Auto da Barca do Inferno Cena 5
Vem um Frade com uma rapariga pela mão, um escudo e uma espada na outra e um capacete debaixo do capuz. E ele mesmo fazendo uma vénia, começa a dançar, cantando:
FRADE
Tai-rai-rai-ra-rã; ta-ri-ri-rã; ta-rai-rai-rai-rã; tai-ri-ri-rã: tã-tã; ta-ri-rim-rim-rã. Huhá!
DIABO
Que é isso, padre?! Quem vem lá?
FRADE
Deo gratias! Sou cortesão. (*)
[(*)Graças a Deus! Sou homem da corte. De todos os personagens usados por Gil Vicente nesta peça, o Frade é o mais criticado. Certamente era o que mais fazia rir ao público da época, pois era em si gozado por todas as camadas sociais.]
DIABO
Sabes também o tordião?(*)
[(*)Canto que uma pessoa trauteia quando faz uma dança improvisada. Também pode significar um tipo de dança feita sem ordem nem compasso certo.]
FRADE
Pois então! Ora, se não sei!
DIABO
Pois entrai! Eu tocarei
E faremos um serão. (uma festa)
Essa dama, é vossa?
FRADE
Por minha, eu a tenho,
E sempre a tive como minha.
DIABO
Fizestes bem, que é formosa!
Mas não vos punham lá grossa (censuravam)
No vosso convento santo?
FRADE
Eles lá fazem outro tanto!(*)
[(*)Diz o Frade perante a admiração do Diabo de que os outros frades também tinham amantes como a dele.]
DIABO
Que coisa tão preciosa... Entrai, padre reverendo!
FRADE
E para onde levais a gente?
DIABO
Para aquele fogo ardente, Que não temestes vivendo.
FRADE
Juro a Deus que não te entendo!
E este hábito, de nada vale? (as veste religiosas)
DIABO
Gentil padre mundanal,
A Belzebu vos encomendo!
FRADE
Corpo de Deus consagrado! Pela fé de Jesus Cristo,
Que eu não posso entender isto! Hei de eu ser condenado?!...
Um padre tão enamorado E tanto dado à virtude?
Assim Deus me dê saúde, Que eu estou muito admirado!
DIABO
Não penses em mais detença. (demora)
Embarcai e partiremos: Tomareis um par de ramos.
FRADE
Não ficou isso em avença. (em acordo)
DIABO
Pois dada está já a sentença!
FRADE
Por Deus! Essa é que era ela! Não vai em tal caravela
A minha senhora Florença.
Como assim? Só por ser namorado, E folgar com uma mulher,
Há de um frade de se perder, Com tanto salmo rezado?!...
DIABO
Ora estás bem aviado! (*)
[(*) “Estás bem aviado”, ou por outras palavras “estás bem servido” é uma expressão que quer dizer que essa determinada pessoa está numa má situação]
FRADE
Direi eu, bem corrigido!
DIABO
Devoto padre marido,
Haveis de cá pingado... (haveis cá lugar guardado)
O Frade descobre a cabeça, tirando o capuz, apareceu-lhe o capacete (*), e diz o Frade:
[(*)]Muitas ordem religiosas da idade média foram fundadas por monges guerreiros. Os monges guerreiros, por exemplo, das ordens militares do Templo, dos Hospitalários, de Calatrava (mais tarde Ordem de Avis) e de Santiago de Espada desempenharam um papel muito importante nas lutas das Cruzadas.]
FRADE
Mantenha Deus esta coroa!
DIABO
Ó padre Frei Capacete!
Isso mais parece um barrete...
FRADE
Sabeis é da ordem!
A espada é roloa (*) (ordinária)
E este escudo rolão (reles)
[(*) Advém de “ralé”, algo que é comum]
DIABO
Dê Vossa Reverencia lição
De esgrima, que é coisa boa!
Começou o frade a dar lição de esgrima com a espada e o escudo e diz desta maneira:
FRADE
Deo gratias! Damos caçada! Para sempre, contra uns!
Um fendente!(*), ora pois!
[(*) Golpe de esgrima normalmente feito de cima para baixo com o punho]
Esta é a primeira levada. (o primeiro ataque)
Alto! Levantai a espada! Uma estocada, e um revés! E depressa recolher os pés,
Que todo o cuidado é pouco!
Quando o recolher se tarda O ferir não é prudente.
Ora, então! Muito depressa, Cortai na segunda guarda!
Guarde-me Deus da espingarda(*)
[(*) Entende-se por aqui por "espingarda" um tipo de arma como um "mosquete" ou a uma "besta" que existiam no seculo XVI. Não a conceção de espingarda que surgiu um século depois]
E do homem ousado.
Aqui estou tão bem guardado
Como uma palha na albarda. (a sela dos cavalos)
Fico com meia espada...
Óh lá! Protegei as queixadas! (as caras)
DIABO
Oh que valentes levadas! (ataques)
FRADE
Isto ainda não é nada... Damos outra vez caçada! Contra uns mais um fendente, E, cortando com destreza,
Eis aqui a sexto feitada. (golpe)
Daqui saio com uma guia (reviravolta)
E um revés da primeira:
Esta é o quinta verdadeira. Oh! Quantos assim eu feria!... Um padre que tal aprendia,
No Inferno há de ter pingos?!... (lugar)
Ah! Não se preza a São Domingos Com tanta descortesia!
– Voltou a tomar a rapariga pela mão, dizendo: –
Vamos à barca da Glória!
