Auto da Barca do Inferno Cena 1
Primeiramente, no presente auto, pressupõem-se que, no momento em que acabamos de morrer, chegamos subitamente a um rio, o qual, por força, teremos de passar num dos dois batéis que estão atracados num porto. Um deles vai em direção ao paraíso e o outro para o inferno. Os tais batéis têm, cada um, os seus comandantes na proa: o do paraíso um anjo, e o do inferno um comandante infernal e um companheiro.
O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Pajem, que lhe segura um manto muito comprido com uma mão e uma cadeira de espaldas com a outra.
O comandante do Inferno começa o seu pregão mesmo antes do Fidalgo se aproximar.
DIABO
À barca, à barca, venham lá! Que temos gentil maré!
– dirigindo-se ao companheiro –
Ora põe o barco à ré! (vira a traseira do barco)
COMPANHEIRO DO DIABO
Está feito, está feito!
DIABO
Bem feito está!
Vai agora, em má hora, Esticar aquele palanco (corda)
E desocupar aquele banco, Para a gente que virá.
- falando para o ar –
À barca, à barca, hu-u! Depressinha, que se quer ir! Oh, que tempo para partir, Louvores a Belzebu!
- dirigindo-se ao companheiro – Mas então! que fazes tu?
Limpa todo aquele leito! (espaço entre o Mastro e a Popa do barco)
COMPANHEIRO
Em boa hora! Feito, feito!
DIABO
Abaixa-me esse cu!
Liberta aquela poja (corda com que se vira a vela)
E afrouxa aquela driça. (corda com que se levanta a vela)
COMPANHEIRO
Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça!
DIABO
Oh, que caravela esta!
Põe bandeiras, que é festa. Vela ao alto! Âncora a pique!
Ó poderoso Dom Henrique,
Cá vindes vós? Que coisa é essa?...
Aproxima-se o Fidalgo e, chegando ao barco infernal, diz:
FIDALGO
Esta barca para onde vai,
Que assim está apercebida? (preparada)
DIABO
Vai para a ilha perdida,
E há de partir daqui a nada.
FIDALGO
E para lá vai a senhora?
DIABO
Sou um senhor, Ao vosso serviço.
FIDALGO
Parece-me isto um cortiço... (uma embarcação reles)
DIABO
Porque a vedes daí de fora.
FIDALGO
Pois sim, e por que terra passais?
DIABO
Para o inferno, senhor.
FIDALGO
Uma terra sem-sabor... (sem piada nenhuma)
DIABO
O quê?... Mas também disso zombais?
FIDALGO
E que passageiros achais Para tal embarcação?
DIABO
Vejo-vos eu em feição, Para ir no nosso cais…
FIDALGO
Parece-te a ti assim!...
DIABO
Em que esperas ter guarida? (salvação)
FIDALGO
Que deixo na outra vida, Quem reze sempre por mim.
DIABO
Quem reze sempre por ti?!... Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
Tu que viveste a teu prazer,
Pensando cá guarnecer (salvares-te)
Por aqueles que lá rezam por ti?!... Embarcai agora, embarcai!
Que haveis de ir nas traseiras Mandai meter a cadeira,
Como também passou o vosso pai.
FIDALGO
O quê!? O quê!? O quê!? É lá que ele está?!
DIABO
Vai ou vem! Embarcai depressa! Pelo que em vida escolheste, Assim cá vos contentais
E como pela morte passastes, Tereis que passar o rio.
FIDALGO
Não há aqui outro navio?
DIABO
Não, senhor, que este preparaste, E assim que expiraste (morreste)
Me deste logo sinal.
FIDALGO
E que sinal foi esse tal?
DIABO
De que vós vos contentastes. (que estava condenado)
FIDALGO
Para a outra barca me vou.
- Já ao pé da outra barca –
Oh da barca! Para onde ís?
Oh, barqueiros! Não me ouvis? Respondei-me! Olá! Ó!...
- O Anjo ignora-o –
Por deus, aviado estou! (perdido)
Quanto a isto é já pior...
Que jericocins, salvanor! (Mas que burro, com o devido respeito)
Pensam que eu sou um grou? (um corvo, ou uma ave que diz coisas sem sentido)
ANJO
Que quereis?
FIDALGO
Que me digais,
Pois morri tão sem aviso, Se a barca do Paraíso
É esta em que navegais.
ANJO
Esta é. Que desejais?
