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Memento Mori

Capítulos 6

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Memento Mori Céu Profano Capítulo II

A casa, embora com a pintura desgastada pela ação do tempo, ainda mantinha a mesma cor da qual se lembrava. O amarelo estava desbotado e algumas de suas janelas brancas tinham partes faltando e vidros quebrados. Os jardins, que antes eram cheios de flores multicoloridas — e também eram o tesouro de minha mãe — agora estavam praticamente tomados por ervas daninhas e plantas mortas. Por mais que quisesse me manter otimista, a casa era um lembrete concreto do crime que aqui ocorreu. Dando um longo suspiro, encaro a porta de entrada e, enfim, a abro.

A sala de estar está igual, desde a televisão antiga, os retratos de família nas estantes, até mesmo os livros, que pareciam intocados. A mesa de centro ainda tinha os pratos de jantar usados uma noite antes do crime. Poderia parecer um cômodo qualquer de uma casa abandonada se não fosse pelo sofá com três marcas de sangue, mostrando que três pessoas perderam suas vidas ali. Partes do tapete também traziam consigo manchas sanguinolentas. Tentando manter minha mente focada, passo pela sala de jantar e chego ao hall, onde a escada para o segundo andar se encontra. Olho para cima e respiro, sabendo que meu destino está quase perto.

Subo devagar, contando cada passo como uma espécie de contagem regressiva. Sinto meu coração acelerar, havia tantos anos que não vinha nesta casa. Olho para o corredor, que parecia estar ficando ainda maior à medida que avançava. Isso me fazia questionar sobre a minha sanidade, se ela ainda estava presente em mim.

Me deparo com a porta que procuro. A madeira estava desgastada e cheia de cupins, parecia que apenas um toque seria o suficiente para que ela se desmanchasse. Ao abrir, a vista do quarto de Vlad toma conta do meu campo de visão. Apesar de estar esperando ver tudo deteriorado, como o resto da casa, esse cômodo era visivelmente mais mal cuidado. Certo, é uma casa abandonada, é óbvio que tudo nela seja acabado, mas esse quarto, em específico, parecia mais velho. A cama era coberta por um fino lençol que fora inúmeras vezes remendado. O travesseiro estava todo cheio de remendos, e a madeira tinha partes faltando. O guarda-roupas estava quase vazio, com apenas algumas mudas de roupas, que também pareciam velhas e acabadas. A cômoda tinha uma única foto sobre si, que estava cheia de poeira, tampando totalmente as pessoas presentes nela.

Pego o porta-retrato e o limpo. Instantaneamente, meus olhos encontram o brilho prateado dos de meu irmão. Apesar de sua visão passar uma certa tristeza escondida, seus lábios presenteavam seu rosto com um pequeno e tímido sorriso. As vestimentas velhas e grandes escondiam um corpo magro demais para um menino de 15 anos. Meus olhos estavam no menino ao lado de meu irmão, com os cabelos loiros e rebeldes, despenteados, olhos castanhos claros cheios de energia e alegria que combinavam perfeitamente com o sorriso jovial estampado em seu rosto. Esse sim parecia um adolescente de 15 anos.

— O mesmo perfil do Assassino Anjo — sussurro para mim mesma — Então, sua primeira vítima foi Matt? — aquele quebra-cabeças parecia, enfim, começar a se encaixar.

De certa forma, não me encontrava tão surpresa. Se meu irmão foi capaz de matar toda a família, não era de me surpreender que ele fosse o tão infame Assassino Anjo. Com pressa, pego o porta-retrato e saio correndo em direção à delegacia. Essa era uma descoberta que poderia mudar o rumo da investigação. Precisava pegar os documentos referentes ao meu irmão, sendo mais específica quanto ao crime que aconteceu na escola. Era engraçado como todas as peças pareciam estar no lugar certo agora. Os meninos escolhidos possuíam as mesmas características de Matt Scheidemann. Só podia ser isso: Vlad era o assassino, por isso as cartas estavam sendo enviadas para mim, o apelido que ele tinha me dado, e somente nós dois sabíamos o nome do meu brinquedo favorito e a sua escolha de vítimas.

Ao adentrar meu local de trabalho, com passos largos vou em direção à sala do meu supervisor. Tinha que dizer a ele sobre minha mais nova descoberta. Bato à sua porta e espero que ele me chame para entrar. Após a permissão ser concedida, adentro ao escritório de Jafferson. Tinha esperanças de o encontrar de bom humor, mas, com a fama de chato que carrega, foram expectativas vãs. O chefe mantinha os olhos fixos no computador, os dedos não paravam de digitar, e o café que estava na mesa provavelmente estava frio. A expressão ranzinza em seu rosto ficou ainda pior, se é que isso era possível, ao colocar seus olhos em mim.

— Ah, o que foi dessa vez, senhorita Taylor? — eu e minha sorte grande. — Por favor, não me venha dar mais uma de suas ideias brilhantes para resolver o caso — disse ele, passando os dedos pela sua glabela.

