncipe para manter-te a palavra empenhada.
Para reduzir o assunto a termos breves, digo que do lado do conspirador não existe senão medo, ciúme, suspeita de castigo que o atordoa; mas, do lado do príncipe, existe a majestade do principado, as leis, as barreiras dos amigos e do Estado que o defendem; consequentemente, somada a tais fatores a benevolência popular, é impossível exista alguém tão temerário que venha a conspirar. Isso porque, geralmente, onde um conspirador teme antes da execução do mal, se tiver o povo por inimigo, deve temer ainda mesmo depois de ocorrido o fato, não podendo por isso esperar qualquer amparo.
Deste assunto poder-se-ia citar inúmeros exemplos; porém, limito-me a apenas um, conservado pela recordação de nossos pais. Tendo sido messer Aníbal Bentivoglio, príncipe em Bolonha e avô do atual messer Aníbal, morto pelos caneschi que contra ele haviam conspirado, não restando de sua família senão messer Giovanni que era ainda criança de colo, logo após esse homicídio o povo levantou-se e matou todos os canneschi. Isso resultou da benquerença popular que a casa de Bentivoglio desfrutava naqueles tempos, benquerença essa tão grande que, não restando em Bolonha qualquer membro dessa família em condições de poder governar o Estado após a morte de Anibal e constando haver em Florença um descendente dos Bentivoglio que se julgava até então filho de um artífice, os bolonheses foram até essa cidade e lhe confiaram o governo daquela comunidade, a qual foi por ele dirigida até que messer Giovanni atingisse a idade conveniente para governar.
Concluo, portanto, que um príncipe deve dar pouca importância às conspirações se o povo lhe é benévolo; mas quando este lhe seja adverso e o tenha em ódio, deve temer tudo e a todos. Os Estados bem organizados e os príncipes hábeis têm com toda a diligência procurado não desesperar os grandes e satisfazer o povo conservando-o contente, mesmo porque este é um dos mais importantes assuntos de que um príncipe tenha de tratar.
Entre os reinos bem organizados e governados nos nossos tempos está aquele de França. Nele existem inúmeras boas instituições, das quais dependem a liberdade e a segu 113 rança do rei; a primeira delas é o Parlamento com a sua autoridade. Aquele que organizou esse reino, conhecendo a ambição dos poderosos e a sua insolência, julgando ser necessário pôr um freio para corrigi-los e, de outra parte, por conhecer o ódio da maioria contra os grandes com base no medo, desejando protegê-la mas não querendo fosse este particular cuidado do rei, buscou dele retirar o peso da odiosidade dos grandes em sendo favorecido o povo ou deste ao dever apoiar os grandes; por isso, constituiu um terceiro juiz que fosse aquele que, sem responsabilidade do rei, contivesse os grandes e amparasse os pequenos. Essa ordem não podia ser melhor nem mais prudente, nem se pode negar seja a maior razão da segurança do rei e do reino. Daí pode- se extrair outra conclusão digna de nota: os príncipes devem atribuir a outrem as coisas odiosas, reservando para si aquelas de graça. Novamente concluo que um príncipe deve estimar os grandes, mas não se fazer odiado pelo povo.
Talvez a muitos pudesse parecer, considerando a vida e a morte de alguns imperadores romanos, fossem elas exemplos contrários à minha opinião, dado que viveram exemplarmente e demonstraram grandes virtudes e, sem embargo disso, perderam o Império ou mesmo foram mortos pelos seus que contra eles conspiraram. Querendo, portanto, responder a estas objeções, falarei das qualidades de alguns imperadores, mostrando as causas de sua ruína, não discrepantes daquilo que foi por mim aduzido, ao mesmo tempo, porei em consideração aqueles fatos que são notáveis para quem lê as ações daqueles tempos. Considero suficiente citar todos os imperadores que se sucederam no poder, desde Marco o filósofo até Maximino, os quais foram Marco, seu filho Cômodo, Pertinax, Juliano, Severo, seu filho Antonino Caracala, Macrino, Heliogábalo, Alexandre e Maximino.
