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Macunaíma

Capítulos 18

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Macunaíma: O Herói Sem Nenhum Caráter 1º PREFÁCIO e 2º PREFÁCIO

 1º PREFÁCIO

Este livro carece dumas explicações pra não iludir nem desiludir os outros.

 

Macunaíma não é símbolo nem se tome os casos dele por enigmas ou fábulas. É um livro de férias escrito no meio de mangas abacaxis e cigarras de Araraquara, um brinquedo. Entre alusões sem malvadeza ou seqüência desfatiguei o espírito nesse capoeirão da fantasia onde a gente não escuta as proibições os temores, os sustos da ciência ou da realidade – apitos dos polícias, breques por engraxar. Porém imagino que como todos os outros o meu brinquedo foi útil. Me diverti mostrando talvez tesouros em que ninguém não pensa mais.

 

O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa me parece que certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é (uma) novidade pra mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal.

 

(O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente ou consciência de séculos tenha auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter.) Brasileiro (não). Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. Dessa falta de caráter psicológico creio otimistamente, deriva a nossa falta de caráter moral. Daí nossa gatunagem sem esperteza, (a honradez elástica/a elasticidade da nossa honradez), o desapreço à cultura verdadeira, o improviso, a falta de senso étnico nas famílias. E sobretudo uma existência (improvisada) no expediente (?) enquanto a ilusão imaginosa feito Colombo de figura-de-proa busca com olhos eloqüentes na terra um eldorado que não pode existir mesmo, entre panos de chãos e climas igualmente bons e ruins, dificuldades macotas que só a franqueza de aceitar a realidade poderia atravessar. É feio.

 

Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de KochGrünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei.) Vivi de perto o ciclo das façanhas dele. Eram poucas. Inda por cima a história da moça deu enxerto cantando pra outro livro mais sofrido, tempo da Maria... Então veio vindo a idéia de aproveitar pra um romancinho mais outras lendas casos brinquedos costumes brasileiros ou afeiçoados no Brasil. Gastei muito pouca invenção neste poema fácil de escrever.

 

Quanto a estilo, empreguei essa fala simples tão sonorizada, música mesmo, por causa das repetições, que é costume dos livros religiosos e dos contos estagnados no rapsodismo popular. Foi pra fastarem de minha estrada essas gentes que compram livros pornográficos por causa da pornografia. Ora si é certo que meu livro possui além de sensualidade cheirando alguma pornografia e mesmo coprolalia não haverá quem conteste o valor calmante do brometo de meu estilo, aqui/dum estilo assim.

 

Não podia tirar a documentação obscena das lendas. Uma coisa que não me surpreende porém ativa meus pensamentos é que em geral essas literaturas rapsódicas e religiosas são freqüentemente pornográficas e em geral sensuais. Não careço de citar exemplos. Ora uma pornografia desorganizada é também da quotidianidade nacional. Paulo Prado, espírito sutil pra quem dedico este livro, vai salientar isso numa obra de que aproveito-me antecipadamente.

 

E se ponha reparo que falei em “pornografia desorganizada”. Porque os alemães científicos, os franceses de sociedade, os gregos filosóficos, os indianos especialistas, os turcos poéticos etc. existiram e existem, nós sabemos. A pornografia entre eles possui caráter étnico. Já se falou que três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria... De fato. Meu interesse por Macunaíma seria hipocritamente preconcebido por demais se eu podasse do livro o que é da abundância das nossas lendas indígenas (Barbosa Rodrigues, Capistrano de Abreu, Koch-Grünberg) e desse pro meu herói amores católicos e discrições sociais que não seriam dele pra ninguém.

 

Se somando isso com minha preocupação brasileira, profundamente pura, temos Macunaíma, livro meu.

 

Quanto a algum escândalo possível que o trabalho possa causar, sem sacudir a poeira das sandálias, que não uso sandálias dessas, sempre tive uma paciência (muito) piedosa com a imbecilidade pra que o tempo do meu corpo não cadenciasse meus dias de luta com noites cheias de calma/pra que no tempo do corpo não viessem cadenciar meus dias de luta as noites cheias de calma.

