Skip to main content

Macunaíma

Capítulos 18

© Todos os direitos reservados.

Macunaíma: O Herói Sem Nenhum Caráter 12 - TEQUETEQUE, CHUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS

No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite inteira e sonhado com navio.

 

– Isso é viagem por mar, falou a dona da pensão.

 

Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logo Jiguê na máquina telefone pra insultar a mãe de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra telefonista avisou que não secundavam. Macunaíma achou aquilo esquisito e quis se levantar pra ir saber o que era. Porém sentia um calorão coçado no corpo todo e uma moleza de água. Murmurou:

 

– Ai... que preguiça...

 

Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens. Quando os manos vieram saber o que era, era sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento curandeiro em Beberibe que curava com alma de índio e a água de pote. Bento deu uma agüinha e fez reza cantada. Numa semana o herói já estava descascando. Então se levantou e foi saber o que tinha sucedido pro gigante.

 

Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinho contou que Piaimã com toda a família fora na Europa descansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado e voltou macambúzio pra pensão. Maanape e Jiguê encontraram o herói na porta da rua e perguntaram pra ele:

 

– Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados?

 

Então Macunaíma contou o sucedido e principiou chorando. Os manos ficaram bem tristes de ver o herói assim e levaram ele visitar o Leprosário de Guapira, porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não teve graça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam desesperados. Tiraram uma porção enorme de tabaco dum cornimboque imitando cabeça de tucano e espirraram bem. Então puderam pensamentear.

 

– Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando galo, cozinhando galo, o gigante é que não havia de esperar, foi-se. Agora agüente a maçada!

 

Nisto Jiguê bateu na cabeça e exclamou:

 

– Achei!

 

Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou imaginou e concluiu:

 

– Tem coisa milhor.

 

– Pois então desembuche!

 

– Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do Governo e vai sozinho.

 

– Mas pra que tanta complicação si a gente possui dinheiro à beça e os manos podem me ajudar na Europa!

 

– Você tem cada uma que até parece duas! Poder a gente pode sim porém mano seguindo com arame do Governo não é milhor? É. Pois então!

 

Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa:

 

– Achei!

 

Os manos levaram um susto.

 

– Que foi!

 

– Pois então finjo de pintor que é mais bonito!

 

Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor.

 

No outro dia pra esperar a nomeação matou o tempo fazendo pinturas. Assim: agarrou num romance de Eça de Queirós e foi na Cantareira passear. Então passou perto dele um cotruco andarengo muito marupiara porque possuía folhinha de picapau. Macunaíma deitado de bruços divertia-se amassando os tacurus das formigas tapipitingas. O tequeteque saudou:

 

– Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Trabalhando, não?

 

– Quem não trabuca não manduca.

 

– É mesmo. Bom, té-loguinho.

 

E passou. Légua e meia adiante topou com um micura e lembrou de trabucar também um bocado. Pegou no gambazinho, fez ele engolir dez pratas de dois milréis e voltou com o bicho debaixo do braço. Chegando perto de Macunaíma mascateou:

 

– Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Si você quer te vendo meu micura.

 

– Que que vou fazer com um bicho tão pixento! Macunaíma secundou botando a mão no nariz.

 

– Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só prata que sai! Vendo barato pra você!

 

– Deixe de conversa, turco! Onde que se viu micura assim!

 

Então o tequeteque apertou a barriga do gambá e o bicho desistiu as dez pratinhas.

 

– Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando a gente fica riquíssimo! Barato pra você!

 

– Quanto que custa?

 

– Quatrocentos contos.

 

– Não posso comprar, só tenho trinta.

 

– Pois então pra ficar freguês deixo por trinta contos pra você!

 

Macunaíma desabotoou as calças e por debaixo da camisa tirou o cinto que carregava dinheiro. Porém só tinha a letra de quarenta contos e seis fichas do Cassino de Copacabana. Deu a letra e teve vergonha de receber o troco. Até inda deu as fichas de inhapa e agradeceu a bondade do tequeteque.

 

Nem bem o mascate sovertera entre as sapupiras guarubas e parinaris do mato que já o micura quis fazer necessidade outra feita. O herói arredondou o bolso aparando e a porcaria caiu toda ali. Então Macunaíma percebeu o logro e abriu numa gritaria desgraçada, caminho da pensão. Virando uma esquina encontrou o José Prequeté e gritou para ele:

 

– Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café!

 

José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãe do herói porém este não fez caso não, deu uma grande gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que ia indo pra casa zangado e pegou na gritaria outra vez.

 

Os manos inda não tinham voltado da maloca do Governo e a patroa veio no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram. Depois de brincarem o herói pegou no choro. Quando os manos chegaram toda a gente se sarapantou porque eles tinham cinco metros de altura. Não vê que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São Nunca. Ficava muito longe. O invento tinha favado e os manos ficaram compridos por causa do desaponto. Quando enxergaram o mano chorando, se assustaram bem e quiseram saber a causa. E como esqueceram o desaponto voltaram pro tamanho de dantes, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O herói fazia:

 

– Ihihih! tequeteque me embromou! Ihihih! Comprei micura dele, quarenta contos me custou!

 

Então os irmãos se descabelaram. Agora não era possível mais irem na Europa não, porque possuíam só a noite e o dia. Levaram na prantina enquanto o herói esfregava ólio de andiroba no corpo pros mosquitos não amolarem e adormecia bem.

