Skip to main content

Macunaíma

Capítulos 18

© Todos os direitos reservados.

Macunaíma: O Herói Sem Nenhum Caráter 11 - A VELHA CEIUCI

No outro dia o herói acordou muito constipado. Era porque apesar do calorão da noite ele dormira de roupa com medo da Caruviana que pega indivíduo dormindo nu. Mas estava muito ganjento com o sucesso do discurso da véspera. Esperou impaciente os quinze dias da doença resolvido a contar mais casos pro povo. Porém quando se sentiu bom era manhãzinha e quem conta história de dia cria rabo de cotia. Por isso convidou os manos pra caçar, fizeram.

 

Quando chegaram ao bosque da Saúde o herói murmurou:

 

– Aqui serve.

 

Dispôs os manos nas esperas, botou fogo no bosque e ficou também amoitado esperando que saísse algum viado mateiro pra ele caçar. Porém não tinha nenhum viado lá e quando queimada acabou, jacaré saiu? pois nem viado mateiro nem viado catingueiro, saíram só dois ratos chamuscados. Então o herói caçou os ratos chamuscados, comeu-os e sem chamar os manos voltou pra pensão.

 

Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafas estudantes empregados-públicos, muitos empregados-públicos! todos esses vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois...

 

–...mateiros, não eram viados mateiros não, dois viados catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e cachorro comeu tudo.

 

Toda a gente se sarapantou com o sucedido e desconfiaram do herói. Quando Maanape e Jiguê voltaram, os vizinhos foram perguntar pra eles si era verdade que Macunaíma caçara dois catingueiros na feira do Arouche. Os manos ficaram muito enquizilados porque não sabiam mentir e exclamaram irritadíssimos:

 

– Mas que catingueiros esses! O herói nunca matou viado! Não tinha nenhum viado na caçada não! Gato miador, pouco caçador, gente! Em vez foram dois ratos chamuscados que Macunaíma pegou e comeu.

 

Então os vizinhos perceberam que tudo era mentira do herói, tiveram raiva e entraram no quarto dele pra tomar satisfação. Macunaíma estava tocando numa flautinha feita de canudo de mamão. Parou o sopro, aparou o bocal da flautinha e se admirou muito sossegado:

 

– Pra que essa gentama no meu quarto, agora!... Faz mal pra saúde, gente!

 

Todos perguntaram pra ele:

 

– O que foi mesmo que você caçou, herói?

 

– Dois viados mateiros.

 

Então os criados as cunhãs estudantes empregados-públicos, todos esses vizinhos principiaram rindo dele. Macunaíma sempre aparando o bocal da flautinha. A patroa cruzando os braços ralhou assim:

 

– Mas, meus cuidados, pra que você fala que foram dois viados e em vez foram dois ratos chamuscados!

 

Macunaíma parou assim os olhos nela e secundou:

 

– Eu menti.

 

Todos os vizinhos ficaram com cara de André e cada um foi saindo na maciota. E André era um vizinho que andava sempre encalistrado. Maanape e Jiguê se olharam, com inveja da inteligência do mano. Maanape inda falou pra ele:

 

– Mas pra que você mentiu, herói!

 

– Não foi por querer não... quis contar o que tinha sucedido pra gente e quando reparei estava mentindo...

 

Jogou a flautinha fora, pegou no ganzá pigarreou e descantou. Descantou a tarde inteirinha uma moda tão sorumbática mas tão sorumbática que os olhos dele choravam a cada estrofe. Parou porque os soluços não deixaram mais continuar. Largou do ganzá. Lá fora a vista era uma tristura de entardecer dentro da cerração. Macunaíma sentiu-se desinfeliz e teve saudades de Ci a inesquecível. Chamou os manos pra se consolarem todos juntos. Maanape e Jiguê sentaram junto dele na cama e os três falaram longamente da Mãe do Mato. E espalhando a saudade falaram dos matos e cobertos cerrações deuses e barrancas traiçoeiras do Uraricoera. Lá que eles tinham nascido e se rido pela primeira vez nos macurus... Encostados nas maquiras pra lá do limpo do mocambo os güirás cantavam o que não dava o dia e eram pra mais de quinhentas as famílias dos güirás... Perto de quinze vezes mil espécies de animais assombravam o mato de tantos milhões de paus que não tinham mais conta... Uma feita um branco trouxera da terra dos ingleses, dentro dum sapicuá gótico, a constipação que fazia agora Macunaíma tanto chorar de sodades... E a constipação tinha ido morar no antro das formigas mumbucas mui pretas. Na escureza o calor se amaciava como saindo das águas; pra trabalhar se cantava; nossa mãe ficara virada numa coxilha mansa no lugar chamado Pai da Tocandeira... Ai, que preguiça... E os três manos perceberam pertinho o murmurejo do Uraricoera! Oh! como era bom por lá... O herói se atirou pra trás chorando largado na cama.

