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Stories - Parte 1

Capítulos 4

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Stories - Parte 1: Rainy Days [3]

"Eu tento fazer meu caminho em direção a você Mas ainda me sinto tão perdida Não sei o que posso fazer"

20 de Junho - Manhã de Domingo 

Lis mal conseguiu dormir a noite, e sua aparência mostrava bem isso. Os cabelos ondulados eram um emaranhado de nós. Os olhos inchados denunciavam que havia chorado. Tinha ficado a noite inteira encarando o teto, ouvindo o estrondo em seu coração que dizia uma única palavra: Daniel. Se ao menos tivesse conseguido verbalizar seus sentimentos estaria mais segura, porém nem isso tinha feito direito. Ela não passava de uma criança covarde e medrosa.

 

Após o banho, vestiu uma blusa com gola redonda e saia plissada. O cabelo estava tão zoado que a única forma que conseguiu que ficasse minimamente bonito foi com um coque trançado. No espelho só o que vê é a imagem da derrota, mas pelo menos está bem vestida para a catequese.

 

— Bom dia, minha filha! — Samuel, o pai, diz enquanto passa o aspirador nos degraus. Seus cabelos escuros, e ondulados como os de Lis, estão grudados na testa suada.

 

Lis escuta a irmãzinha gritar na cozinha enquanto a mãe tenta lhe dar o que comer.

 

— Bom dia, pai — fala desanimada e ele percebe.

 

— Noite ruim?

 

A bebê grita mais uma vez. Lis aproveita para fugir da conversa.

 

— Acho melhor ir ver o que tá acontecendo — diz. 

 

Samuel ajeita os óculos percebendo a estratégia da filha, mas decide não pressioná-la. Sempre tiveram um ótimo relacionamento, conhece a filha como a palma da sua mão, sabe que mesmo que demore ela irá falar o que está sentindo. É o tipo de garota que quando toma decisão sobre alguma coisa não desiste fácil.

 

— Adele deve estar querendo abraçar o mundo com as mãos — ele sorri. Na cozinha a criança de três anos chora e esperneia, recusando-se a comer o que lhe é oferecido.

 

— Papai! Papai! — choraminga quando Samuel passa pela porta da cozinha americana. 

 

O cômodo é pequeno, tem uma mesa redonda com quatro cadeiras, um armário com nicho para micro-ondas, fogão e pia. A casa é antiga, pertenceu aos pais de Samuel e ficou de herança para ele após o falecimento de ambos. Lis olha para a mãe que parece prestes a explodir cobrindo parcialmente o rosto.

 

— Você pode dar a comida dela enquanto vou com Lis para a igreja? — pergunta ao marido, após uma respiração funda. Marcelle teve depressão pós parto e os resquícios ainda respinga em seu dia a dia. — Espero você terminar de aspirar.

 

— Pode ir. Eu dou conta de tudo — Samuel pegou a vitamina de abacate que a esposa oferecia com pão de leite, e a pequena Adele instantaneamente abriu um sorriso. Ele faz parecer tão fácil.

 

Marcelle os observou. Sorridentes, demonstrando um grande afeto um pelo outro.

 

— Claro que você dá conta, afinal consegue ser muito melhor do que eu no quesito paternidade — comentou. 

 

Lis mordeu as bochechas pelo lado de dentro da boca. Não soube distinguir se o rancor na voz da mãe foi intencional.

 

Nesse meio tempo, Marcelle passou voando com seu vestido azul, pegou a bolsa no sofá e saiu. Os cabelos castanhos flutuando graciosamente nas costas. Lis sorriu para o pai como quem se desculpa e foi atrás dela. A encontra no portão baixo riscando um isqueiro. Estava lutando contra o tabagismo há anos, porém em momentos como os que acabou de acontecer na cozinha surge a sombra de uma possível recaída.

