Memento Mori Céu Profano Capítulo IV
Depois de mais uma hora, mais ou menos, o médico finalmente me deu alta, mas não sem antes me mandar um encaminhamento para um psicólogo e um psiquiatra. Era tão bom respirar o ar fora do hospital. Estava me sentindo leve, uma parte minha, a mais sã, precisava daquele desmaio, fazia um bom tempo que não me sentia bem comigo mesma. De alguma forma bem estranha, ter tido um ataque de pânico e desmaiado foi bom para minha mente.
Andando calmamente ao meu lado estava Vincent, era hipnotizante o modo como a luz do sol poente o deixava ainda mais belo. Queria poder dizer que não sentia nada por ele, mas depois daquela ajuda, não conseguia mais mentir para mim mesma. A adolescente que nunca tive tempo de ser no passado estava começando a aflorar e sair completamente do meu controle. Queria me socar para ver se conseguia me colocar novamente no comando, porém era mais provável ele achar que eu tinha enlouquecido de vez do que ter algum mínimo de sucesso nesse meu plano de merda.
— Está tudo bem? Você está ficando meio vermelha, será que é realmente uma boa sair tão cedo?
— Estou bem! — digo ainda mais vermelha. — Só estava pensando que vou ter que pegar um ônibus ou táxi, mas creio que não tenho dinheiro para isso e nem sei se gostaria de voltar tão cedo para casa…
— Hum… Já sei, que tal se nós formos comer algo? — perguntou ele sereno.
— Co… Comer? — não estava esperando por esse convite.
— … Bem, sim, quero dizer, faz umas boas horinhas que esteve no hospital… — a voz confiante dele foi perdendo força. — É que achei que poderia estar com fome…
— Oh, não, quero dizer sim… — me enrolo ao responder — Sim, sim, estou com fome e sim, podemos sair para comer algo. — enfim consigo ser coerente, o que estava havendo comigo? Sempre fui racional e nunca me perdi dessa forma, só podia ser a maldita adolescente presa dentro de mim. Então era assim a sensação de ser emocional? Por que, se sim, posso afirmar com toda e absoluta certeza que estava odiando.
Com um sorriso galanteador, Vincent me guiou até seu carro prata, que estava no estacionamento do hospital. Nós andamos em silêncio por cerca de uns 40 minutos, quando comecei a pensar que tinha feito a escolha errada, Vincent manobra o carro e para perto de um belíssimo restaurante. Comecei a me sentir deslocada, não estava vestida para isso, mas já tinha concordado e era tarde demais para voltar atrás. Fizemos o pedido e, enquanto não chegava, criei coragem para perguntar por que ele tinha sido interrogado, e ele me respondeu de forma rápida e calma que deveria estar relacionado com o fato de ter sido o último a ver o jovem Noah. Vincent começou a contar do menino e de que não tinha ficado com nenhum rancor de meu pai adotivo, apenas ficou pensativo e triste com o estado ao qual se encontrava a família do jovem.
Com o final do jantar, Vincent queria me levar para casa, mas, sendo sincera com ele, pedi que não o fizesse. Falei que poderia me deixar na praça ali perto, pois ainda não tinha energia e muito menos vontade de ver Sebastian depois de nossa discussão. Gentilmente me convidou a ir para sua casa, dizendo que poderíamos discutir o caso juntos ou mesmo fazer outras coisas, como assistir um filme, visto que ele também tinha tanta vontade de ficar sozinho. Alegremente concordei, pois seria melhor do que ficar na praça sem nada para fazer, apenas remoendo pensamentos e palavras não ditas, tanto quanto as que foram pronunciadas.
A casa de Vincent não era grande, mas também não era minúscula, diria que tem o tamanho ideal para a casa de um homem solteiro. A entrada era decorada com algumas flores que, de certa forma, tinham sido deixadas de lado e cresceriam de forma desordenada. A porta principal era pintada de branco, bem como todas as janelas, que contrastavam de forma bela com a pintura azul da casa e passavam a sensação de paz. Em frente à porta, havia um tapete que dizia "bem-vindo". O professor foi andando à minha frente, abriu a porta e me deu passagem. Timidamente, passei à sua frente e adentrei a sala de estar, que, diga-se de passagem, estava uma bela bagunça. Tinha pilhas de papéis jogados sobre o sofá, a mesinha de centro, sob a televisão, a escrivaninha e tudo quanto é canto que poderia e que não poderia ter. Conseguia ver livros, revistas, caixas de encomendas, tanto abertas quanto fechadas, espalhadas por todo o cômodo. A cozinha se encontrava bem ao lado, tinha apenas uma meia parede separando os dois locais. Se a sala estava uma bagunça, a cozinha era um templo perfeitamente arrumado, passando a sensação de que ele não a utilizava muito. Havia ainda duas portas fechadas, o que me fazia chegar à conclusão de que uma era o banheiro e a outra era o quarto dele.
— Peço desculpas pela bagunça — disse, desviando o olhar. — Não previa ter pessoas na minha humilde morada… — riu sem graça.
— Não posso falar nada — começo a dizer — Meu quarto tem estado neste mesmo estado — termino segurando o riso.
— Você realmente é uma mocinha bem educada, o detetive Sebastian fez um bom trabalho lhe educando. — disse, indo em direção à cozinha. — Vou fazer um pouco de café, quer?
