Auto da Barca do Inferno Cena 6
Assim que Brízida Vaz embarcou, veio um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:
JUDEU
Quem aí vai? Ó marinheiro!
DIABO
Oh! Em que má hora vieste!...
JUDEU
De quem é esta barca que preste?
DIABO
Esta barca é do barqueiro.
JUDEU
Passai-me que vos pago em dinheiro.
DIABO
E o bode há cá vir?
JUDEU
Pois também o bode há de ir.
DIABO
Que escusado passageiro!
JUDEU
Sem bode, como passarei?(*)
[(*) O bode era o animal de sacrifício da religião judaica]
DIABO
Eu não passo cabrões.
JUDEU
Eis aqui quatro tostões, E mais vos pagarei.
Pela vida do Semifará (*)
Peço-vos me passeis o cabrão! Quereis mais outro tostão?
[(*) Nome Judeu, possivelmente o da própria personagem]
DIABO
Nem tu nem ele hão de vir cá.
JUDEU
Porque não irá o judeu Onde vai Brízida Vaz?
E o senhor meirinho(*) consente? Ó senhor meirinho, não irei eu?
[(*)Meirinho, era uma expressão para uma figura autoritária ligado aos oficiais da justiça e por conseguinte, à fidalguia. O Judeu apela pois à autoridade do Fidalgo que está na barca. Há aqui uma crítica velada, pois predominava a ideia, naquela altura, de que os Judeus, ricos, controlavam a justiça e escavam assim muitas vezes à justiça.]
DIABO
E o fidalgo, que lhe importa...
JUDEU
Não manda ele este batel? CORREGEDOR, coronel, Castigai este sandeu! (tolo)
Azará, pedra miúda, (desgraçado)
Lodo, charco, fogo, lenha, Caganeira que te venha!
Má corrença que te acuda! (diarreia)
Por Deus, que te sacuda Com a beca(*) nos focinhos! Fazes gozo dos meirinhos? Diz, filho da cornuda!
[(*)A beca é um tipo de veste, de uso característico dos juízes, têm sua origem nos trajes sacerdotais dos romanos]
PARVO
Roubaste a cabra, cabrão? Parece-me vós, a mim,
Um gafanhoto de Almeirim
Chacinado num seirão. (morto numa festa)(*)
[(*) Gil Vicente trata esta figura com um grande anti-semitismo (ódio ao povo Judeu), sendo até repudiado pelo próprio Diabo, mas à época, tal como em muitas situações ao longa da história mundial, havia efetivamente um grande ódio contra o povo Judeu, incitado sobretudo pela igreja católica. O Judeu era sempre visto como uma pessoa de mau caráter, ganancioso, rico por ser corrupto e fraudulento. O facto de um Judeu ter sido morto por uma multidão, em determinado sitio, seria algo possível de ter ocorrido]
DIABO
Judeu, ali te passarão,
Porque vão mais despejados. (mais vazios, referindo-se à barca do paraíso)
PARVO
Ele mijou nos finados (nos mortos)
Na igreja de São Gião! (*1)
E comia a carne da panela No dia de Nosso Senhor! (*2) Goza com o salvador,
E mija na caravela! (*3)
[(*) 1- Antigamente os mortos eram enterrados debaixo das lajes da igreja. 2 – Quer dizer que comia carne na sexta-feira santa em que diz a tradição se deve fazer jejum ou não comer carne, não respeitando assim a doutrina católica. 3 – A “caravela” é a própria a igreja católica. Já na bíblica se diz que a igreja é um barco.]
DIABO
Vamos, vamos! Demos à vela! E vós, Judeu, ireis à toa, (*) Que sois muito ruim pessoa. Levai o cabrão na trela!
[(*) Esta frase do Diabo tem dado azo a muito tipo de interpretação, porque Gil Vicente não deixou explicito o que queria dizer efetivamente. Diz o consenso geral que com isto o Diabo está a dizer que o Judeu é tão mau que vai para o inferno “à toa”, ou seja”, não na barca, mas a reboque: ou num outro barco mais pequeno, ou puxado por uma corda, conforme queiram traspor essa ideia para o palco. Outra interpretação diz que ele efetivamente entra dentro da barca já que “ir á toa” pode significar “ir de qualquer maneira” e a própria Brizida Vaz usa essa mesma expressão, num diálogo seu mais à frente, referindo-se a entrar mais alguém dentro da barca “à toa”. Pode, no entanto significar que o Judeu é tão mau que nem direito tem a entrar na barca e que, tal como o rapaz da cadeira do Fidalgo, terá que “ir à toa”, ou seja, terá que andar “a errar” (a vaguear) por ali. Esta última ideia não é assim tão descabida já que está associada ao mito do Judeu Errante, aquele que por castigo foi negada a morte e a entrada, tanto no céu como no inferno e que anda a vaguear pelo mundo até ao fim dos tempos.]
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