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Auto da Barca do Inferno

Capítulos 9

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Auto da Barca do Inferno Cena 1

Primeiramente, no presente auto, pressupõem-se que, no momento em que acabamos de morrer, chegamos subitamente a um rio, o qual, por força, teremos de passar num dos dois batéis que estão atracados num porto. Um deles vai em direção ao paraíso e o outro para o inferno. Os tais batéis têm, cada um, os seus comandantes na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um comandante infernal e um companheiro.

O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe segura um manto muito comprido com uma mão e uma cadeira de espaldas com a outra.

O comandante do Inferno começa o seu pregão mesmo antes do Fidalgo se aproximar.

 

DIABO

 

À barca, à barca, venham lá! Que temos gentil maré!

 

– dirigindo-se ao companheiro

 

Ora põe o barco à ! (vira a traseira do barco)

   

COMPANHEIRO DO DIABO

 

Está feito, está feito!

 

DIABO

 

Bem feito está!

 

Vai agora, em má hora, Esticar aquele palanco (corda)

E desocupar aquele banco, Para a gente que virá.

 

- falando para o ar

 

À barca, à barca, hu-u! Depressinha, que se quer ir! Oh, que tempo para partir, Louvores a Belzebu!

 

- dirigindo-se ao companheiro – Mas então! que fazes tu?

Limpa todo aquele leito! (espaço entre o Mastro e a Popa do barco)

 

  

COMPANHEIRO

 

Em boa hora! Feito, feito!

 

 

DIABO

 

Abaixa-me esse cu!

 

Liberta aquela poja (corda com que se vira a vela)

 

E afrouxa aquela driça. (corda com que se levanta a vela)

 

COMPANHEIRO

 

Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!

 

 

DIABO

 

Oh, que caravela esta!

 

Põe bandeiras, que é festa. Vela ao alto! Âncora a pique!

 

Ó poderoso Dom Henrique,

 

Cá vindes vós? Que coisa é essa?...

 

Aproxima-se o Fidalgo e, chegando ao barco infernal, diz:

 

FIDALGO

 

Esta barca para onde vai,

 

Que assim está apercebida? (preparada)

 

DIABO

 

Vai para a ilha perdida,

 

E há de partir daqui a nada.

 

FIDALGO

 

E para lá vai a senhora?

 

DIABO

 

Sou um senhor, Ao vosso serviço.

 

FIDALGO

 

Parece-me isto um cortiço... (uma embarcação reles)

 

DIABO

 

Porque a vedes daí de fora.

 

FIDALGO

 

Pois sim, e por que terra passais?

 

DIABO

 

Para o inferno, senhor.

 

FIDALGO

 

Uma terra sem-sabor... (sem piada nenhuma)

 

DIABO

 

O quê?... Mas também disso zombais?

 

 

FIDALGO

 

E que passageiros achais Para tal embarcação?

 

DIABO

 

Vejo-vos eu em feição, Para ir no nosso cais…

 

FIDALGO

 

Parece-te a ti assim!...

 

DIABO

 

Em que esperas ter guarida? (salvação)

 

FIDALGO

 

Que deixo na outra vida, Quem reze sempre por mim.

 

DIABO

 

Quem reze sempre por ti?!... Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...

Tu que viveste a teu prazer,

 

Pensando cá guarnecer (salvares-te)

 

Por aqueles que lá rezam por ti?!... Embarcai agora, embarcai!

Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira,

Como também passou o vosso pai.

FIDALGO

 

O quê!? O quê!? O quê!? É lá que ele está?!

 

DIABO

 

Vai ou vem! Embarcai depressa! Pelo que em vida escolheste, Assim cá vos contentais

E como pela morte passastes, Tereis que passar o rio.

 

FIDALGO

 

Não há aqui outro navio?

 

DIABO

 

Não, senhor, que este preparaste, E assim que expiraste (morreste)

Me deste logo sinal.

 

FIDALGO

 

E que sinal foi esse tal?

 

DIABO

 

De que vós vos contentastes. (que estava condenado)

  

FIDALGO

 

Para a outra barca me vou.

 

- Já ao da outra barca

  

Oh da barca! Para onde ís?

 

Oh, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Olá! Ó!...

 

 

- O Anjo ignora-o –

 

 Por deus, aviado estou! (perdido)

 

Quanto a isto é já pior...

 

Que jericocins, salvanor! (Mas que burro, com o devido respeito)

 

Pensam que eu sou um grou? (um corvo, ou uma ave que diz coisas sem sentido)

  

ANJO

 

Que quereis?

 

FIDALGO

 

Que me digais,

 

Pois morri tão sem aviso, Se a barca do Paraíso

É esta em que navegais.

 

ANJO

 

Esta é. Que desejais?