Fico pensando por alguns segundos e logo em seguida afirmo positivamente com a cabeça, por mais que não gostasse da bebida em si, penso que seria indispensável para me manter acordada a noite toda, ainda tinha muito trabalho para fazer. Depois de alguns minutos, Vincent vem andando em minha direção com a bebida ainda saindo fumaça. Pego a xícara e sinto o cheiro gostoso preencher meu nariz e o calor do recipiente passando para minhas mãos. Uma sensação de conforto começou a se apoderar de mim, comecei a sentir uma vontade de relaxar e deixar tudo para trás.
Nossa noite começou assistindo a um filme de suspense e logo em seguida algum outro filme bobo. Acho que parei de prestar atenção, pois minha mente voltou a focar no assassino em série. Acho que Vincent tinha notado a mudança na minha expressão, pois escutei ele me perguntar se estava tudo bem, se eu estava sentindo algum desconforto, e eu rapidamente neguei. Mesmo que seja contra as regras e antiético, não consegui mais aguentar ficar com aquela situação presa dentro de mim. Sem me dar conta, comecei a desabafar o que estava sentindo e tudo que conseguimos descobrir sobre aquele caso. Vincent me escutou calmamente e prestando muita atenção, então ouço ele me perguntando se gostaria de sua ajuda, visto que alguém de fora teria uma visão menos voltada a sentimentos e mais à razão. Não demorou muito para que eu aceitasse e começasse a falar desde o começo da investigação e das malditas cartas que insistiam em aparecer, seja na minha casa ou mesmo no trabalho. Conte também como aqueles pedaços de papéis estavam mexendo comigo.
— Hum, então você acha mesmo que seu irmão seja o Assassino Anjo? — me questionou, e eu afirmo com a cabeça. — Sim, compreendo seu ponto de vista, lembro-me do dia que ele matou seu melhor amigo, pode ser que realmente tenha sido o estopim, pois logo depois ele assassinou sua família toda, com a exceção de ti… — eu sentia que vinha um "mas" por aí e não demoraria muito. — Só que temos que ver o ponto de vista do detetive. Foi Sebastian quem atendeu aquele chamado — como se eu não soubesse disso, foi dias depois daquele dia que Sebastian perguntou para mim se eu gostaria de fazer parte de sua família. No começo fiquei assustada, temia que Vlad voltasse para terminar o que tinha começado e um medo maior ainda de que ele levasse aquela família que não tinha nada a ver com nós dois, mas Vlad não voltou, mesmo depois de ter desaparecido. — Me questiono porque voltar depois de tantos anos? E quem seria esse tal de “V”?
— Nas cartas que recebi dizia que o motivo seria esse “V”, mas sem ser ele, o único que começa com V e tem ligação com seu passado é o senhor, e por isso gostaria de saber qual era seu relacionamento com meu irmão?
— Vlad sempre foi um aluno meio problemático, era difícil um dia que ele não chegasse atrasado e Matt fazia companhia nas suas malcriações, eram uma dupla cheia que sempre se envolvia em problemas… — falou Vincent, se relembrando do passado. — Dentre os professores que trabalhavam na escola naquela época, eu era o único professor que demonstrava certa empatia. Vlad era um menino magro e bem desconfiado, acho que tinha algum problema com a família, só que quando o questionava, ou ele se fazia de desentendido ou dizia que estava tudo bem. Depois de um tempo, Vlad começou a ficar mais amigável comigo e eu tentava ser o mais profissional possível, não demorou muito para que Matt também começasse a ficar mais gentil, creio que foi depois do acidente de sua mãe, penso que o jovem viu em mim a figura paterna que não tinha em casa, já que o pai de Matt focou toda a sua atenção na esposa que entrou em coma. Foi nesse período que Vlad ficou novamente mais distante e arredio, uns dois ou três dias depois, vou à enfermaria da escola e vejo Vlad segurando um objeto cortante cheio de sangue e estava com o corpo sem vida de seu amigo nos braços… — Vincent deu uma parada para buscar café e, antes de continuar, deu um longo gole na bebida quente. — Quando Vlad olhou para mim, senti um calafrio horrendo, então um sorriso se formou nos seus lábios e com a voz cheia de alegria disse: “Agora não tem ninguém para ficar entre nós!” — o professor baixou a xícara e colocou sobre o mezanino, passou as mãos por sobre seu braço, como se um calafrio percorresse todo o seu ser. Pensei comigo mesma que aquele era um sentimento do qual eu era familiarizada. — E quando, num ato impensado, gritei e tentei ir em direção ao corpo do jovem Matt, seus olhos ficaram vazios de emoção e então me questionou se eu não estava feliz, visto que agora poderíamos ficar juntos, assustado e com medo, comecei a entrar no seu delírio, porque tinha que ver se a criança estava viva. Não demorou muito para que Vlad baixasse a guarda e consegui me aproximar, então, quando vi aquele corte gigantesco no pescoço do menino, soube que tinha morrido. Foi então que perdi o controle e Vlad percebeu que eu não estava nem um pouco feliz, senti uma dor aguda em meu rosto — nesta parte, Vincent colocou a mão sobre a longa cicatriz, sem nem sequer perceber esse ato. — Tudo que me lembro depois é de estar cercado por outros professores, que mantinham o semblante de pânico, as luzes vibrantes dos carros policiais e do paramédico me ajudando, foi somente nesse momento que me dei conta de ter sido acertado por Vlad… Ainda não acredito no que vi, tenho pesadelos recorrentes com essa experiência.
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