 

Araraquara 19 de dezembro de 1926.

 

2º PREFÁCIO

Este livro de pura brincadeira escrito na primeira redação em seis dias ininterruptos de rede, cigarros e cigarras na chacra de Pio Lourenço perto do ninho da luz que é Araraquara, afinal resolvi dar sem mais preocupação. Já estava me enquizilando... Jamais não tive tanto como diante dele a impossibilidade de ajuizar dos valores possíveis duma obra minha.

 

Não sei ter humildades falsas não e se publico um livro é porque acredito no valor dele. O que reconheço é que muitas vezes publico uma coisa ruim em si, por outros valores que podem resultar dela. É o caso por exemplo do poder de ensaios de língua brasileira, tão díspares entre si, tão péssimos alguns. Não me amolo que sejam péssimos e mesmo que minha obra toda tenha a transitoriedade precária da minha vida. O que me interessa mesmo é dar pra mim o destino que as minhas possibilidades me davam. E que tenho sido útil: as preocupações, as tentativas, as amizades e até as repulsas (dinâmicas?) que tenho despertado provam bem. Principalmente disso vem o orgulho tamanho que possuo e me impede completamente qualquer manifestação de vaidade. Eu não me contentei em desejar a felicidade, me fiz feliz.

 

Ora este livro que não passou dum jeito pensativo e gozado de descansar umas férias, relumeante de pesquisas e intenções, muitas das quais só se tornavam conscientes no nascer da escrita, me parece que vale um bocado como sintoma de cultura nacional.

 

Me parece que os melhores elementos duma cultura nacional aparecem nele. Possui psicologia própria e maneira de expressão própria. Possui uma filosofia aplicada entre otimismo ao excesso e pessimismo ao excesso dum país bem onde o praceano considera a Providência como sendo brasileira e o homem da terra pita o conceito da pachorra mais que fumo. Possui aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional e a concebe tão permanente e unida que o país aparece desgeograficado no clima na flora na fauna no homem, na lenda, na tradição histórica até quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo. Falar em “pagos” e “querências” em relação às terras do Uraricoera é bom. Além disso possui colaboração estrangeira e aproveitamento dos outros, complacente, sem temor, e sobretudo sem o exclusivismo de todo ser bem nascido pras idéias comunistas. O próprio herói do livro que tirei do alemão de KochGrünberg, nem se pode falar que é do Brasil. É tão ou mais venezuelano como da gente e desconhece a estupidez dos limites pra parar na “terra dos ingleses” como ele chama a Guiana Inglesa. Essa circunstância do herói do livro não ser absolutamente brasileiro me agrada como o quê. Me alarga o peito bem, coisa que antigamente os homens expressavam pelo “me enche os olhos de lágrimas”.

 

Agora: não quero que imaginem que pretendi fazer deste livro uma expressão de cultura nacional brasileira. Deus me livre. É agora, depois dele feito, que me parece descobrir nele um sintoma de cultura nossa. Lenda, história, tradição, psicologia, ciência, objetividade nacional, coopeeração acomodada de elementos estrangeiros passam aí. Por isso que malicio nele o fenômeno complexo que o torna sintomático.

 