 

No outro dia amanheceu fazendo um calorão temível e Macunaíma suava que mais suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do Governo. Quis sair pra espairecer porém aquela roupa tanta aumentando o calor... Teve mais raiva. Teve raiva por demais e maliciou que ia ficar com o butecaiana que é doença da raiva. Então exclamou:

 

– Ara! Ande eu quente, ria-se a gente!

 

Tirou as calças pra refrescar e pisou em cima. A raiva se acalmou no sufragante e até que muito satisfeito Macunaíma falou pros manos:

 

– Paciência, manos! não! não vou na Europa não. Sou americano e meu lugar é na América. A civilização européia na certa esculhamba a inteireza do nosso caráter.

 

Durante uma semana os três vararam o Brasil todo pelas restingas de areia marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs, abertões, corredeiras carrascos carrascões e chavascais, coroas de vazante boqueirões mangas e fundões que eram ninhos de geada, espraiados pancadas pedrais funis bocainas barroqueiras e rasouras, todos esses lugares, campeando nas ruínas dos conventos e na base dos cruzeiros pra ver si não achavam alguma panela com dinheiro enterrado. Não acharam nada.

 

– Paciência, manos! Macunaíma repetiu macambúzio. Jogamos no bicho!

 

E foi na praça Antônio Prado meditar sobre a injustiça dos homens. Ficou lá encostado num plátano muito bem. Todos os comerciantes e aquele despropósito de máquinas passavam rentinho do herói grugunzando sobre a injustiça dos homens. Macunaíma já estava disposto a mudar o dístico pra: “Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são” quando escutou um “Ihihih!” chorado atrás. Virou e viu no chão um ticotico e um chupim.

 

O ticotico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia raiva. O ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era não. Então voava, arranjava um decumê por aí que botava no bico do chupinzão. Chupinzão engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! mamãe... telo decumê!... telo decumê!...” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhém-nhenhenhém azucrinando ele atrás, diz-que “Telo decumê!... telo decumê!...”, não podia com o amor sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichinho uma quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava meditando na injustiça dos homens e teve um amargor imenso da injustiça do chupinzão. Era porque Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram gente feito nós... Então o herói pegou num porrete e matou o ticotiquinho.

 

Foi-se embora. Depois que andou légua e meia sentiu calor e lembrou de beber pinga pra refrescar. Trazia sempre num bolso do paletó uma garrafinha de pinga presa ao puíto por uma corrente de prata. Desarrolhou e chupitou de manso. Eis sinão quando escutou atrás um “Ihihih!” chorando. Virou sarapantado. Era o chupinzão.

 

– Ihihih! papai... telo decumê!... telo decumê!... lá na língua dele.

 

Macunaíma ficou com ódio. Abriu o bolso onde estava guardado aquilo do micura e falou:

 

– Pois coma então!

 

Chupinzão pulou na beira do bolso e comeu tudo sem saber. Foi engordando engordando, virou num pássaro preto bem grande e voou pros matos gritando “Afinca! Afinca!”. É o Pai do Vira.

 

Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adiante estava um macaco mono comendo coquinho baguaçu. Pegava no coquinho, botava no vão das pernas junto com uma pedra, apertava e juque! a fruta quebrava. Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia d’água. Falou:

 

– Bom-dia, meu tio, como lhe vai?

 

– Assim assim, sobrinho.

 

– Em casa todos bons?

 

– Na mesma.

 

E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquizilou assanhado:

 

– Não me olhe de banda que não sou quitanda, não me olhe de lado que não sou melado!

 

– Mas o que você está fazendo aí, tio!

 

O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada e secundou:

 

– Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer.

 

– Vá mentir na praia!

 

– Uai, sobrinho, si tu não dá crédito então pra que pergunta!

 

Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou:

 

– É gostoso é?

 

O mono estalou a língua:

 

– Chi! prove só!

 

Quebrou de escondido outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus e deu pra Macunaíma comer. Macunaíma gostou bem.

 

– É bom mesmo, tio! Tem mais?

 

– Agora se acabou mas si o meu era gostoso que fará os vossos! Come eles, sobrinho!

 

O herói teve medo:

 

– Não dói não?

 

– Qual, si até é agradável!...

 

O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono rindo por dentro inda falou pra ele:

 

– Você tem mesmo coragem, sobrinho?

 

– Boni-t-o-tó macaxeira mocotó! o herói exclamou empafioso. Firmou bem o paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto. O macaco mono caçoou assim:

 

– Pois, meus cuidados, não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás vendo o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit!

 

Então calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada que refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de correições de formigas guajuguajus e murupetecas pro corpo morto. O advogado Fulano atraído pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto pra pensão, fez. Carregou Macunaíma nas costas e foi andando. Porém o defunto pesava por demais e o advogado viu que não podia com o peso. Então arriou o cadáver e deu uma coça de vara nele. O defunto ficou levianinho levianinho e o advogado Fulano pôde levá-lo pra pensão.

 

Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu de emprestado pra patroa dois cocos-da-Baía, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus amassados e assoprou fumaça de cachimbo no defunto herói. Macunaíma foi se erguendo muito desmerecido. Deram guaraná pra ele e daí a pouco matava sozinho as formigas que inda o mordiam. Estava tremendo muito porque por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena tinha dado mesmo. E assim eles viveram com os palpites do mano mais velho. Maanape era feiticeiro. 

0.0/5 pontuação (0 votos)
Visualizações53


  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!

Deixe um comentário

Você está comentando como visitante.
  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!