Deve-se notar inicialmente que, enquanto nos outros principados tem-se de lutar apenas contra a ambição dos grandes e a insolência do povo, os imperadores romanos encontravam uma terceira dificuldade, aquela de terem de suportar a crueldade e a ambição dos soldados. Esta terceira dificuldade era de tal forma séria que se tornou a causa da ruína de muitos, pois é difícil satisfazer ao mesmo tempo os soldados e o povo: este amava a paz e, por isso, estimava os príncipes moderados, enquanto que os soldados amavam o príncipe de ânimo militar, que fosse insolente, cruel e rapace, querendo que o mesmo exercesse tais violências contra as populações para poder ter, assim, duplicado soldo e expansão à sua rapacidade e crueldade.
Tais fatos fizeram com que aqueles imperadores que, por natureza ou por engenho, não desfrutavam uma grande reputação de forma a poder manter freados um e outros, sempre se arruinassem; a maioria deles, principalmente aqueles que como homens novos chegavam ao principado, conhecida a dificuldade que resultava desses dois sentimentos diversos, propendiam para satisfazer aos soldados, pouco se preocupando com o fato de por tal forma ofender o povo. Esse partido era necessário: porque, não podendo o príncipe deixar de ser odiado por alguém, deve primeiro buscar não ser odiado por qualquer classe social; mas, quando não pode conseguir isto, deve empenhar-se em, por todos os meios, evitar o ódio daquelas classes que são mais poderosas. Por isso, aqueles imperadores que, por serem novos, tinham necessidade de favores extraordinários, aderiam antes aos soldados que ao povo, o que, não obstante, se lhes tornava útil ou não, conforme soubessem ou não conservar-se reputados entre eles.
Das razões mencionadas, resultou que Marco, Pertinax e Alexandre, todos eles de vida modesta, amantes da justiça, inimigos da crueldade, humanos e benignos, tiveram, a partir de Marco, triste fim. Somente Marco viveu e morreu honradíssimo, visto ter sucedido no império jure hereditário não tendo de agradecê-lo nem aos soldados nem ao povo; depois, sendo dotado de muitas virtudes que o faziam venerando, teve sempre, enquanto viveu, uma ordem e outra dentro de seus limites, não sendo jamais odiado ou desprezado. Mas Pertinax, tornado imperador contra a vontade dos soldados que, acostumados a viver licenciosamente sob Cômodo, não puderam suportar aquela vida honesta a que o imperador queria reduzi-los; por isso, tendo Pertinax criado ódio contra si e a este ódio acrescido o desprezo por ser já velho, arruinou-se logo no início de sua administração.
Deve-se notar aqui que o ódio se adquire tanto pelas boas como pelas más ações: como já disse acima, querendo um príncipe conservar o Estado, freqüentemente é forçado a não ser bom, pois quando aquele elemento mais forte, povo, soldados ou grandes, de que julgas necessitar para manter-te, é corrompido, convém que sigas o seu desejo para satisfazê-lo; então, as boas obras tornam-se tuas inimigas. Mas passemos a Alexandre, o qual foi de tanta bondade que, entre outros louvores que lhe são endereçados, existe este de que, em quatorze anos que conservou o poder, não foi executada qualquer pessoa sem julgamento; contudo, sendo considerado efeminado e homem que se deixava governar pela mãe, tornou-se desprezado, o exército conspirou e ele foi morto.
Falando agora, por outro lado, das qualidades de Cômodo, Severo, Antonino Caracala e Maximino, os achareis extremamente cruéis e rapaces: para satisfazer os soldados, não pouparam nenhuma espécie de injúria que pudesse ser cometida contra o povo; todos, exceto Severo, tiveram triste fim. É que Severo possuiu tanto valor que, conservando os soldados como seus amigos, ainda que o povo fosse por ele oprimido, pode sempre reinar com felicidade, pois aquelas suas virtudes o tornavam tão admirável no conceito dos soldados e do povo, que este ficava por assim dizer atônito e aturdido e aqueles reverentes e satisfeitos. E, porque as ações do mesmo foram grandes e notáveis num príncipe novo, desejo mostrar de forma breve quão bem soube usar a ação da raposa e do leão, naturezas essas que, disse acima, devem ser imitadas pelos príncipes.