 

Quando a vontade de chorar parou, Macunaíma afastou os mosquitos e quis espairecer. Se lembrou de ofender a mãe do gigante com uma bocagem novinha vinda da Austrália. Virou Jiguê na máquina telefone porém o mano inda estava muito confundido com o caso da mentira do herói e não houve meios de ligar. O aparelho tinha defeito. Então Macunaíma fumou fava de paricá pra ter sonhos gostosos e adormeceu bem.

 

No outro dia lembrou que precisava se vingar dos manos e resolveu passar um pealo neles. Levantou madrugadinha e foi esconder no quarto da patroa. Brincou pra fazer tempo. Depois voltou falando afobado pros manos:

 

– Oi, manos, achei rasto fresco de tapir bem na frente da Bolsa de Mercadorias!

 

– Que me diz, perdiz!

 

– Pois é. Quem que havia de dizer!

 

Ninguém inda não matara tapir na cidade. Os manos se sarapantaram e foram com Macunaíma caçar o bicho. Chegaram lá, principiaram procurando o rasto e aquele mundão de gente comerciantes revendedores baixistas matarazos, vendo os três manos curvados pro asfalto procurando, principiaram campeando também, todo aquele mundão de gente. Procuraram procuraram, você achou? nem eles! Então perguntaram pra Macunaíma:

 

– Onde que você achou rasto de tapir? Aqui não tem rasto nenhum não! Macunaíma não parava de campear falando sempre:

 

– Tetápe dzónanei pemonéite hêhê zeténe netaíte.

 

E os manos regatões zangões tequeteques madalenas e hungareses recomeçavam procurando o rasto. Quando cansavam e paravam pra perguntar, Macunaíma campeando sempre secundava:

 

– Tetápe dzónanei pemonéite hêhê zeténe netaíte.

 

E todo aquele mundão de gente procurando. Era já perto da noite quando pararam desacorçoados. Então Macunaíma se desculpou:

 

– Tetápe dzónanei pemo...

 

Não deixaram nem que ele acabasse, todos perguntando o que significava aquela frase. Macunaíma respondeu:

 

– Sei não. Aprendi essas palavras quando era pequeno lá em casa.

 

E todos se queimaram muito. Macunaíma fastou disfarçado falando:

 

– Calma, gente! Tetápe hêhê! Não falei que tem rasto de tapir não, falei que tinha! Agora não tem mais não.

 

Foi pior. Um dos comerciantes se zangou de verdade e o repórter que estava ao pé dele vendo o outro zangado zangou também por demais.

 

– Isso não vai assim não! Pois então a gente vive trabucando pra ganhar o pão nosso e vai um indivíduo tira a gente o dia inteiro do trabalho só pra campear rasto de tapir!

 

– Mas eu não pedi pra ninguém procurar rasto, moço, me desculpe! Meus manos Maanape e Jiguê é que andaram pedindo, eu não! Culpa é deles!

 

Então o povo que já estava todo zangado virou contra Maanape e contra Jiguê. Já todos, e eram muitos! estavam com vontade de armar uma briga. Então um estudante subiu na capota dum auto e fez discurso contra Maanape e contra Jiguê. O povo estava ficando zangadíssimo.

 

– Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais dentro da magnífica entrosagem do seu progresso siquer a passagem momentânea de seres inócuos.