 

— Desculpa tirar você de casa antes do café da manhã. Podemos dar uma passadinha rápida na padaria e você pode escolher o que quiser para comer — Marcelle diz batendo os saltos nervosamente no chão. — Não sou uma mãe tão ruim afinal.

 

— A senhora não é ruim, mãe!

 

— A sua irmãzinha discorda. — ela amassou o cigarro apagado e jogou na bolsa. Após passarem tranca o portão.

 

— Ela é mimada. E o papai faz os gostos dela por isso tem essa preferência por ele.

 

— Eu sei — disse com um suspiro. — Só que é difícil não ficar magoada. Carreguei aquela criança por nove meses pra ela me repudiar desse jeito?

 

Está um dia lindo. O céu azul sem nuvens. Nem parece que choveu torrencialmente durante a madrugada. Ao seguir pela calçada com a mãe, Lis dá uma olhada na casa vizinha com seu muro baixo e às azaleias destacadas por seu tom de roxo na cerca viva. O carro está na garagem. Imagina Daniel no próprio quarto, deitado na cama com o celular em mãos.  

 

Ou talvez estivesse assistindo tv. Os gêmeos costumavam acordar cedo e ficar vendo desenho quando eles eram menores. Daniel preparava chocolate quente com marshmallow, o preferido de Sarah, e quando Lis chegava deixava que ela escolhesse o que assistir. Às vezes eles ficavam de mãos dadas por baixo da manta. Lis adorava a segurança e o quentinho da mão daquele que era seu primeiro amor mesmo antes dela saber o que era amor. 

 

Ai, Daniel…

 

— Com você foi tão mais fácil — a mãe ainda falava. — Mesmo que não tenha sido planejada. Nossa conexão foi imediata. 

 

Ela estendeu a mão pegando a de Lis para que pudessem andar até a padaria de mãos dadas. Tinha razão, Marcelle era a melhor amiga que já teve na vida, se alguém poderia ajudá-la com seu problema amoroso esse alguém é ela.

 

— Mãe, como você soube que era com o meu pai que queria casar? — a pergunta saiu em um jato. 

 

Marcelle fez uma expressão de surpresa, então respondeu:

 

— Ah, nós éramos jovens e apaixonados. E eu fiquei grávida…

 

— Então vocês só casaram por minha causa? — a expressão de choque se alojou no rosto da menina. 

 

— Não! — a mãe se apressou a dizer. — Me casei com o seu pai por amor. Eu já sabia que queria passar o resto da minha vida com ele quando você surgiu de surpresa! — ela tocou o nariz da filha.

 

A maioria dos pais que Lis conhecia tinham casado por causa de uma gravidez acidental. Ela ficaria arrasada se fizesse parte dessa estatística. 

 

— Logo de cara achei ele um homem muito bonito. — Marcelle deu um sorriso de canto quando falou. — Às minhas amigas ficaram rindo por causa da camisa amassada, mas gosto desse estilo desleixado. E o seu pai já dava aulas então era compreensível que ele estivesse meio “cansado” — ela fez aspas no ar. — Toquei três ou quatro músicas na Festa do Pinhão com a banda, quando ele saiu da multidão e perguntou se eu aceitava uma cerveja. Eu tinha voltado de viagem há pouco tempo, ainda estava recomeçando minha vida aqui. "Só uma cervejinha ou duas" pensei, mas o jeitinho nerd dele me conquistou. — ela riu dando uma piscadela para a filha.

 

Lis já tinha escutado muitas vezes essa história sobre sua mãe estar tocando baixo no coreto diante da igreja, a sua linda voz de rouxinol soando pelos alto falantes, mas não se cansava de ouvi-lá. Às vezes se imaginava entre o público, de longe, vendo seus pais se apaixonarem.

 

— Você ainda era do rock nesta época? — perguntou.

 

— Eu sempre serei do rock! Só que agora me visto de maneira mais confortável — Marcelle falou fazendo biquinho. — Você acordou interessada em amor? É por isso que andou chorando? — a mãe perguntou. Elas pararam de andar, esperando o semáforo fechar para atravessarem na faixa.