Tendo Severo conhecido a ignávia do Imperador Juliano, persuadiu seu exército, do qual era capitão na Stiavônia, de que era conveniente ir a Roma para vingar a morte de Pertinax, assassinado pelos soldados pretorianos; sob este pretexto, sem demonstrar aspirar o Império, conduziu o exército contra Roma, chegando à Itália antes que fosse conhecida sua partida. Estando em Roma, o Senado, por temor, elegeu-o imperador, sendo morto Juliano. A seguir, restavam a Severo duas dificuldades para se assenhorear de todo o Estado: uma na Ásia, onde Pescênio Nigro, chefe dos exércitos asiáticos, se fizera aclamar imperador; a outra no Poente, onde estava Albino que, por sua vez, também aspirava ao Império. Porque julgasse perigoso revelar-se inimigo de ambos, deliberou atacar Nigro e enganar Albino a quem escreveu que, tendo sido pelo Senado eleito imperador, desejava com ele compartilhar aquela dignidade; enviou-lhe o título de César e, por deliberação do Senado, tornou-o seu colega. Albino aceitou tais coisas como verdadeiras; mas, depois que venceu e matou Nigro, pacificados os negócios orientais e retornado a Roma, Severo queixou-se ao Senado de que Albino, pouco reconhecido dos benefícios dele recebidos, tinha dolosamente procurado matá-lo, razão pela qual via necessidade de ir punir sua ingratidão.
Depois, foi ao seu encontro na França e lhe tolheu o governo e a vida.
Quem examinar, portanto, minuciosamente as ações deste homem, achá-lo-á um ferocíssimo leão e uma astuciosíssima raposa, ve-lo-á temido e reverenciado por todos e não odiado pelos exércitos, não se admirando que ele, homem novo, tenha podido deter tanto poder; a sua alta reputação o defendeu sempre daquele ódio que, pelas suas rapinagens, o povo contra ele poderia ter concebido. Mas Antonino, seu filho, foi, também ele, homem que possuía excelentes qualidades que o faziam maravilhoso no conceito do povo e querido pelos soldados; era um militar que suportava muito bem quaisquer fadigas, desprezava os alimentos delicados e abominava toda e qualquer frouxidão, o que o tornava amado por todos os exércitos. Contudo, sua ferocidade e crueldade foi tanta e tão inaudita, tendo mesmo, depois de inúmeros assassínios privados, morto grande parte da população de Roma e toda aquela de Alexandria, que tornou-se extremamente odioso para todo o mundo: começou a ser temido também por aqueles que o rodeavam, de forma que foi morto por um centurião em meio ao seu exército.
A propósito do referido, é de notar-se que tais assassinatos, decorrentes da deliberação de um espírito obstinado, são impossíveis de evitar por parte dos príncipes, porque todo aquele que não tema morrer pode golpeá-los. Todavia, o príncipe pouco deve temer, porque tais mortes são raras. Deve apenas cuidar de não fazer grave injúria a algum daqueles de que se serve e que tem ao seu derredor no serviço do principado, como fez Antonino que havia morto vilmente um irmão daquele centurião e ainda ameaçava este diariamente, enquanto o conservava na sua própria guarda; era resolução temerária e capaz de destruí-lo, como aconteceu.
Passemos a Cômodo, para quem era de grande facilidade manter o Império por possuí-lo iure hereditario, uma vez que era filho de Marco; bastava-lhe seguir as pegadas do pai e teria satisfeito os soldados e o povo. Mas, sendo de espírito cruel e bestial, para poder usar sua rapacidade contra o povo, passou a cativar os exércitos e torná-los licenciosos; por outro lado, não mantendo a sua dignidade, descendo freqüentemente às arenas para combater com os gladiadores, fazendo outras coisas extremamente vis e pouco dignas da majestade imperial, tornou-se desprezível no conceito dos soldados. E, sendo odiado por uns e desprezado por outros, conspiraram contra ele e foi morto.