 

Ergamo-nos todos una voce contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social e já que o Governo cerra os olhos e delapida os cofres da Nação, sejamos nós mesmos os justiçadores...

 

– Lincha! lincha! que o povo principiou gritando.

 

– Que lincha nada! exclamou Macunaíma tomando as dores pelos manos.

 

E todos se viraram contra ele outra vez. E agora já estavam zangadíssimos. O estudante continuava pra si:

 

–...e quando o trabalho honesto do povo é perturbado por um desconhecido...

 

– O quê! quem que é desconhecido! berrou Macunaíma desesperado com a ofensa.

 

– Você!

 

– Não sou, ’tá’í!

 

– É!

 

– Ora vá desmamar jacu com alpiste, moço! Desconhecida é a senhora vossa mãe, ouviu! – e virando pro povo: O que vocês estão pensando, heim! Não tenho medo não! nem de um nem de dois nem de dez mil e daqui a pouco eu arraso tudo isto aqui!

 

Uma madalena que estava na frente do herói, virou pro comerciante atrás dela e zangou:

 

– Não bolina, senvergonha!

 

O herói estava cego de raiva, pensou que era com ele e:

 

– Que “não bolina” agora! não estou bolinando ninguém, sua lambisgóia!

 

– Lincha o bolina! Pau nele!

 

– Pois venham, cafajestes!

 

E avançou pra multidão. O advogado quis fugir porém Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem alto loiro mui lindo. E o homem era um grilo. Macunaíma teve ódio de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo. O grilo berrou, e enquanto falava uma frase em língua estrangeira agarrou o herói pelo congote.

 

– Prrreso!

 

O herói gelou.

 

– Preso por quê?

 

O polícia secundou uma porção de coisas em língua estrangeira e segurou firme.

 

– Não estou fazendo nada! que o herói murmurava com medo.

 

Porém o grilo não quis conversa e foi descendo a ladeirinha com o povo todo atrás. Outro grilo chegou e os dois falaram muitas frases, muitas! em língua estrangeira e lá foram empurrando o herói ladeira abaixo. Um testemunha de tudo contou o sucedido pra um senhor que estava na porta duma casa de frutas e o senhor penalizado atravessou a multidão e fez os grilos pararem. Era já na rua Líbero. Então o senhor fez um discurso pros grilos, que eles não deviam de levar Macunaíma preso porque o herói não fizera nada. Tinha ajuntado uma porção de grilos mas nenhum não entendia o discurso porque nenhum não pescava nada de brasileiro. As mulheres choravam com dó do herói. Os grilos falavam por demais numa língua estrangeira e uma voz gritou:

 

– Não pode!

 

Então o povo ficou com muita vontade de pelear outra vez e de todos os lados agora estavam gritando: “Larga!”, “Não leva!”, “Não pode!”, “Não pode!”, um chinfrim, “Solta!”. Um fazendeiro estava disposto a fazer discurso insultando a Polícia. Os grilos não entendiam nada e gesticulavam, muito atrapalhados falando em língua estrangeira. Formou-se um furdunço temível. Então Macunaíma se aproveitou da trapalhada e pernas pra que vos quero! Vinha um bonde na carreira badalando. Macunaíma pongou o bonde e foi ver como passava o gigante.

 

Venceslau Pietro Pietra já principiava convalescendo da sova apanhada na macumba. Fazia um calorão dentro da casa porque era hora de cozinharem a polenta e fora a fresca era boa por causa do vento sulão. Por isso o gigante com a velha Ceiuci as duas filhas e a criadagem pegaram cadeiras e vieram sentar na porta da rua pra gozar a frescata. O gigante ainda não saíra do algodão e estava talequal um fardo caminhando. Sentaram.

 

O curumi Chuvisco andava librinando pelo bairro e encontrou Macunaíma negaceando da esquina. Parou e ficou olhando o herói. Macunaíma virou-se:

 

– Nunca viu não!

 

– Que que você está fazendo aí, conhecido!

 

– Estou assustando o gigante Piaimã com sua família.

 

Chuvisco debicou:

 

– Qual! não vê que gigante tem medo de ti!

