Auto da Barca do Inferno Cena 7
Vem um Corregedor(*), carregado de manuscritos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:
[(*) O corregedor era o magistrado (um juiz) administrativo e judicial que representava a Coroa em cada uma das comarcas de Portugal.]
CORREGEDOR
Ó da barca!
DIABO
Que quereis?
CORREGEDOR
Está aqui o senhor juiz?
DIABO
Oh amante de perdiz, (*)
Que gentil carga trazeis!
[(*)O Diabo goza com o corredor, pois perdiz é uma ave que se dizia usar como pagamento para subornar alguém, pedindo-lhe favores. Ao dizer que o corregedor é um apreciador de perdizes está a dizer que ele era um juiz que aceitava subornos]
CORREGEDOR
Pela minha aparência percebereis
Que não é ela do meu jeito. (que não costumo levar carga)
DIABO
Como vai lá o direito?
CORREGEDOR
Nestes autos, o vereis.
DIABO
Ora, pois, entrai. Veremos, O que diz aí nesse papel...
CORREGEDOR
E onde vai o batel?
DIABO
No Inferno vos poremos.
CORREGEDOR
Como? À terra dos demos, Há de ir um corregedor?
DIABO
Santo descorregedor, Embarcai, e remaremos! Ora, entrai, já que viestes!
CORREGEDOR
Non est de regulae juris, não!(*) (Não isso está prescrito nas leis)
[(*) Era costume as pessoas ligadas à justiça estudarem o latim pois as primeiras leis fundaram-se no direito romano e como tal o domínio do latim estava ligado à erudição. O povo da altura não tinha no entanto o latim como algo que lhes fosse completamente desconhecido pois as missas, a que se impunha que todos assistissem aos domingos, eram todas ditas em latim – um facto que só em meados de 1900 é que se abandonou. Por outro lado, o português arcaico da época era por si também ainda muito próximo do latim romano, por isso é que as frases e expressões latinas utilizadas entre o corregedor e o Diabo eram, à altura, compreendidas, mais ou menos bem, pelo público geral.]
DIABO
Ita, Ita! Dai cá a mão! (sim, sim, em latim)
Remaremos um remo destes. Fazei conta que nascestes Para ser nosso companheiro.
– dirigindo-se ao companheiro diabrete –
Que fazes tu, barzoneiro? (preguiçoso)
Estende essa prancha. Prestes! (despacha-te)
CORREGEDOR
Oh! Renego da viagem
E de quem me há de levar!
Há aqui meirinho do mar? (Juiz ou magistrado)
DIABO
Não há tal costumagem. (costume)
CORREGEDOR
Não entendo esta barcagem,
Nem hoc nom potest esse. (E isso não pode ser.)
DIABO
Ora se vos parecesse, (se vós pensais)
Que não sei mais dessa linguagem... Entrai, entrai, corregedor!
CORREGEDOR
Oh! Videtis qui petatis (Vede que pedis)
Super jure magestatis (algo acima do direito de majestade)
Tem o vosso mando vigor?
DIABO
Quando éreis ouvidor
Nonne accepistis rapina? (não aceitaste suborno?)
Pois ireis agora à bolina (à vela)
Onde a nossa pessoa for... Oh! E que isca é esse papel Para um fogo que eu cá sei!
CORREGEDOR
Domine, memento mei! (Senhor,(Deus) lembrai-vos de mim)
DIABO
Non es tempus, bacharel(*)! (Não há tempo, bacharel)
Imbarquemini in batel (embarcai no batel)
Quia Judicastis malitia. (que a justiça é maldita)
[(*)"Bacharel" é um grau académico]
CORREGEDOR
Sempre ego justitia fecit. (Eu sempre agi com justiça)
DIABO
E as peitas dos judeus (peitas = peitos das aves; subornos)
Que a vossa mulher levava?
CORREGEDOR
Isso eu não o tomava. (não era comigo)
Eram lá percalços seus.
Nom som pecatus meus, (não são meus pecados)
Peccavit uxore mea. (quem pecou foi a minha esposa)
DIABO
Et vobis quoque cum ea, (E vós também com ela)
A Deus não temeste.
E de grande modo enriqueceste
Sanguinis laboratorum, (com o sangue dos que trabalham)
Ignorantis peccatorum. (Pecaste, ignorando-os)
Ut quid eos non audistis? (E porque não os atendeste?)