Resta-nos narrar as qualidades de Maximino. Este foi homem belicosíssimo e, estando os exércitos enfastiados da moleza de Alexandre, de quem falei acima, morto este, elegeram-no para o governo. Maximino não possuiu o poder por muito tempo, pois duas coisas tornaram-no odiado e desprezado: uma, o ser de condição extremamente vil, pois já apascentara ovelhas na Trácia" (fato por todos bastante conhecido e que lhe causava grande depreciação no conceito geral); a outra, porque, tendo no início de seu principado retardado em ir a Roma e tomar posse do trono imperial, dera de si impressão de extremamente cruel, eis que, por intermédio de seus prefeitos, em Roma e em muitos pontos do Império, praticara numerosas crueldades. De modo que, agitado todo o mundo pelo desprezo à vileza de seu sangue e tomado de ódio pelo medo à sua ferocidade, rebelou-se primeiro a África, depois o Senado com todo o povo de Roma; toda a Itália contra ele conspirou. A esse movimento juntou-se seu próprio exército que, fazendo campanha em Aquiléia e encontrando dificuldade no assédio, aborrecido de sua crueldade, temendo menos por vê-lo com tantos inimigos, matou-o.
Não quero falar nem de Heliogábalo, nem de Macrino, nem de Juliano, os quais, por serem inteiramente desprezíveis, se extinguiram logo; passarei, pois, à conclusão deste assunto. Assim, digo que os príncipes de nossos tempos têm a menos, nos seus governos, esta dificuldade de satisfazer extraordinariamente aos soldados, eis que, não obstante se deva ter para com os mesmos alguma consideração, isso se resolve logo, pois nenhum destes príncipes tem um exército que seja inveterado com os governos e administrações das províncias, como eram os exércitos do Império Romano. Porém, se então era necessário mais, aos soldados do que ao povo, isso decorria de que os soldados podiam mais que aquele; agora é necessário a todos os príncipes, exceto ao Turco e ao Sultão satisfazer mais ao povo que aos militares, porque aquele pode mais que estes.
Faço exceção do Turco em razão de ter ele sempre, em torno de si, doze mil infantes e quinze mil soldados de cavalaria, dos quais dependem a segurança e o poderio do seu reino; e é necessário que, postergada qualquer outra consideração, esse senhor os conserve amigos. E deveis notar que este Estado do Sultão é diverso de todos os outros principados: ele é semelhante ao pontificado cristão, a que não se pode chamar nem principado hereditário nem principado novo, posto que não são filhos do príncipe velho que herdam e se tornam senhores, mas sim aquele eleito para o posto pelos que têm autoridade. E, sendo esta uma instituição antiga, não se pode chamar de principado novo, dado que nela não existem algumas das dificuldades que se encontram nos novos: se bem o príncipe seja novo, as instituições desse Estado são velhas e ordenadas a recebê-lo como se fosse seu senhor hereditário.
Retornemos, porém, ao nosso assunto. Digo que todo aquele que considere o acima exposto verá o ódio ou o desprezo ter sido a causa da ruína dos imperadores citados e saberá, ainda, porque procedendo uma parte deles de um modo e a outra parte por forma contrária, em qualquer um desses modos de agir alguns deles tiveram fim feliz, enquanto os outros terminaram infelizes. A Pertinax e Alexandre, por serem príncipes novos, foi inútil e prejudicial querer imitar Marco que se encontrava no principado iure hereditario; igualmente, a Caracala, Cômodo e Maximino foi pernicioso o imitar Severo, por não possuírem tanta virtude que fosse bastante para que pudessem seguir suas pegadas. Portanto, um príncipe novo, num principado novo, não pode imitar as ações de Marco e tampouco é necessário seguir as de Severo; deve tomar de Severo aquelas qualidades que forem necessárias para fundar seu Estado, e de Marco aquelas que forem convenientes e gloriosas para conservar um governo já estabelecido e firme.
