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Auto da Barca do Inferno

Capítulos 9

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Auto da Barca do Inferno Cena 8

Vem um homem que morreu Enforcado, e, chegando ao batel dos mal- aventurados, diz o barqueiro ao que chega:

 

DIABO

 

Vamos embora, enforcado! Que diz lá o Garcia Moniz? (*)

[(*)Figura provavelmente conhecida à época, cuja identidade é hoje desconhecida e dada a muita suposição. Seria alguém importante na corte portuguesa]

 

 

ENFORCADO

 

Eu te direi que ele diz:

 

Que fui bem-aventurado

 

Em morrer dependurado (pendurado)

 

Como o tordo na buiz, (armadilha)

 

E diz que os feitos que eu fiz

 

Me fazem canonizado. (me fazem santo)

  

 

DIABO

 

Entra cá, e governarás (guiarás o barco)

 

Até às portas do Inferno.

 

ENFORCADO

 

Não é essa a nau que eu quero.

 

DIABO

 

Digo-te eu que aqui irás.

 

ENFORCADO

 

Oh! Isso não, por Barrabás! (*) Então se Garcia Moniz dizia Que os que morrem como eu Ficam livres de Satanás...

[(*)O criminoso que foi libertado no lugar de Cristo a pedido da população enraivecida]

 

E disse que Deus quisera De ser eu enforcado;

E que fosse Deus louvado Pois em boa hora eu nascera; E que o Senhor me escolhera;

 

E que por bem vi os beleguins. (pelo seu bem, foi levado aos oficiais da justiça)

 

E com isto mil latins,

 

Muito lindos, feitos de cera. (*)

 

[(*) Mil latins serão os discursos jurídicos e religiosos, de cera serão as velas. Para o enforcado, um condenado simplório, faz tudo parte da mesma coisa]

E, no passo derradeiro, Disse-me nos meus ouvidos Que o lugar dos escolhidos Era a forca e o Limoeiro; (*)

[(*) O Limoeiro era uma prisão da altura em Lisboa com a reputação de ser muito dura.]

 

Nem guardião do mosteiro Tinha tão santa gente Como o Afonso Valente Que é agora carcereiro.

 

DIABO

 

Dava-te consolação isso, Ou algum esforço? (*)

[(*)Pergunta o Diabo ao Enforcado se aqueles suplícios que passara na prisão, mais as rezas de penitência, lhe valeram de alguma coisa. O Diabo pergunta isto, como já se verá, para saber se o enforcado morreu arrependido dos seus pecados e se o seu sofrimento lhe serviu de expiação dos males que antes cometera e se encontrou salvação da sua alma através das palavras das rezas.]

 

 

ENFORCADO

 

Aquele com a corda ao pescoço, De muito pouco serve a pregação... E apenas leva a devoção

De que há de voltar a jantar...

Mas quem há de estar no ar (há de ser pendurado pela forca)

 Aborrece-se com o sermão.

 

 

DIABO

 

Entra, entra no batel, Que ao Inferno hás de ir!

 

ENFORCADO

 

O Moniz esteve a mentir? Disse-me que com São Miguel Eu jantaria pão e mel

Assim que fosse enforcado. Ora, eu já passei o meu fado,

E já feito é o burel.(*) (e já passei o que tinha a passar)

  

[(*) Burel era um tecido de artesanal feito de lã. "Já é feito o burel" era uma expressão utilizada para dizer que "o trabalho já está feito ou cumprido" ou "já se fez o que se tinha a fazer"]

  

Agora não sei o que é isto:

 

Ele não me falou ele em ribeira,

 

Nem em barqueiro, nem em barqueira, Apenas no Paraíso.

Isto muito no seu juízo.

 

E que era santo o meu baraço... (era abençoada a minha corda)

 

Eu não sei que aqui faço:

 

Que é desta glória improviso? (que espécie de glória é esta?)

 

  

DIABO

 

Falou-te no Purgatório?

 

ENFORCADO

 

Disse que era o Limoeiro, (que o purgatório era a prisão)

 

E com ele o saltéiro (o livro de salmos)

 

E o pregão vitatório; (o discurso que se dizia antes de se enforcar alguém)

 

E que era muito notório

 

Que aqueles disciplinados (aqueles castigos)

 

Eram horas dos finados (eram bênçãos para os condenados)

 

E missas de São Gregório.

 

 

DIABO

 

Quero-te desenganar:

 

Se o que tivesses aceitado, Certo era que te salvavas.

Mas não o quiseste aceitar... (*)

  

[(*) Diz o Diabo que se os tormentos e as rezas, que o Enforcado levou na prisão, lhe tivessem servido como expiação dos seus pecados, ter-se-ia salvado. Mas como não levou os castigos as rezas a sério para pedir perdão pelos erros do passado, vai para o inferno.]

  

Diz o Diabo para todos os que estão dentro do seu barco

  

Alto! Todos a alevantar, Que está em seco o batel! Alevante-se, Frei Babriel! Ajudai ali a apanhar! (*)

[(*) O Diabo repara que a maré está a abaixar e quer pôr todos a trabalhar para se ir embora, dá ordens em especifico ao Frade]

 

Vêm Quatro Cavaleiros a cantar, os quais trazem cada um a Cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrescentamento de Sua santa fé católica morreram a lutar contra os mouros. Absoltos a culpa e pena como privilégio que os que assim morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assim cantavam é a seguinte:

 

CAVALEIROS

 

À barca, à barca segura, Barca bem guarnecida, À barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais Pela vida transitória,

Memória, por Deus, memória (lembrai-vos, por Deus, lembrai-vos)

 Deste temeroso cais!

À barca, à barca, mortais, Barca bem guarnecida,

À barca, à barca da vida!

Cuidado, pecadores, que, Depois da sepultura,

Neste rio está a ventura (o destino)

 De prazeres ou de dores!

À barca, à barca, senhores, Barca muito nobrecida, (nobre)

À barca, à barca da vida!

E passando à frente da proa do batel dos danados, assim a cantar, com suas espadas e escudos, disse o barqueiro da perdição desta maneira:

 

DIABO

 

Cavaleiros, vós passais

E não perguntais para onde ireis?

 

 

1º CAVALEIRO

 

Vós, Satanás, que presumis? Cuidado com quem falais!

 

 

2º CAVALEIRO

 

Vós que nos querereis?

Vejo que não nos conhece bem: Nós morremos nas Partes d'Além, E não queirais saber mais.

 

 

DIABO

 

Entrai cá! Que coisa é essa?

 

Que eu não consigo entender isso!

 

CAVALEIROS

 

Quem morre por Jesus Cristo Não vai em tal barca como essa!

 

Voltam a prosseguir, cantando, no seu caminho direitos à barca da Glória, e, assim que chegam, diz o Anjo:

 

 

ANJO

 

Ó cavaleiros de Deus, Por vós estou a esperar, Que morrestes a lutar

Por Cristo, Senhor dos Céus! Sois livres de todo mal, Mártires da Santa Igreja,

Que quem morre em tal peleja (luta)

 

Merece a paz eternal.

 

E assim embarcam.

 

 

FIM

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