 

Claro que Marcelle percebeu seus olhos inchados. Lis respirou fundo.

 

— Tô apaixonada, mamãe — ela morde às bochechas sentindo um nervosismo na boca do estômago. Lis tinha certeza que a mãe não iria levar numa boa, afinal qualquer mãe que se preze prefere que o filho concentre-se nos estudos antes de se aventurar nas questões do coração. 

 

— E você falou para o Daniel que gosta dele?

 

— Quem disse que é ele? — Lis virou a cabeça para encará-la. Até a noite anterior nem ela mesma sequer fazia ideia do que se passava em seu coração. Como a mãe conseguiu adivinhar tão facilmente?

 

— Não é?

 

— É sim, mas como você sabe?

 

Marcelle sorriu como se lembrasse de algo.

 

— A avó dele contou para todos nós há algum tempo. Falou “essas crianças estão a dois passos de se apaixonarem”, mas você sabe como são os adultos. Temos dificuldade em enxergar certas coisas sobre nossos próprios filhos. — Marcelle levantou a cabeça olhando para o semáforo.

 

A luz verde descia pouco a pouco.

 

— Na verdade foi ele quem falou primeiro — Lis enrolava a alça da bolsa tiracolo.

 

— Corajoso.

 

— Eu só fiquei lá fingindo que não tava entendendo. Acabei estragando tudo, mamãe — a garganta dela ameaça fechar. Às lágrimas caíram. — Eu não sabia que gostava dele e depois quando percebi que gosto não me senti pronta para, você sabe, beijar.

 

Lis fecha os olhos, respira fundo. Definitivamente ainda é muito criança. Mesmo agora não conseguia se ver beijando-o mesmo que esteja apaixonada.

 

— Ah meu amor, você não precisa se forçar a nada. — a mãe a abraça. Quando abre os olhos, Lis vê os pedestres atravessando, o semáforo estava vermelho. — Cada pessoa tem seu tempo. Eu mesma só fui dar o primeiro beijo aos 15 anos.

 

— Mas… Eu quero ele pra mim, mamãe! Se ele ficar com outra menina eu vou morrer!

 

— Lis. Você não vai morrer por causa de um menino — foi uma reprimenda. 

 

— É como me sinto! — choramingou. — Dói só de pensar! 

 

Havia uma banca quase na esquina. Marcelle rebocou a filha até lá e lhe comprou uma garrafinha de água mineral. Secou o rosto de Lis e esperou que a menina se acalmasse.

 

— Meu amor — Marcelle começou a dizer — O Daniel tem os defeitos dele, mas sempre foi nítido o quanto ele gosta de você. Como ele te protege. Se vocês conversarem sobre os seus sentimentos talvez ele não se importe de esperar pelo seu tempo, certo?

 

A garota esfregou os olhos com força. Lembrando do que Daniel havia dito antes de toda a confusão do beijo: “Quando você tiver na faculdade a gente fala sobre isso”. A mãe tinha razão, Daniel estava tão apaixonado que esperaria por ela o tempo que fosse preciso. Claro que Lis não ia deixá-lo aguardando tanto tempo por um beijo, só algumas semanas ou meses, afinal em Dezembro ela fará 14 anos.

 

A sensação de saber que o mal entendido podia ser resolvido foi um grande alívio. Lis gostava do Daniel, e o Daniel gostava da Lis. Eles iriam namorar, casar, ter filhos e viveriam juntos e felizes pelo resto da vida. Ela limpou o rosto e fungou.

 

— Marcelle? Lis?

 

Em um movimento de corpo, mãe e filha olharam para trás. Seus olhos recaíram em Olga, a bela hippie com pele cor de ébano que sorria para ambas.

 

— Ah, oi! — Marcelle falou surpresa e se curvou para frente para que Olga pudesse lhe abraçar. — Você está morando aqui no bairro?