CAPÍTULO XX
SE AS FORTALEZAS E MUITAS OUTRAS COISAS QUE A CADA DIA SÃO FEITAS PELOS PRÍNCIPES SÃO ÚTEIS OU NÃO
(AN ARCES ET MULTA ALIA QUAE COTIDIE A PRINCIPIBUS FIUNT UTILIA AN INUTILIA SINT)
Para conservar seguramente o Estado, alguns príncipes desarmaram os seus súditos, outros mantiveram divididas as terras submetidas, alguns nutriram inimizades contra si mesmos, outros dedicaram-se a conquistar o apoio daqueles que lhes eram suspeitos no início de seu governo, alguns construíram fortalezas, outros as arruinaram e destruíram. E, se bem não seja possível estabelecer determinado juízo sobre todas essas coisas sem entrar nas particularidades de cada um dos Estados onde devesse ser tomada alguma dessas deliberações, falarei de maneira genérica, compatível com o assunto.
Jamais existiu um príncipe novo que desarmasse os seus súditos, mas, antes, sempre que os encontrou desarmados, armou-os; isto porque, armando-os, essas armas passam a ser tuas, tornam fiéis aqueles que te são suspeitos, os que eram fiéis assim se conservam e de súditos tornam-se teus partidários. E, porque não se pode armar todos os súditos, beneficiados aqueles que armas, com os outros podes tratar mais seguramente; essa diversidade de tratamento que reconhecem em seu favor os torna obrigados para contigo e os outros desculpar-te-ão, julgando ser necessário tenham aqueles mais recompensas por estarem sujeitos a maiores perigos e maiores obrigações. Mas quando os desarmas, começas a ofendê-los, mostras deles duvidar, ou por vileza ou por desconfiança uma ou outra destas opiniões concebe ódio contra ti. E, por não poderes ficar desarmado, torna-se necessário que te voltes à milícia mercenária, que é daquela qualidade que já foi dita e, quando fosse boa, não poderia sê-lo por forma a defender-te dos inimigos poderosos e dos súditos suspeitos.
Porém, como disse, um príncipe novo num principado também novo, sempre organizou as forças armadas e destes exemplos a história está repleta. Mas, quando um príncipe conquista um novo Estado que, como membro, se agrega ao antigo, então é necessário desarmar o conquistado, salvo aqueles que, nele, foram teus partidários na conquista; estes mesmos, com o tempo e a oportunidade, devem ser tornados amolecidos e efeminados, procedendo-se de modo que as armas fiquem somente em poder de teus próprios soldados, daqueles que, no Estado antigo, estavam junto de ti.
Os nossos antepassados e aqueles que eram considerados entendidos costumavam dizer que Pistóia precisava ser mantida pela divisão do povo e Pisa pelas fortalezas; e, por isso mesmo, em algumas regiões por eles conquistadas, mantinham as discórdias entre os partidos para dominá-las mais facilmente. Isto, naqueles tempos em que a Itália apresentava certo equilíbrio, devia ser útil. Mas não creio se possa admitir tal como preceito hodierno, eis que não acredito pudessem as divisões, alguma vez, acarretar qualquer benefício; ao contrário, quando o inimigo se avizinha, as cidades divididas, necessariamente, perdem-se logo, eis que sempre a parte mais fraca aderirá às forças externas e a outra não poderá resistir.
Os venezianos, levados pelas razões acima mencionadas segundo acredito, incentivavam as facções guelfas e gibelinas nas cidades a eles submetidas; e, se bem nunca as deixassem chegar à luta, alimentavam entre elas essas divergências para que, ocupados os cidadãos naquelas suas diferenças, não se unissem contra eles. Isso, como se viu, não lhes aproveitou porque, derrotados em Vailá, logo algumas daquelas cidades passaram a se insurgir e lhes tomaram todo o Estado. Tais atitudes revelam fraqueza do príncipe, eis que em um principado poderoso jamais serão permitidas semelhantes divisões, úteis somente em tempo de paz, eis que por elas pode-se mais facilmente manejar os súditos; mas, sobrevindo a guerra, tal sistema demonstra sua falácia.