FIDALGO
Que me deixeis embarcar. Sou fidalgo de solar,
É bom que me recolhais.
ANJO
Não se embarca tirania, Neste batel divinal.
FIDALGO
Não sei porque negais entrada À minha senhoria...
ANJO
Para a vossa fantasia (vaidade)
Muito pequena é esta barca.
FIDALGO
Para senhor de bom nome, Não há aqui mais cortesia?
Venha a prancha e atavio! (a prancha e apetrechos para se subir para o barco)
Levai-me desta ribeira!
ANJO
Não vindes cá a pensar
De entrar neste navio. Aquele ali vai mais vazio. Ali a cadeira entrará,
O rabo caberá
E todo vosso senhorio. Ireis ali mais espaçoso,
Vossa fumosa senhoria, (arrogante)
A pensar na vossa tirania Contra o pobre povo queixoso. E porque, de generoso, Desprezaste os pequenos, Achar-vos-ei tanto menos (*)
Quanto mais foste fumoso. (arrogante)
[(*) Quer o Anjo dizer com isto que quer que o Fidalgo reflita e perceba que quanto mais ele era arrogante e mau, mais ele perdia o valor da sua própria pessoa]
- Grita o Diabo da sua barca –
DIABO
À barca, à barca, senhores! Oh! que maré tão de prata! Um ventozinho que mata E valentes remadores!
- Diz a cantar: –
"Vós me vireis à mão, À mão me vireis.”
FIDALGO
Para o Inferno, então!
O inferno será para mim? Oh triste! Enquanto vivi Não pensei que seria:
Pensei que era fantasia! Pensava ser adorado, Confiei no meu estado E não vi que me perdia. Venha essa prancha!
Veremos esta barca de tristura. (tristeza)
DIABO
Embarque vossa doçura, Que cá nos entenderemos... Tomareis um par de remos, Veremos como remais,
E, chegando ao nosso cais,
Verá como bem vos serviremos.
FIDALGO
Esperai-me vós aqui,
Voltarei à outra vida,
Para ver a minha dama querida, Que se quer matar por mim.
DIABO
Que se quer matar por ti?!...
FIDALGO
Isto bem certo o sei eu.
DIABO
Ó namorado sandeu, (atraiçoado, cornudo)
O maior que já vi!...
FIDALGO
Como poderá isso ser,
Ela que me escrevia todos os dias?
DIABO
Quantas mentiras que lias! E tu... doido de prazer!...
FIDALGO
Para que está a escarnecer,
Se não havia quem me quisesse mais bem?
DIABO
Assim deverias viver, amém, Como ela te havia de querer! (*)
[(*) O Diabo goza com o Fidalgo, dizendo‐lhe que ele deveria viver tanto quanto a namorada o amava, ou seja, nem mais um segundo de vida.]
FIDALGO
Isso quanto ao que eu conheço...
DIABO
Pois estando tu a morrer,
Estava ela a requebrar-se, (a ter relações sexuais)
Com outro de menos preço.
FIDALGO
Dá-me licença, te peço, Que vá ver a minha mulher.
DIABO
E ela, se te voltar a ver, Despenhar-se-á de um cabeço! Tudo quanto ela hoje rezou, Entre os seus gritos e gritas, Foi a dar graças infinitas
A quem a desassombrou. (a libertou)
FIDALGO
Quanto ela bem chorou!
DIABO
E não há choro de alegria?
FIDALGO
E as lástimas que dizia?
DIABO
A sua mãe lhas ensinou... Entrai, meu senhor, entrai:
Aqui está a prancha! Ponha o pé...
FIDALGO
Entremos, pois se assim é.
DIABO
Ora, senhor, descansai, passeai e suspirai. Que entretanto virá mais gente.
FIDALGO
Ó barca, como és ardente! Maldito quem em ti vai!
– Diz o Diabo ao rapaz da cadeira: –
DIABO
Tu não entras cá! Vai-te daqui! Essa cadeira está cá a mais!
Coisa que esteve na igreja Não se há de embarcar aqui.
Aqui dar-lhe-ão outras de marfim, Mais chicotadas de dores,
Dadas com tais lavores, Que ficará fora de si...
– Falando novamente para o ar –
À barca, à barca, boa gente, Que queremos dar à vela!
É chegar a ela! É chegar a ela! (Aproximai-vos, aproximai-vos)
Muitos e de boa mente! Oh! que barca tão valente!
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