 

Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve raiva. Quis bater nele porém lembrou de-cor: “Quando você estiver embrabecendo conta três vezes os botões da vossa roupa”, contou e ficou manso de novo. Então secundou:

 

– Quer apostar? Eu faço e aconteço e garanto que Piaimã vai pra dentro com medo de mim. Esconde lá perto pra escutar só o que eles falam.

 

Chuvisco avisou:

 

– Oi, conhecido, tome tento com gigante! Você já sabe do que ele é capaz. Piaimã está fraco está fraco porém canudo que teve pimenta guarda o ardume... Si você não tem medo mesmo, aposto.

 

Virou numa gota e pingou rente de Venceslau Pietro Pietra com a companheira as filhas e a criadagem. Então Macunaíma pegou na primeira palavra-feia da coleção e jogou na cara de Piaimã. O palavrão bateu de rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem se incomodou, direitinho elefante. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora. A ofensa bateu rijo porém se incomodar é que ninguém se incomodou. Então Macunaíma jogou toda a coleção de bocagens e eram dez mil vezes dez mil bocagens. Venceslau Pietro Pietra falou pra velha Ceiuci, bem quieto: – Tem algumas que a gente não conhece inda não, guarda pra nossas filhas. Então Chuvisco voltou pra esquina. O herói garganteou:

 

– Tiveram medo ou não tiveram!

 

– Medo nada, conhecido! até o gigante mandou guardar as bocagens novas pras filhas brincarem. De mim que eles têm medo, você aposta? Vá lá perto e escute só.

 

Macunaíma virou num caxipara que é o macho da formiga saúva e foi se enroscar na rama de algodão acolchoando o gigante. Chuvisco amontou numa neblina e quando ia passando em riba da família deu uma mijadinha no ar. Principiou peneirando uma chuva-de-preguiça. Quando os pingos vieram caindo o gigante olhou pra um agarrado na mão dele e teve paúra de tanta água.

 

– Vam’bora, gente!

 

E todos com muito medo foram correndo pra dentro. Então Chuvisco desapeou e disse pra Macunaíma:

 

– Está vendo?

 

E assim até hoje. A família do gigante tem medo de Chuvisco mas de palavra-feia não.

 

Macunaíma ficou muito despeitado e perguntou pro rival:

 

– Me diga uma coisa: você conhece a língua do limpim-guapá?

 

– Nunca vi mais gordo!

 

– Pois então, rival: Vá-pá-à-pá mer-per-da-pá!

 

E abriu o pala até a pensão.

 

Mas estava muito contrariado por ter perdido a aposta e se lembrou de fazer uma pescaria. Porém não podia pescar nem de flecha nem com timbó nem jotica nem cunambi nem tingui nem macerá nem no pari nem com linha nem arpão nem juquiaí nem sararaca nem gaponga nem de poita nem caçuá nem itapuá nem de jiqui nem de grozera nem de jererê, guê, tresmalho aparador de gungá cambango arinque batebate gradeira caicai penca anzol de vara covo, todos esses objetos armadilhas e venenos porque não possuía nada disso não. Fez um anzol com cera de mandaguari mas bagre mordia, levava anzol e tudo. Porém tinha ali perto um inglês pescando aimarás com anzol de verdade. Macunaíma voltou pra casa e falou pra Maanape:

 

– Que que havemos de fazer! Carecemos de tomar anzol de inglês. Vou virar aimará de mentira pra enganar o bife. Quando ele me pescar e der a batida na minha cabeça então faço “juque!” enganando que morri. Ele me atira no samburá, você pede o peixe mais grande pra comer e sou eu.

 

Fez. Virou num aimará pulou na lagoa, o inglês pescou-o e bateu na cabeça dele. O herói gritou “Juque!”. Mas o inglês tirou o anzol da goela do peixe porém. Maanape veio vindo e muito disfarçado pediu pro inglês:

 

– Dá peixe pra mim, seu Yes?

 

– All right. E deu um lambari de rabo vermelho.

 

– Ando padecendo de fome, seu inglês! dá um macota, vá! esse um gordinho do samburá!

