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Auto da Barca do Inferno

Capítulos 9

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Auto da Barca do Inferno Cena 6

Assim que Brízida Vaz embarcou, veio um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

 

JUDEU

 Quem aí vai? Ó marinheiro!

 

DIABO

 

Oh! Em que má hora vieste!...

 

JUDEU

 

De quem é esta barca que preste?

 

DIABO

 

Esta barca é do barqueiro.

 

JUDEU

 

Passai-me que vos pago em dinheiro.

 

DIABO

 

E o bode há cá vir?

 

JUDEU

 

Pois também o bode há de ir.

 

 

DIABO

 

Que escusado passageiro!

 

 

JUDEU

 

Sem bode, como passarei?(*)

 

[(*) O bode era o animal de sacrifício da religião judaica]

 

  

DIABO

 

Eu não passo cabrões.

 

JUDEU

 

Eis aqui quatro tostões, E mais vos pagarei.

Pela vida do Semifará (*)

Peço-vos me passeis o cabrão! Quereis mais outro tostão?

 

[(*) Nome Judeu, possivelmente o da própria personagem]

  

 

DIABO

 

Nem tu nem ele hão de vir cá.

 

JUDEU

 

Porque não irá o judeu Onde vai Brízida Vaz?

E o senhor meirinho(*) consente? Ó senhor meirinho, não irei eu?

 

[(*)Meirinho, era uma expressão para uma figura autoritária ligado aos oficiais da justiça e por conseguinte, à fidalguia. O Judeu apela pois à autoridade do Fidalgo que está na barca. Há aqui uma crítica velada, pois predominava a ideia, naquela altura, de que os Judeus, ricos, controlavam a justiça e escavam assim muitas vezes à justiça.]

 

  

DIABO

 

E o fidalgo, que lhe importa...

 

 

JUDEU

 

Não manda ele este batel? CORREGEDOR, coronel, Castigai este sandeu! (tolo)

Azará, pedra miúda, (desgraçado)

 Lodo, charco, fogo, lenha, Caganeira que te venha!

corrença que te acuda! (diarreia)

 Por Deus, que te sacuda Com a beca(*) nos focinhos! Fazes gozo dos meirinhos? Diz, filho da cornuda!

[(*)A beca é um tipo de veste, de uso característico dos juízes, têm sua origem nos trajes sacerdotais dos romanos]

  

 

PARVO

 

Roubaste a cabra, cabrão? Parece-me vós, a mim,

Um gafanhoto de Almeirim

Chacinado num seirão. (morto numa festa)(*)

 

[(*) Gil Vicente trata esta figura com um grande anti-semitismo (ódio ao povo Judeu), sendo até repudiado pelo próprio Diabo, mas à época, tal como em muitas situações ao longa da história mundial, havia efetivamente um grande ódio contra o povo Judeu, incitado sobretudo pela igreja católica. O Judeu era sempre visto como uma pessoa de mau caráter, ganancioso, rico por ser corrupto e fraudulento. O facto de um Judeu ter sido morto por uma multidão, em determinado sitio, seria algo possível de ter ocorrido]

 

DIABO

 

Judeu, ali te passarão,

 

Porque vão mais despejados. (mais vazios, referindo-se à barca do paraíso)

 

 

PARVO

 

Ele mijou nos finados (nos mortos)

 

Na igreja de São Gião! (*1)

E comia a carne da panela No dia de Nosso Senhor! (*2) Goza com o salvador,

E mija na caravela! (*3)

 

[(*) 1- Antigamente os mortos eram enterrados debaixo das lajes da igreja. 2 – Quer dizer que comia carne na sexta-feira santa em que diz a tradição se deve fazer jejum ou não comer carne, não respeitando assim a doutrina católica. 3 – A “caravela” é a própria a igreja católica. Já na bíblica se diz que a igreja é um barco.]

 

DIABO

 Vamos, vamos! Demos à vela! E vós, Judeu, ireis à toa, (*) Que sois muito ruim pessoa. Levai o cabrão na trela!

[(*) Esta frase do Diabo tem dado azo a muito tipo de interpretação, porque Gil Vicente não deixou explicito o que queria dizer efetivamente. Diz o consenso geral que com isto o Diabo está a dizer que o Judeu é tão mau que vai para o inferno “à toa”, ou seja”, não na barca, mas a reboque: ou num outro barco mais pequeno, ou puxado por uma corda, conforme queiram traspor essa ideia para o palco. Outra interpretação diz que ele efetivamente entra dentro da barca já que “ir á toa” pode significar “ir de qualquer maneira” e a própria Brizida Vaz usa essa mesma expressão, num diálogo seu mais à frente, referindo-se a entrar mais alguém dentro da barca “à toa”. Pode, no entanto significar que o Judeu é tão mau que nem direito tem a entrar na barca e que, tal como o rapaz da cadeira do Fidalgo, terá que “ir à toa”, ou seja, terá que andar “a errar” (a vaguear) por ali. Esta última ideia não é assim tão descabida já que está associada ao mito do Judeu Errante, aquele que por castigo foi negada a morte e a entrada, tanto no céu como no inferno e que anda a vaguear pelo mundo até ao fim dos tempos.]

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