Auto da Barca do Inferno Cena 4
Vem Sapateiro com o seu avental e carregado de formas de sapatos. Chega ao batel infernal, e diz:
SAPATEIRO
Ó da barca!
DIABO
Quem vem aí?
Oh! Santo sapateiro honrado, Como vens tão carregado!...
SAPATEIRO
Mandaram-me vir assim... (*)
E para onde é a viagem?
[(*) Os objetos que as personagem carregam representam os pecados que cometeram em vida.]
DIABO
Para o lago dos danados.
SAPATEIRO
E os que morrem confessados, Onde têm a sua passagem?
DIABO
Não digas tais linguagem! Esta é a tua barca, esta!
SAPATEIRO
Renegaria eu da festa,(*) E da puta dessa barcagem! Como poderá isso ser,
Sendo eu confessado e comungado?!...
[(*) Expressão que dizer, “não quero esse convite para nada, mesmo que fosse para uma festa”]
DIABO
Tu morreste excomungado! Mesmo sem o saberes.
O que esperavas depois de viver, Fazendo dois mil engano…
Tu roubaste em trinta anos,
O povo com a tua mestria. (com o teu oficio)
Embarca, esta barca é para ti, Que há já muito que te espero!
SAPATEIRO
Pois digo-te que não quero!
DIABO
Mas hás de ir, sim, sim!
SAPATEIRO
Quantas missas eu ouvi...
Não me hão elas de agora prestar? (valer)
DIABO
Ouvir missa, depois roubar... É caminho para aqui.
SAPATEIRO
E as ofertas que servirão? (as esmolas)
E as horas dos finados? (as rezas e os velórios que se faziam quando alguém estava a morrer para essa pessoa ir para o céu)
DIABO
E os dinheiros mal cobrados, Que foi da tua satisfação?
SAPATEIRO
Oh! Não brinques oh cordovão! (mentiroso)
Nem à puta da badana, (da velha, ou seja, da tua mãe ou da tua avó)
Se é esta traquitana Para ir o João Antão!
Ora juro a Deus que mete graça!
Dirige-se à barca do Anjo, e diz:
SAPATEIRO
Oh da santa caravela! Poderás levar-me nela?
ANJO
A tua carga te embaraça.
SAPATEIRO
Não há caridade que Deus me faça? Isto em qualquer lugar irá?
ANJO
Aquela barca que ali está
Leva quem rouba de praça. (descaradamente)
Oh almas embaraçadas! (desavergonhadas)
SAPATEIRO
Ora muito eu me maravilho, (me espanto)
Por terdes por grão peguilho, (por incómodo)
Quatro forminhas cagadas, (*)
Que podem bem ir aí aconchegadas Aí num cantinho dessa barca!
[(*)”umas coisas insignificantes”, referindo-se à formas dos sapatos que trazia consigo, ou seja, os seus pecados.]
ANJO
Se tivesses vivido direito, Elas eram cá escusadas. (*)
[(*) Diz o Anjo, que se o Sapateiro vivido com retidão, não trazia agora nada carregado consigo]
SAPATEIRO
Então determinais,
Que eu vá cozer ao Inferno?
ANJO
Escrito estás no caderno Das ementas infernais.
O sapateiro volta à barca dos danados, e diz:
SAPATEIRO
Oh barqueiros! Que aguardais? Vamos, venha prancha logo
E levai-me àquele fogo! Não nos detenhamos mais!
-
Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
-
Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
-
Obrigado por fazer parte dessa jornada!