Auto da Barca do Inferno Cena 2
Aparece um Onzeneiro, (*) e pergunta ao barqueiro do Inferno, dizendo:
[(*) Indivíduo que vive a emprestar dinheiro aos outros e a cobrar depois juros altos. Eram os banqueiros da altura.]
ONZENEIRO
Para onde navegais?
DIABO
Oh! Em que má hora chegais, Onzeneiro, meu parente!
Porque tardastes vós tanto?
ONZENEIRO
Mais ainda eu quisera tardar...
Na safra do apanhar, (Na tarefa de ganhar dinheiro)
Deu-me Saturno(*) o quebranto. (a morte)
[(*)Saturno era o deus romano do Tempo.]
DIABO
Ora muito me espanto por ver Não vos salvar o dinheiro!...
ONZENEIRO
Nem para o barqueiro
Me deixaram ficar com algo…(*)
[(*) O Onzeneiro refere-se novamente às mitologia grega, segundo a qual os mortos teriam que atravessar o rio Aqueronte, pagando uma moeda ao barqueiro, de nome Caronte, pela passagem. Queixa-se ele de que não o deixaram levar nenhum do seu dinheiro consigo, quando morreu, nem para pagar ao tal barqueiro da lenda.]
DIABO
Ora então entrai, entrai aqui!
ONZENEIRO
Não hei eu de aí embarcar!
DIABO
Oh! Que gentil recear,
E que divertido para mim!...
ONZENEIRO
Ainda agora faleci!
Deixa-me escolher um batel!
DIABO
Oh São Pimentel! Porque não irás aqui?...
ONZENEIRO
E para onde é a viagem?
DIABO
É para onde tu hás de ir.
ONZENEIRO
E vamos já partir?
DIABO
Não penses em mais linguagem. (Deixa-te de mais conversas)
ONZENEIRO
Mas para onde é a passagem?
DIABO
Para a infernal comarca.
ONZENEIRO
Dix! Não vou eu em tal barca. (uma interjeição de espanto)
Aquela outra tem avantagem (melhor aspeto)
Dirige-se à barca do Anjo, e diz:
ONZENEIRO
Oh da barca! Olá! Ó! Haveis já de partir?
ANJO
E onde queres tu ir?
ONZENEIRO
Eu, para o Paraíso vou.
ANJO
Pois quanto a mim, muito fora estou (não contes comigo)
De te levar para lá
Aquela outra barca te aceitará; Ali vai quem enganou!
ONZENEIRO
Porquê?
ANJO
Porque esse bolsão Ocuparia todo o navio.
ONZENEIRO
Juro a Deus que vai vazio!
ANJO
Não no teu coração.
ONZENEIRO
Lá me ficou de roldão (perdida)
A minha fazenda e alheia (riqueza)
ANJO
Ó onzena, como és feia (ozena = usura, avareza)
E filha da maldição!
Torna o Onzeneiro à barca do Inferno e diz:
ONZENEIRO
Oh da barca! Oh Demo barqueiro! Sabeis vós no que me fundo? (penso)
Quero lá voltar ao mundo E trazer o meu dinheiro. Aquele outro marinheiro,
Porque me viu vir sem nada,
Deu-me tanta borregada, (insultos)
Como os barqueiros lá do Barreiro.
DIABO
Entra, entra! E remarás! Não percamos mais a maré!
ONZENEIRO
Todavia...
DIABO
Por força assim é!
Como fizeste, cá entrarás! Irás servir Satanás,
Porque sempre ele te ajudou.
ONZENEIRO
Oh triste de mim... Quem me cegou?
DIABO
Cala-te que depois chorarás.
Ao entrar o Onzeneiro no batel, encontra o Fidalgo embarcado e diz tirando o barrete:
ONZENEIRO
Santa Joana de Valdês!
Também está cá vossa senhoria?
FIDALGO
Dê ao demo a cortesia!
DIABO
Que ouvi? Falai vós em ser cortês! Vós, fidalgo, que penseis?
Que estais na vossa pousada? Dar-vos-ei tanta pancada
Como a um remo que renegueis!
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