 

Macunaíma estava com o olho esquerdo dormindo porém Maanape conheceu-o bem. Maanape era feiticeiro. O inglês deu o aimará pra Maanape que agradeceu e foi-se embora. Quando estava légua e meia longe o aimará virou Macunaíma outra vez. Assim três vezes, inglês sempre tirando anzol da goela do herói. Macunaíma segredou pro mano:

 

– Que que havemos de fazer! Carecemos de tomar anzol de inglês. Vou virar piranha de mentira e arranco anzol da vara.

 

Virou numa piranha feroz pulou na lagoa arrancou o anzol e desvirando outra vez légua e meia abaixo no lugar chamado Poço do Umbu onde tinha umas pedras cheias de letreiros encarnados da gente fenícia, sacou o anzol da goela bem contente porque agora podia pescar corimã piraíba aruana pirara piaba, todos esses peixes. Os dois manos iam-se quando escutaram inglês falando pra uruguaio:

 

– Que posso fazer agora! Não possuo mais anzol que a piranha engoliu. Vou pra vossa terra, conhecido.

 

Então Macunaíma fez um grande gesto com os dois braços e gritou:

 

– Espera um bocado, tapuitinga!

 

O inglês se voltou e Macunaíma só de caçoada virou-o na máquina London Bank.

 

No outro dia falou pros manos que ia pescar peixões no igarapé Tietê. Maanape avisou:

 

– Não vá, herói, que você topa com a velha Ceiuci mulher do gigante. Te come, heim!

 

– Não tem inferno pra quem já navegou no Cachoeira! que Macunaíma exclamou. E partiu.

 

Nem bem lançou a linha de cima dum mutá que veio vindo a velha Ceiuci pescando de tarrafa. A caapora viu a sombra de Macunaíma refletida n’água e jogou depressa a tarrafa e só pescou sombra. O herói nem não achou graça porque estava tremendo de medo, vai, pra agradecer falou assim:

 

– Bom-dia, minha vó.

 

A velha virou a cara pro alto e descobriu Macunaíma em riba do mutá.

 

– Vem cá, meu neto.

 

– Não vou lá não.

 

– Pois então mando marimbondos.

 

Fez. Macunaíma arrancou um molho de pataqueira e matou os marimbondos.

 

– Desce, meu neto, que sinão mando novatas!

 

Fez. As formigas novatas ferraram em Macunaíma e ele caiu n’água. Então a velha tarrafeou, envolveu o herói nas malhas e foi pra casa. Lá chegada pôs o embrulho na sala-de-visitas que tinha um abajur encarnado e foi chamar a filha mais velha que era bem habilidosa, pras duas comerem o pato que ela caçara. E o pato era Macunaíma o herói. Porém a filhona estava muito ocupada porque era mesmo habilidosa e a velha pra adiantar serviço foi fazer fogo. A caapora possuía duas filhas e a mais nova que não era nada habilidosa e só sabia suspirar, enxergando a velha fazer fogo, imaginou: “Mãe quando vem da pescaria conta logo o que pescou, hoje não. Vou ver.” Desenrolou a tarrafa e saiu dela um moço bem do gosto. O herói falou:

 

– Me esconde!

 

Então a moça que estava mui bondosa porque vivia desocupada desde tempo, levou Macunaíma pro quarto e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro.

 

Quando fogo ficou bem quente a velha Ceiuci veio com a filhona habilidosa pra depenarem o pato porém acharam só tarrafa. A caapora embrabeceu:

 

– Isso há-de ser minha filhinha nova que é muito bondosa...

 

Bateu no quarto da moça, gritando:

 

– Minha filhinha nova, entrega já meu pato que sinão enxoto você da casa minha pra todo o sempre!

 

A moça ficou com medo e mandou Macunaíma atirar vinte milréis por debaixo da porta pra ver si contentava a gulosa. Macunaíma de medo já atirou cem que viraram em muitas perdizes lagostas robalos vidros-de-perfume e caviar. A velha gulosa engoliu tudo e pediu mais. Então Macunaíma atirou um conto de réis por debaixo da porta. O conto virou em mais lagostas coelhos pacas champanha rendas cogumelos rãs e a velha sempre comendo e pedindo mais. Então a moça bondosa abriu a janela dando pro Pacaembu deserto e falou:

 

– Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: É comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente?