— Mas acho que fiz uma descoberta realmente importante! — falei.

— Eu disse não! — exclamou ele. — Sabe quantas papeladas tenho que fazer, tanto pela sua “promoção” quanto pelo caso que ainda está sem solução? — a raiva em sua voz dava indícios de que estava saindo de seu controle. — Só fique com sua função!

— Ficar de garota de recado não é bem uma função! — retruco, o que não foi a coisa certa para se fazer, pois seu rosto começou a assumir um tom vibrante de vermelho.

— Olha, não me venha com isso, você só está trabalhando nesse caso por conta de estar recebendo cartas do suspeito, não fique achando que é algo além disso! — xingou ele baixo. — Então, se não tiver algo útil, faça-me o favor de CAIR FORA!

— ELE ME MANDOU OUTRA CARTA, MAS NÃO É POR CAUSA DESSA MERDA QUE VENHO ATÉ AQUI!

— grito em resposta. Acho que, por passar muitas noites dormindo pouco ou nada, meu senso foi com Deus. Jafferson me olha em cólera, mas antes que ele possa dizer qualquer coisa, continuo: — MEU IRMÃO!

— Seu irmão? — acho que a curiosidade superou sua raiva nesse momento. — O que é que ele tem a ver com tudo isso?

— O Assassino Anjo, acredito que seja meu irmão…

— Como? — Jafferson caiu na gargalhada. — Sério, pare de achar que é o centro do universo e foque apenas na sua tarefa!

— Pode parecer ridículo demais, sei disso, mas estávamos vendo o caso desde o começo de forma errada — comecei. — A primeira vítima foi Matt Scheidemann, não Gabriel Travor. Olhe! — entrego para ele a carta que recebi e a fotografia que achei na minha antiga casa. — Veja como Matt se parece com as outras vítimas, não, como as vítimas eram iguais a ele!

Seus olhos começam a ficar arregalados, como se somente agora conseguisse enxergar o quebra-cabeças completo.

— Como puderam deixar uma informação importantíssima como essa passar em branco?

— Nem eu me lembrava direito, mas quando o suspeito falou do apelido que somente meu irmão sabe, caiu a ficha — respondi. — O assassinato de Matt aconteceu tantos anos atrás, que fica mais complexo fazer uma relação com os casos de agora.

— De qualquer forma, diga sua nova descoberta para os que ficaram responsáveis pelo caso — ordenou ele.

— Hum, posso fazer um pedido? — sussurro timidamente, não queria deixá-lo ainda mais furioso, mas tinha que pedir.

— Ah, lá vem! Não se pode mais elogiar ninguém, o que quer? — a felicidade foi esvaindo de seu ser à medida que pronunciava a pergunta.

— Eu quero falar com o professor Vincent, que estava presente no momento do crime… vai, por favorzinho?

— Olha, o correto é eu negar, mas como ajudou a dar o caminho certo nesta investigação e também porque a imprensa não sai do meu pé, eu vou acatar seu pedido, mas saiba que essa será a única exceção que vou fazer.

— Ah! Obrigada! Obrigada mesmo! — saio correndo da delegacia.

É mais do que certo que já havia feito minha pesquisa sobre o novo local de trabalho do antigo professor do meu irmão. Pego um táxi, dou o endereço da escola e peço ao motorista que vá o mais rápido possível. Por mais que o caminho não fosse tão longo e praticamente não tivesse quase nada de trânsito, pareceu que demorou uma eternidade. Quando o carro parou em frente à escola, dei um maço de dinheiro para o motorista, sem ver se tinha dado o tanto certo ou se tinha passado, ignorei completamente os gritos do homem.

Olhava impacientemente o movimento no corredor da escola, alunos passavam para lá e para cá, carregando material, falavam de coisas banais, do que fazer no final de semana e das provas que estavam chegando. Aquele vai e vem de alunos estava me deixando ainda mais ansiosa. Querendo controlar esse nervosismo crescente dentro de mim, volto minha atenção para o pátio de fora.

As árvores cresciam calmamente, como se o tempo não importasse, as folhas dançavam desengonçadamente ao mais leve toque do vento. Havia estudantes sentados aos pés das árvores, uns comiam, outros colocavam a conversa em dia e alguns estavam namorando. Comecei a sentir inveja de como cada um daqueles garotos era despreocupado, nunca em minha adolescência toda pude sentir isso, sempre vivi com a sombra dos crimes de meu irmão.

O som da porta abrindo e de alunos saindo, gritando e correndo, tirou minha atenção do pátio. Meus olhos focaram em um homem, apesar de estar perto dos 40 anos, ainda era lindo, certamente o tempo foi bom com ele. Os olhos castanhos escuros tinham um certo brilho de divertimento, os cabelos em tons de terra estavam minuciosamente arrumados e penteados para trás. A barba rala e por fazer dava um toque mais relaxado à sua aparência impecável, porém acabando com toda essa perfeição, no canto esquerdo de seu rosto, tinha uma grande cicatriz, que saía do canto da boca e terminava um pouco abaixo da orelha. Vestia-se de forma formal, com um conjunto de terno completo.