Começou o Frade a fazer o tordião e foram os dois a dançar até o batel do Anjo desta maneira:
FRADE
Ta-ra-ra-rai-rã; ta-ri-ri-ri-rã;
rai-rai-rã; ta-ri-ri-rã; ta-ri-ri-rã. Huhá!
Deo gratias! Há lugar cá Para minha reverência? E a senhora Florença Também entrará cá!
PARVO
Andor daqui para fora!
Roubaste o trinchão, frade?(*) (pedaço de carne)
[(*) referindo-se à rapariga que o frade trazia]
FRADE
Senhora, dá-me a vontade (quer-me parecer)
Que este feito mal está.
Vamos para onde havemos de ir! Não se praza Deus com a ribeira! E não vejo aqui maneira
Senão, enfim, …. concrudir. (de aceitar as coisas têm de ser)
DIABO
Haveis, padre, de vir.
FRADE
Agasalhai-me lá a Florença, E cumpra-se essa sentença.
Apressemo-nos a partir.
Assim que o Frade foi embarcado, veio uma Alcoviteira (*), de nome Brízida Vaz, a qual, chegando à barca infernal, diz desta maneira:
[(*) Uma alcoviteira era uma mulher de má fama, ligada ao negócio da prostituição (do qual ela era gerente) e a tudo o que lhe estava ligado, ou também a negócios fraudulentos de crendices pagãs, como as mezinhas e remédios de cura. O povo tomava-as como feiticeiras]
BRÍZIDA
Ó da barca, ó lá!
DIABO
Quem chama?
BRÍZIDA
BrízidaVaz.
DIABO
– dirigindo-se ao companheiro – Mas o que espera ela, rapaz? Porque não entra ela já?
COMPANHEIRO
Diz que não há de entrar cá Sem a Joana de Valdês.(*)
[Jona de Valdês já tinha sido anteriormente mencionada pelo Onzeneiro. Devia ter sido uma personagem conhecida na época. Há quem aponte que poderia ter sido uma amante do Bispo de A. Valdês que tinha uma amante com a alcunha de Lucrécia – não confundir com a infame Lucrécia Bórgia, filha do Papa Alexandre VI, a quem certamente o nome foi imitado]
DIABO
Entrai vós e remai.
BRÍZIDA
Eu não quero aí entrar.
DIABO
Que saboroso recear!
BRÍZIDA
Não é essa barca que eu cato. (procuro)
DIABO
Não trazes vós muitos fatos?
BRÍZIDA
O que me convém levar.
DIABO
E o que tens para embarcar?
BRÍZIDA
Seiscentos virgos postiços (*)
E três arcas de feitiços
Que não podem mais levar.
[(*) hímens postiços, usado pelas prostitutas para passarem por virgens]
Três armários de mentir,
E cinco cofres de enleios. (seduções)
E alguns furtos alheios, Como joias de vestir, Guarda-roupa de encobrir, Enfim... – casa movediça; E um estrado de cortiça
Com dois coxins de cobrir. (almofadas)
A maior carga era,
Essas moças que vendia. Dessa mercadoria,
Trago eu muita boa fé! (*)
[(*) Brízida Vaz traz consigo todos os apetrechos inerentes aos seus pecados que consistia em criar e fornecer meninas para os homens da época, em particular para os fidalgos e autoridades eclesiásticas.]
DIABO
Ora ponde aqui o pé...
BRÍZIDA
Ui! E vou é para o Paraíso!
DIABO
E quem te disse a ti isso?
BRÍZIDA
Hei de lá ir nessa maré! Eu sou uma mártir tal!... Açoites tenho levado, (*) E tormentos suportado,
Que ninguém me foi igual.
Se eu fosse para o fogo infernal, Lá iria todo o mundo!
À outra barca, lá ao fundo,
Me vou, que é mais real. (relativo à realeza)
[(*) As prostitutas e as suas “madames” recebiam efetivamente chicotadas como castigo da justiça quando era apanhadas e sentenciada pelos tribunais]
– Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo: –
BRÍZIDA
Barqueiro, mano dos meus olhos, Deita a prancha a Brízida Vaz.
ANJO
Eu não sei quem te cá traz...
BRÍZIDA
Peço-o de joelhos! Pensais que trago piolhos,
Anjo de Deus, minha rosa? Eu sou aquela preciosa
Que dava as moças aos molhos, (em grandes quantidades)
A que criava as meninas
Para os cónegos da Sé... (padres e bispos)
Passai-me, por vossa fé,
Meu amor, minhas boninas, (margaridas, malmequeres)
Olho de perlinha fina! (pérola)
Eu sou apostolada, Angelada e maritizada
E fiz coisas muito divinas. Santa Úrsula não converteu Tantas raparigas como eu!
Todas salvas pelo meu (por mim)
E nenhuma se perdeu.
E graças "Àquele do Céu" Que todas acharam dono. Pensais que dormia sono?
Nem ponto se me perdeu! (Nada me escapou à atenção)
ANJO
Ora, vai além embarcar,
Ali não estarás a importunar.
BRÍZIDA
Pois estou-vos eu contar
O porque me haveis de levar.
ANJO
Não penses em importunar,
Que não podes vir aqui.
BRÍZIDA
E que má hora eu servi,
Pois não me há de aproveitar!...
– Volta Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo: –
Ó barqueiros da má hora,
Venha a prancha, pois aqui me vou. Já há muito que aqui estou,
E pareço mal estar cá fora.
DIABO
Ora entrai, minha senhora, E sereis bem recebida;
Se vivestes santa vida,
Vós o sentireis agora...
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