 

FIDALGO

 

Que me deixeis embarcar. Sou fidalgo de solar,

É bom que me recolhais.

 

ANJO

 

Não se embarca tirania, Neste batel divinal.

 

FIDALGO

 

Não sei porque negais entrada À minha senhoria...

 

ANJO

 

Para a vossa fantasia (vaidade)

 

Muito pequena é esta barca.

 

FIDALGO

 

Para senhor de bom nome, Não há aqui mais cortesia?

Venha a prancha e atavio! (a prancha e apetrechos para se subir para o barco)

 

Levai-me desta ribeira!

 

ANJO

 

Não vindes cá a pensar

 

De entrar neste navio. Aquele ali vai mais vazio. Ali a cadeira entrará,

O rabo caberá

 

E todo vosso senhorio. Ireis ali mais espaçoso,

Vossa fumosa senhoria, (arrogante)

 

A pensar na vossa tirania Contra o pobre povo queixoso. E porque, de generoso, Desprezaste os pequenos, Achar-vos-ei tanto menos (*)

Quanto mais foste fumoso. (arrogante)

 

[(*) Quer o Anjo dizer com isto que quer que o Fidalgo reflita e perceba que quanto mais ele era arrogante e mau, mais ele perdia o valor da sua própria pessoa]

 

 - Grita o Diabo da sua barca

 

DIABO

 

À barca, à barca, senhores! Oh! que maré tão de prata! Um ventozinho que mata E valentes remadores!

- Diz a cantar:

 "Vós me vireis à mão, À mão me vireis.”

 

FIDALGO

 

Para o Inferno, então!

 

O inferno será para mim? Oh triste! Enquanto vivi Não pensei que seria:

 

Pensei que era fantasia! Pensava ser adorado, Confiei no meu estado E não vi que me perdia. Venha essa prancha!

Veremos esta barca de tristura. (tristeza)

  

DIABO

 

Embarque vossa doçura, Que cá nos entenderemos... Tomareis um par de remos, Veremos como remais,

E, chegando ao nosso cais,

 

Verá como bem vos serviremos.

 

FIDALGO

 

Esperai-me vós aqui,

 

Voltarei à outra vida,

 

Para ver a minha dama querida, Que se quer matar por mim.

 

DIABO

 

Que se quer matar por ti?!...

 

FIDALGO

 

Isto bem certo o sei eu.

 

DIABO

 

Ó namorado sandeu, (atraiçoado, cornudo)

 

O maior que já vi!...

 

FIDALGO

 

Como poderá isso ser,

 

Ela que me escrevia todos os dias?

 

DIABO

 

Quantas mentiras que lias! E tu... doido de prazer!...

 

FIDALGO

 

Para que está a escarnecer,

 

Se não havia quem me quisesse mais bem?

 

DIABO

 

Assim deverias viver, amém, Como ela te havia de querer! (*)

 

 

[(*) O Diabo goza com o Fidalgo, dizendolhe que ele deveria viver tanto quanto a namorada o amava, ou seja, nem mais um segundo de vida.]

  

FIDALGO

 

Isso quanto ao que eu conheço...

 

DIABO

 

Pois estando tu a morrer,

 

Estava ela a requebrar-se, (a ter relações sexuais)

 

Com outro de menos preço.

 

FIDALGO

 

Dá-me licença, te peço, Que vá ver a minha mulher.

 

DIABO

 

E ela, se te voltar a ver, Despenhar-se-á de um cabeço! Tudo quanto ela hoje rezou, Entre os seus gritos e gritas, Foi a dar graças infinitas

 

A quem a desassombrou. (a libertou)

 

 

FIDALGO

 

Quanto ela bem chorou!

 

DIABO

 

E não há choro de alegria?

 

FIDALGO

 

E as lástimas que dizia?

 

DIABO

 

A sua mãe lhas ensinou... Entrai, meu senhor, entrai:

Aqui está a prancha! Ponha o pé...

 

FIDALGO

 

Entremos, pois se assim é.

 

DIABO

 

Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai. Que entretanto virá mais gente.

 

FIDALGO

 

Ó barca, como és ardente! Maldito quem em ti vai!

 

Diz o Diabo ao rapaz da cadeira: –

  

DIABO

 

Tu não entras cá! Vai-te daqui! Essa cadeira está cá a mais!

Coisa que esteve na igreja Não se há de embarcar aqui.

 

Aqui dar-lhe-ão outras de marfim, Mais chicotadas de dores,

Dadas com tais lavores, Que ficará fora de si...

 

Falando novamente para o ar –

  

À barca, à barca, boa gente, Que queremos dar à vela!

É chegar a ela! É chegar a ela! (Aproximai-vos, aproximai-vos)

 

Muitos e de boa mente! Oh! que barca tão valente!

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