Sem dúvida alguma, os príncipes se tornam grandes quando superam as dificuldades e as oposições que lhes são antepostas; porém a fortuna, principalmente quando quer tornar grande um príncipe novo, que tem mais necessidade de adquirir reputação do que um hereditário, o faz nascer dos inimigos e determina que lhe sejam opostos embaraços, a fim de que ele tenha oportunidade de superá-los e, assim, possa subir mais alto pela escada que os inimigos lhe oferecem, Por isso, muitos pensam que um príncipe hábil deve, quando tenha ocasião, incentivar com astúcia alguma inimizade para, eliminada esta, continuar a ascensão de sua grandeza.
Os príncipes, particularmente aqueles que são novos, têm encontrado mais lealdade e maior utilidade nos homens que no início de seu governo foram considerados suspeitos, do que nos que inicialmente eram seus confidentes. Pandolfo Petrucci, príncipe de Siena, dirigia o seu Estado mais com aqueles que lhe foram suspeitos do que com os que não o foram. Mas deste assunto não é possível falar em caráter genérico, pois o mesmo varia segundo cada caso.
Somente direi isto: os homens que no início de um principado haviam sido inimigos, sendo de condição que para manter-se precisam de apoio, o príncipe poderá sempre com grande facilidade vir a conquistá-los; e eles tanto mais são forçados a servi-lo com lealdade, quanto reconheçam ser-lhes necessário cancelar com obras aquela má opinião que, a seu respeito, se fazia. Assim, o príncipe deles obtém sempre maior utilidade do que daqueles que, servindo-o com excessiva segurança, descuram de seus interesses.
Já que o assunto torna oportuno, não quero deixar de recordar aos príncipes que tomaram um Estado novo pelo favor de alguns dos habitantes do mesmo deverem considerar bem qual a razão que determinou assim agissem os que o favoreceram; se a mesma não é afeição natural em relação a eles mas sim, se o apoio decorreu do fato dos mesmos não estarem satisfeitos com o Estado anterior, só com fadiga e grande dificuldade se poderá conservá-los amigos, dado que é quase impossível possam vir a ser contentados. E, considerando bem os exemplos que se extraem das coisas antigas e modernas, em razão disso, ver-se- á ser muito mais fácil ao príncipe tornar amigos aqueles homens que se contentavam com o regime antigo e, portanto, eram seus inimigos, que aqueles que, por descontentes, fizeram-se seus amigos e o favoreceram na conquista.
Tem sido costume dos príncipes, para poder manter seu Estado mais seguramente, edificar fortalezas que sejam a brida e o freio postos aos que desejassem enfrentá-los, bem como um refúgio seguro contra um ataque de surpresa. Eu louvo esse proceder, porque usado desde tempos remotos; não obstante messer Nicoló Vitelli, nos tempos atuais, destruiu duas fortalezas na Cidade de Castelo para, assim, conservar o Estado. Guido Ubaldo, Duque de Urbino, tendo retornado ao seu domínio de que havia sido expulso por César Bórgia, destruiu desde os alicerces todas as fortalezas daquela província, por entender que sem aquelas seria mais difícil perder novamente seu Estado. Os Bentivoglio, retornados a Bolonha, usaram igual expediente. Portanto, as fortalezas são úteis ou não, segundo os tempos; se te fazem bem por um lado, prejudicam-te por outro. Pode-se explicar esta afirmativa pela forma a seguir exposta.
O príncipe que tiver mais temor de seu povo do que dos estrangeiros, deve construir as fortalezas; mas aquele que sentir mais medo dos estrangeiros que de seu povo, deve abandoná-las. O castelo de Milão, edificado por Francisco Sforza, fez e fará mais guerra à casa dos Sforza do que qualquer outra desordem naquele Estado. Por isso, a melhor fortaleza que possa existir é o não ser odiado pelo povo: mesmo que tenham fortificações elas de nada valem se o povo te odeia, eis que a este, quando tome das armas, nunca faltam estrangeiros que o socorram.