— Ora, senhorita Nagato, como cresceu! — disse ele sorrindo. — Está ainda mais bela!

— Hum, não uso mais o sobrenome Nagato... — sussurro sem jeito por causa de seu elogio.

— Oh! Sinto muito, não sabia — desculpou-se. — Faz sentido não querer usar esse sobrenome, então como posso chamar a jovem? — perguntou Vincent.

— Somente de Ayla já é o suficiente — respondo, sentindo minhas bochechas ficarem quentes.

— Poderia me dizer porque fui agraciado com sua lindíssima presença? — sua voz era gentil e amável, sem contar calorosa. O tom presente nas suas falas despertava algo dentro de mim, que me fazia sentir uma menininha na presença de seu primeiro amor.

— É sobre algo do seu passado — começo e vejo que seu sorriso aos poucos foi morrendo, e nesse momento sinto que algo dentro de mim se quebra junto. Acho que por termos convivido com Vlad, acabo sentindo uma certa simpatia por ele, não era como se eu estivesse começando a ter sentimentos. — O assassinato do seu aluno, Matt Scheidemann. — Ao terminar de pronunciar o nome, seu olhar se tornou mais severo e sombrio.

— Venha, vamos entrar, não acho que seja apropriado falar dessas coisas aqui no corredor — Vincent foi para o lado, dando passagem para mim e, assim que entrei, ele fechou a porta. — Sabe, faz anos que não falo deste assunto — começou. — O que gostaria de saber?

— O senhor… — mas ele me interrompeu.

— Não me chame de senhor, dá impressão que tenho mais de cinquenta anos e só tenho 38 — pediu, soltando um riso mais tímido.

— Ah, certo, peço desculpas — rio nervosa. — Bom, começando de novo, você estava presente no dia da morte de Matt, não é?

Sua mão esquerda foi até a cicatriz que carregava no rosto. Parecia que sua mente tinha ido para tempos sombrios que tentava esquecer desesperadamente. Vincent se levanta e vai em direção à cafeteira.

— Quer café? — perguntou para mim e eu neguei.

— Eu evito muito pensar nesse dia — falou mais para si mesmo. — Mesmo depois de todos esses anos, não consigo entender o porquê aquele garoto faria aquilo…

— Sendo sincera, acho que ninguém vai saber a resposta além dele mesmo — digo. Pensar no meu irmão e no porquê de tudo que fez era como entrar numa sala vazia e esperar encontrar algo. Não levaria a lugar algum.

— É, vejo que tem razão, não vou chegar a nenhuma conclusão — Vincent volta a se sentar na poltrona com um café quente nas mãos. — Bom, aquele dia foi como qualquer outro, em partes. Se bem me lembro, Vlad tinha chegado à escola e foi diretamente para a enfermaria. Matt tinha me dito que ele não estava bem, fiquei preocupado, seu irmão tinha sempre uma aparência doente — Desde que me lembrava, Vlad sempre foi mais magro e pálido do que qualquer pessoa. — Quando o sinal do intervalo tocou, resolvi que iria almoçar e depois o visitaria na enfermaria. Mas, quando cheguei lá, o que vi… — lágrimas começaram a querer sair. — O resto você já deve saber.

— Sim, você encontrou Vlad em cima de Matt, que estava com a garganta cortada e que logo em seguida tentou te calar, mas obviamente não conseguiu… — concluo sua história.

— Mas por que remexer esse passado agora? — indaga ele.

— Porque talvez eu saiba a identidade do Assassino Anjo… — confirmo para Vincent minha teoria. — Creio que o responsável pelas mortes dessas crianças seja Vlad!

— Não compreendo, por que está matando outras crianças? — Vincent se perguntou. — Se Matt era sua busca, então não compreendo a necessidade de matar outras crianças inocentes…

— Porque o objetivo dele não é reviver o crime que fez, e sim chamar sua atenção! — afirmo, tendo a mais absoluta certeza.

— Porque eu? — era visível o quanto ele estava em choque. — Se quisesse a mim, porque já não veio atrás de uma vez? — perguntou cético.

— Não sei, talvez estivesse tentando mexer com você psicologicamente antes de agir — exponho minha ideia. Mesmo que tenhamos nos conhecido agora, sinto uma conexão profunda com esse homem.

— Isso quer dizer que vou precisar de escolta policial? — questiona com um certo tom de entretenimento na voz.

— Sim, sua proteção é essencial, uma vez que não sabemos quando e nem onde o suspeito pode te atacar — confirmo sua pergunta.

— E, se me permite saber, o policial que fará isso, seria você? — sua voz sai grave e baixa, me deixando arrepiada.

— Não sei ao certo.

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