 

— Sabe como é, sempre acabo tendo problemas com meus senhorios. Por isso minha vida é uma constante mudança — ela responde, tocando nos colares no pescoço. — E você? Parece ótima, ninguém diz que tem uma criança pequena em casa!

 

— Obrigada! O Samuel ajuda bastante, isso faz uma grande diferença. 

 

— Se o Bismarck tivesse pelo menos um terço do juízo do seu marido, a gente teria dado certo. — ela se referia ao seu ex-companheiro. Moveu os braços agitando as mangas bufantes da blusa, deixando Lis hipnotizada pelo reluzente e saudável tom da sua pele.

 

Marcelle riu então pareceu lembrar: 

 

— Estou indo dar aula de canto no coral da igreja e Lis tem catequese… — falou.

 

— Mulher desculpa, tô aqui prendendo vocês com a minha tagarelice! — Olga soltou ar pelo nariz numa meia risada. — Também tenho horário para chegar na feira de artesanato. — e mostrou seu pano com bijuterias diversas que ela mesma fazia.

 

— Já que você tá morando aqui no bairro, a gente podia combinar uma visita. Todo mundo que vai lá em casa é só pra ver Adele.

 

— Aceito um cafezinho! Tô precisando mesmo desabafar. Estou por um fio com meu atual namorado! — ela fez um gesto para dar ênfase — Parece que o Bismarck me rogou uma praga porque só aparece demônio na minha vida. Só pode ser castigo!

 

Lis ainda a observava. Era a adulta mais diferentona que conhecia, com suas tatuagens e seu modo de levar a vida. Olga pareceu perceber que é observada. 

 

— E você docinho, andou chorando? — perguntou erguendo o rosto de Lis para poder ver melhor os seus olhos. A pele pálida da menina deixava muito evidente às olheiras da noite mal dormida. 

 

— É alguma alergia. — foi Marcelle que respondeu.

 

— Own — os olhos pretos de Olga pareceram comovidos. — Ainda bem que Dimas não tem problema com alergia, é um menino saudável apesar de não praticar atividade física. — Dimas é o nome do filho dela. — O problema dele é a extrema preguiça. Só quer saber de ficar no celular o dia inteiro, isso quando não está assistindo séries! Mas hoje, nem que chova meteoro vou arrancar esse menino de casa! Por falar nisso ele te convidou?

 

Lis mexeu os olhos, confusa.

 

— Vamos acampar no parque. Pra ele entrar em contato com a natureza. — Olga explicou. — Disse ao Dimas que chamasse os amigos, o Daniel, o Nathan, a Sarah vão… Achei que você também iria. 

 

Aí estava a resposta. Dimas é o melhor amigo do Daniel. Se o Daniel estava tão puto quanto ela imaginava pela rejeição da noite passada era óbvio o motivo dela não ter sido convidada.

 

— Não importa, você é minha convidada! Não aceito não como resposta! — Olga pegou as mãos dela — Isso se melhorar da alergia. 

 

— Eu vou! Já tô bem melhor… — Lis disse sem pensar. Era sua chance de encontrar Daniel e desfazer toda essa bagunça. — Quer dizer, se a mamãe deixar. — ela olhou para Marcelle.

 

— Claro que pode, minha filha — respondeu. Se Lis soubesse dançar faria isso agora mesmo. Tinha a melhor mãe do mundo!

 

— E você não quer ir? — Olga perguntou para Marcelle. — Seria bacana ter alguém pra me ajudar a controlar esse bando de pré-adolescentes.

 

— Vou ver com o Samuel e te aviso lá pelo meio-dia — Marcelle garantiu antes de se despedirem. 

 

Durante o resto da manhã, Lis

mal viu nada na catequese. Se o padre deu algum aviso importante, ela nunca saberia. Tamanha era sua ansiedade pelo passeio marcado para aquele fim de tarde.

 

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