Nos nossos tempos vê-se que as fortalezas não têm sido proveitosas a príncipe algum, senão à Condessa de Forli quando foi morto o Conde Girolamo, seu esposo, eis que a mesma, refugiando-se numa fortificação, pode fugir ao ímpeto popular, esperar pelo socorro de Milão e recuperar o Estado; ademais, as circunstâncias eram tais que o estrangeiro não podia socorrer o povo. Depois, também para ela pouco valeram as fortalezas quando César Bórgia a atacou e o povo, seu inimigo, aliou-se ao estrangeiro. Portanto, teria sido mais seguro para ela, quer então, quer antes, não ser odiada pelo povo do que possuir fortalezas. Consideradas assim todas estas questões, louvarei tanto os que fizerem como os que não fizerem as fortalezas e censurarei aquele que, fiando-se nas fortificações, venha a subestimar o fato de ser odiado pelo povo.
CAPÍTULO XXI
O QUE CONVÉM A UM PRÍNCIPE PARA SER ESTIMADO
(QUOD PRINCIPEM DECEAT UT EGREGIUS HABEATUR)
Nada faz estimar tanto um príncipe como as grandes empresas e o dar de si raros exemplos. Temos, nos nossos tempos, Fernando de Aragão, atual rei de Espanha. A este pode-se chamar, quase, príncipe novo, porque de um rei fraco tornou-se, por fama e por glória, o primeiro rei dos cristãos; e, se considerardes suas ações, as achareis todas grandiosas e algumas mesmo extraordinárias. No começo de seu reinado, assaltou Granada e esse empreendimento foi o fundamento de seu Estado. Primeiro ele o fez isoladamente, sem luta com outros Estados e sem receio de ser impedido de tal; manteve ocupadas nesse empreendimento as atenções dos barões de Castela que, pensando na guerra, não cogitavam de inovações e ele, por esse meio, adquiria reputação e autoridade sobre os mesmos sem que de tal se apercebessem. Pode manter exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e, com tão longa campanha, estabeleceu a organização de sua milícia que, depois, tanto o honrou. Além disto, para poder encetar maiores empreendimentos, servindo-se sempre da religião, dedicou-se a uma piedosa crueldade expulsando e livrando seu reino dos marranos, ação de que não pode haver exemplo mais miserável nem mais raro. Sob essa mesma capa, atacou a África, fez a campanha da Itália e, ultimamente, assaltou a França; assim, sempre fez e urdiu grandes empreendimentos, os quais em todo o tempo mantiveram suspensos e admirados os ânimos dos súditos, ocupados em esperar o êxito dessas guerras. Essas suas ações nasceram umas das outras, pelo que, entre elas, não houve tempo para que os homens pudessem agir contra ele.
Muito apraz a um príncipe dar de si exemplos raros na forma de comportar-se com os súditos, semelhantes àqueles que são narrados de messer Barnabò de Milão, quando surge a oportunidade de alguém ter realizado alguma coisa extraordinária de bem ou de mal na vida civil, obtendo meio de premiá-lo ou puni- lo por forma que seja bastante comentada, Acima de tudo, um príncipe deve empenhar-se em dar de si, com cada ação, conceito de grande homem e de inteligência extraordinária.
Um príncipe é estimado, ainda, quando verdadeiro amigo e vero inimigo, isto é, quando sem qualquer consideração se revela em favor de um, contra outro. Esta atitude é sempre mais útil do que ficar neutro, eis que, se dois poderosos vizinhos teus entrarem em luta, ou são de qualidade que vencendo um deles tenhas a temer o vencedor, ou não. Em qualquer um destes dois casos será sempre mais útil o definir-te e fazer guerra digna, porque no primeiro caso se não te definires serás sempre presa do que vencer, com prazer e satisfação do que foi vencido, e não terás razão ou coisa alguma que te defenda nem quem te receba. O vencedor não quer amigos suspeitos ou que não o ajudem nas adversidades; quem perde não te recebe por não teres querido correr a sua sorte de armas em punho.