 

– Ah! isso é indecência sim!

 

– Bobo! é macarrão!

 

– Ahn... é mesmo!... Engraçado, não?

 

– Agora o que é que é: Qual o lugar onde as mulheres têm cabelo mais crespinho?

 

– Oh, que bom! isso eu sei! é aí!

 

– Cachorro! É na África, sabe!

 

– Me mostra, por favor!

 

– Agora é a última vez. Diga o que que é:

 

“Mano, vamos fazer
Aquilo que Deus consente:
Ajuntar pêlo com pêlo,
Deixar o pelado dentro.”

 

E Macunaíma:

 

– Ara! Também isso quem não sabe! Mas cá pra nós que ninguém nos ouça, você é bem senvergonha, dona!

 

– Descobriu. Não é dormir ajuntando os pêlos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que você está imaginando? Pois si você não acertasse pelo menos uma das adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu. Na esquina você encontra uns cavalos. Tome o castanho-escuro que pisa no mole e no duro. Esse é bom. Si você escuta um passarinho gritando “Baúa! Baúa!” então é a velha Ceiuci chegando. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu!

 

Macunaíma agradeceu e pulou pela janela. Na esquina estavam dois cavalos, um castanho-escuro e outro cardão-pedrês. “Cavalo cardão-pedrês pra carreira Deus o fez” Macunaíma murmurou. Pulou nesse e abriu na galopada. Caminhou caminhou caminhou e já perto de Manaus ia correndo quando o cavalo deu uma topada que arrancou chão. No fundo do buraco Macunaíma enxergou uma coisa relumeando. Cavou depressa e descobriu o resto do deus Marte, escultura grega achada naquelas paragens inda na Monarquia e primeiro-de-abril passado no Araripe de Alencar pelo jornal chamado Comércio do Amazonas. Estava contemplando aquele torso macanudo quando escutou “Baúa! Baúa!”. Era a velha Ceiuci chegando. Macunaíma esporeou o cardão-pedrês e depois de perto de Mendoza na Argentina quase dar um esbarrão num galé que também vinha fugindo da Guiana Francesa, chegou num lugar onde uns padres estavam melando. Gritou:

 

– Me escondam, padres!

 

Nem bem os padres esconderam Macunaíma num pote vazio que a caapora chegou montada no tapir.

 

– Não viram meu neto passar por aqui no seu cavalinho comendo capim?

 

– Já passou.

 

Então a velha apeou do tapir e montou num cavalo gázeo-sarará que nunca prestou nem prestará e seguiu. Quando ela virou a serra do Paranacoara os padres tiraram o herói do pote, deram pra ele um cavalo melado-caxito que tanto é bom como é bonito e mandaram ele embora. Macunaíma agradeceu e galopou. Logo adiante encontrou uma cerca de arame porém era cavaleiro: deu um sacalão, esbarrou o pongo e ajuntando as mãos do animal caído com um jeito forte fez o cavalo girar e passar por debaixo do arame. Então o herói pulou a cerca e amontou de novo. Galopeou galopeou galopeou. Passando no Ceará decifrou os letreiros indígenas do Aratanha; no Rio Grande do Norte costeando o serrote do Cabelo não-tem decifrou outro. Na Paraíba, indo de Manguape pra Bacamarte passou na Pedra-Lavrada com tanta inscrição que dava um romance. Não leu por causa da pressa e nem a da Barra do Poti no Piauí, nem a de Pajeú em Pernambuco, nem a dos Apertados do Inhamum que já era no quarto dia e se escutava no ar rentinho: “Baúa! Baúa!” Era a velha Ceiuci chegando. Macunaíma pernas pra que vos quero pelo eucaliptal. Mas o passarinho sempre mais perto e Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela velha. Afinal topou com a biboca dum surucucu que tinha parte com o canhoto.

 

– Me esconde, surucucu!

 

O surucucu nem bem escondeu o herói no buraco da latrininha, a velha Ceiuci chegou.

 

– Não viram meu neto passar por aqui no seu cavalinho comendo capim?

 

– Já passou.