Quanto às intenções que bordaram o esquerzo, tive intenções por demais. Só não quero é que tomem Macunaíma e outros personagens como símbolos. É certo que não tive intenção de sintetizar o brasileiro em Macunaíma nem o estrangeiro no gigante Piaimã. Apesar de todas as referências figuradas que a gente possa perceber entre Macunaíma e o homem brasileiro, Venceslau Pietro Pietra e o homem estrangeiro, tem duas omissões voluntárias que tiram por completo o conceito simbólico dos dois: a simbologia é episódica, aparece por intermitência quando calha pra tirar efeito cômico e não tem antítese. Venceslau Pietro Pietra e Macunaíma nem são antagônicos, nem se completam e muito menos a luta entre os dois tem qualquer valor sociológico. Se Macunaíma consegue retomar a muiraquitã é porque eu carecia de fazer ele morrer no Norte. E é impossível de se ver na morte do gigante qualquer aparência de simbologia. As próprias alusões, sem continuidade ao elemento estrangeiro que o gigante faz nascer, concorrem pra minha observação do sintoma cultural do livro: é uma complacência gozada, uma acomodação aceita tão conscientemente que a própria mulher dele é uma caapora e a filha vira estrela. Me repugnaria bem que se enxergasse em Macunaíma a intenção minha dele ser o herói nacional. É o herói desta brincadeira, isso sim, e os valores nacionais que o animam são apenas o jeito dele possuir o “Sein” de Keyserling a significação imprescindível a meu ver, que desperta empatia. Uma significação não precisa de ser total pra ser profunda. E é por meio de “Sein” (ver o prefácio do tradutor em Le Monde qui Naît) que a arte pode ser aceita dentro da vida. Ele é que fez da arte e da vida um sistema de vasos comunicantes, equilibrando o líquido que agora não turtuveio em chamar de lágrima.

 

Outro problema do livro que careço explicar é da imoralidade. Palavra que seria falso concluir pela imoralidade e pela porcariada mesmo que está aqui dentro, que me comprazo com isso. Quando muito admito que concluam que me comprazo... com o brasileiro. Uma coisa fácil de constatar é a constância da porcaria e da imoralidade nas lendas de primitivos em geral e nos livros religiosos. Não só aceitei mas acentuei isso. Não vou me desculpar falando que as flores do mal dão horror do mal não. Até que despertam muito a curiosidade... Minha intenção aí foi verificar uma constância brasileira que não sou o primeiro a verificar, debicá-la numa caçoada complacente que a satiriza sem tomar um pitium moralizante. Macunaíma afinal afrouxou e num esforço... de herói, se acaba ver peixe, pela... boca. Mas me repugnava servir de mendoim pra piazotes e velhotes. Empreguei todos os calmantes possíveis: a perífrase, as palavras indígenas, o cômico, e um estilo poético inspirado diretamente dos livros religiosos. Creio que assim pude restabelecer a paz entre os homens de boa vontade.

 

E resta a circunstância da falta de caráter do herói. Falta de caráter no duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico. Está certo. Sem esse pessimismo eu não seria amigo sincero dos meus patrícios. É a sátira dura do livro. Heroísmo de arroubo é fácil de ter. Porém o galho mais alto dum pau gigante que eu saiba não é lugar propício pra gente dormir sossegado.

 

Como se vê não é o preconceito contra a moral nem vergonha de parecer moralista na roda inda decadente que me leva a certas complacências.

 

Nas épocas de transição social como a de agora é duro o compromisso com o que tem de vir e quase ninguém não sabe. Eu não sei. Não desejo a volta do passado e por isso já não posso tirar dele uma fábula normativa. Por outro lado o jeito de Jeremias me parece ineficiente. O presente é uma neblina vasta. Hesitar é sinal de fraqueza, eu sei. Mas comigo não se trata de hesitação. Se trata duma verdadeira impossibilidade, a pior de todas, a de nem saber o nome das incógnitas. Dirão que a culpa é minha, que não arregimentei o espírito na cultura legítima. Está certo. Mas isso dizem os pesados de Maritain, dizem os que espigaram de Spengler, os que pensam por Wells ou por Lenine e viva Einstein!

 

Mas resta pros decididos como eu que a neblina da época está matando o consolo maternal dos museus. Entre a certeza decidida que eletrocuta e a fé franca que se recusa a julgar, nasci pra esta. Ou o tempo nasceu por mim... Pode ser que os outros sejam mais nobres. Mais calmos certamente que não. Mas não tenho medo de ser mais trágico.

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