Antíoco invadiu a Grécia a chamado dos etólios para expulsar os romanos. Enviou embaixadores aos aqueus, amigos dos romanos, para concitá-los a ficarem neutros, enquanto os romanos os persuadiam a tomar armas ao seu lado. Esta matéria veio à deliberação do congresso dos aqueus, onde o legado de Antíoco os induzia à neutralidade; a isto, o representante romano respondeu: Quod autem isti dicunt non interponendi vos bello, nihil magis alienum rebus vestris est; sine gratia, sine dignitate, praemium victoris eritis.
Sempre acontecerá que aquele que não é amigo procurará tua neutralidade e aquele que é amigo pedirá que te definas com as armas. Os príncipes irresolutos, para fugir aos perigos presentes, seguem na maioria das vezes o caminho da neutralidade e, geralmente, caem em ruína. Mas, quando o príncipe se define galhardamente em favor de uma das partes, se aquele a quem aderes vence, mesmo que seja tão poderoso que venhas a ficar á sua discrição, ele tem obrigação para contigo e está ligado a ti pela amizade; e os homens nunca são tão desonestos que, com tamanha prova de ingratidão, possas vir a ser oprimido.
Além disso, as vitórias nunca são tão brilhantes que o vencedor não deva ter qualquer consideração, principalmente para com o que é justo. Mas, se aquele a quem aderes perder, serás amparado por ele e, enquanto puder, ajudar-te-á e ficarás associado a uma fortuna que poderá ressurgir. No segundo caso, quando aqueles que lutam são de classe que não devas temer o vencedor, ainda maior prudência é aderir, pois causas a ruína de um com a ajuda de quem deveria salvá-lo, se fosse sábio; vencendo, fica à tua mercê, e é impossível não vença com o teu auxílio.
Note-se aqui que um príncipe deve ter a cautela de jamais fazer aliança com um mais poderoso que ele para atacar os outros, senão quando a necessidade o compelir, como se disse acima, porque, vencendo, torna-se seu prisioneiro; e os príncipes devem fugir o quanto possam de ficar à discrição dos outros. Os venezianos aliaram-se à França contra o duque de Milão, podendo ter evitado essa aliança de que resultou a sua ruína. Mas, quando não se pode evitá-la (como aconteceu aos florentinos quando o Papa e a Espanha levaram seus exércitos a atacar a Lombardia), então deverá o príncipe aderir pelas razões acima expostas. Nem julgue algum Estado poder adotar sempre partidos seguros, devendo antes pensar ser obrigado a tomar, freqüentemente, partidos duvidosos; vê-se na ordem das coisas que nunca se procura fugir a um inconveniente sem incorrer em outro e a prudência consiste em saber conhecer a natureza desses inconvenientes e tomar como bom o menos prejudicial.
Deve, ainda, um príncipe mostrar-se amante das virtudes, dando oportunidade aos homens virtuosos e honrando os melhores numa arte. Ao mesmo tempo, deve animar os seus cidadãos a exercer pacificamente as suas atividades no comércio, na agricultura e em qualquer outra ocupação, de forma que o agricultor não tema ornar as suas propriedades por receio de que as mesmas lhe sejam tomadas, enquanto o comerciante não deixe de exercer o seu comércio por medo das taxas; deve, além disso, instituir prêmios para os que quiserem realizar tais coisas e os que pensarem em por qualquer forma engrandecer a sua cidade ou o seu Estado. Ademais, deve, nas épocas convenientes do ano, distrair o povo com festas e espetáculos. E, porque toda cidade está dividida em corporações de artes ou grupos sociais, deve cuidar dessas corporações e desses grupos, reunir-se com eles algumas vezes, dar de si prova de humanidade e munificência, mantendo sempre firme, não obstante, a majestade de sua dignidade, eis que esta não deve faltar em coisa alguma.
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