 

A gulosa apeou do gázeo-sarará que nunca prestou nem prestará e montou num cavalo bebe-em-branco que é cavalo manco e seguiu.

 

Então Macunaíma escutou surucucu tratando com a companheira pra fazerem um moquém do herói. Pulou do buraco do quartinho e jogou no terreiro o anel com brilhantão que dera de presente pro dedo Mindinho. O brilhantão virou em quatro contos de carros de milho, adubo Polisu e uma fordeca de segunda mão. Enquanto o surucucu olhava pra aquilo tudo satisfeito, Macunaíma pro melado-caxito descansar, amontou num bagual cardão-rodado que nunca pode estar parado e galopou através de varjões e varjotas. Varou num átimo o mar de areia do chapadão dos Parecis e por derrames e dependurados entrou na caatinga e assustou as galinhas com pintos de ouro do Camutengo perto de Natal. Légua e meia adiante abandonando a margem do São Francisco emporcalhada com a enchente-da-páscoa, entrou por uma brecha aberta no morro alto. Ia seguindo quando escutou um “psiu” de cunhã. Parou morto de medo. Então saiu do meio da catinga-de-porco uma dona alta e feiosa com trança até o pé. E a dona perguntou cochichado pro herói:

 

– Já se foram?

 

– Se foram, quem!

 

– Os holandeses!

 

– Você está caducando, que holandês esse! Não tem holandês nenhum, dona!

 

Era Maria Pereira cunhã portuga amufumbada naquela brecha de morro desde a guerra com os holandeses. Macunaíma não sabia bem mais em que parte do Brasil estava e lembrou de perguntar.

 

– Me diga uma coisa, filho de gambá é raposa, como que chama este lugar? A cunhã secundou emproada:

 

– Aqui é o Buraco de Maria Pereira.

 

Macunaíma soltou uma grande gargalhada e escafedeu enquanto a mulher amoitava outra vez. O herói seguiu de carreira e enfim passou pra outra banda do rio Chuí. Foi lá que topou com o tuiuiú pescando.

 

– Primo Tuiuiú, você me leva pra casa?

 

– Pois não!

 

Logo o tuiuiú se transformou na máquina aeroplano, Macunaíma escanchou no aturiá vazio e ergueram vôo. Voaram sobre o chapadão mineiro de Urucuia, fizeram o circuito de Itapecerica e bateram pro Nordeste. Passando pelas dunas de Mossoró, Macunaíma olhou pra baixo e enxergou Bartolomeu Lourenço de Gusmão, batina arregaçada, pelejando pra caminhar no areão. Gritou pra ele:

 

– Venha aqui com a gente, ilustre!

 

Porém o padre gritou com um gesto imenso:

 

– Basta!

 

Depois que pulando a serra do Tombador no Mato Grosso deixaram pra esquerda as cochilhas de Sant’Ana do Livramento, o tuiuiú-aeroplano e Macunaíma subiram até o Telhado do Mundo, mataram a sede nas águas novas do Vilcanota e na última etapa voando sobre Amargosa na Baía, sobre a Gurupá e sobre o Gurupi com a sua cidade encantada, enfim toparam de novo com o mocambo ilustre do igarapé Tietê. Daí a pouquinho estavam na porta da pensão. Macunaíma agradeceu muito e quis pagar o ajutório porém se lembrou que estava carecendo de fazer economia. Virou pro tuiuiú e falou:

 

– Olha, primo, pagar não posso não mas vou te dar um conselho: Neste mundo tem três barras que são a perdição dos homens: barra de rio, barra de ouro e barra de saia, não caia!

 

Porém estava tão acostumado a gastar que esqueceu-se da economia. Deu dez contos pro tuiuiú, subiu satisfeito pro quarto e contou tudo pros manos já muito ressabiados com a demora. O caso afinal custara uns bons pacotes. Maanape então virou Jiguê num telefone e deu queixa pra Polícia que deportou a velha gulosa. Porém Piaimã tinha muita influência e ela voltou na companhia lírica.

 

A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu. É uma cometa. 

0.0/5 pontuação (0 votos)
Visualizações35


  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!

Deixe um comentário

Você está comentando como visitante.
  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!