CORREGEDOR
Vós, barqueiros, nonne legistis (não lestes)
Que o dinheiro quebra os penedos? (as montanhas)
E que os direitos ficam quedos, (parados; suspensos)
Sed aliquid tradidistis... (Se algo é dado em troca...)
DIABO
Ora entrai, nestes negros fados! Ireis para ao lago dos cães
E vereis os escrivães
Como estão tão prosperados. (ricos)
CORREGEDOR
E na terra dos danados Estão os Evangelistas?
DIABO
Os mestres das burlas vistas
Estão lá bem fragoados. (martelados – como era o metal na forja)
Estando o Corregedor nesta conversa com o Arrais infernal chegou um Procurador(*), carregado de livros, e diz o Corregedor ao Procurador:
[(*) O procurador é um mandatário da Justiça, aqui a representar a classe dos advogado]
CORREGEDOR
Ó senhor Procurador!
PROCURADOR
Beijo-vos as mãos, Juiz!
Que diz este barqueiro? Que diz?
DIABO
Que sereis bom remador. Entrai, bacharel doutor, E ireis a dar à bomba. (*)
[(*) bomba de bombear, um mecanismo que retirava a água que entrava dentro dos barcos]
PROCURADOR
Este barqueiro zomba... Gostais de ser gozador? Essa gente que aí está, Para onde a levais?
DIABO
Para as penas infernais.
PROCURADOR
Dix! Eu é que não vou para lá! (uma interjeição de espanto)
Outro navio ali está,
Muito melhor assombrado. (de melhor aspecto)
DIABO
Ora estás bem aviado! Entra, em muito má hora!
CORREGEDOR
Confessastes-vos, doutor?
PROCURADOR
Bacharel sou. Não tive tempo! Não pensei que era preciso, Nem de morte a minha dor.
E vós, senhor Corregedor?
CORREGEDOR
Eu muito bem me confessei, Mas tudo quanto roubei Encobri ao confessor...
PROCURADOR
...Porque, se o não tornais, (devolveres)
Não vos querem absolver,
E é muito mau devolver
Depois que o apanhais. (de ter roubado)
DIABO
Pois porque não embarcais?
PROCURADOR
Quia speramus in Deo. (Porque esperamos por Deus)
DIABO
Imbarquemini in barco meo... (Embarcai no meu barco)
Para quê esperais mais?
Vão-se ambos ao batel da Glória, e, chegando, diz o Corregedor ao Anjo:
CORREGEDOR
Ó barqueiro dos gloriosos,
Passai-nos neste batel!
ANJO
Oh! Pragas para papel, E para as almas odiosos! Como vindes preciosos, Sendo filhos da ciência!
CORREGEDOR
Oh! habeatis clemência (tende clemência)
E passai-nos como vossos!
PARVO
Ó, homens dos breviário, (livros)
Rapinastis coelhorum (vós rapinaste coelho)
Et pernis perdigotorum (e pernas de perdiz)
Para além de mijar nos campanários!
CORREGEDOR
Oh! Não nos sejais contrários, (não seja mau, ou não nos complique mais a situação)
Pois não temos outra ponte!
PARVO
Beleguinis ubi sunt?(*1) (onde estão os carcereiros)
Ego latinus macairos!(*2) (o meu latim é macarrónico/maravilhoso!)
[(*) 1- Beleguins eram os oficiais da Justiça. Juane, o Parvo, está a reivindicar que alguém venha prender aqueles dois. 2 - Frase cómica, dirigida provavelmente ao público porque o seu latim é uma grande trapalhada.]
ANJO
A justiça divinal
Manda-vos vir carregados Porque têm de ser embarcados Naquele batel infernal.
CORREGEDOR
Oh! Não atende São Marçal! Com a ribeira, nem com o rio! (*) Penso que é desvario
Fazer-nos tamanho mal!
[(*) Diz o corregedor que São Marçal não encontra aquele sitio para lhes atender as preces e os salvar]
PROCURADOR
Que ribeira é esta tal!
PARVO
Pareces-me vós a mim Como um cagado nebri, (*1) Mandado no Sardoal.
Embarquetis in zambuquis! (*2) (embarcai na má barcaça - tradução provável)
[(*) 1 – O Parvo continua a fazer o seu papel de denunciador daqueles que aparecem junto à barca do paraíso, chegando inclusive a dizer de onde é que eles vêm e ofendendo-os com isso. "nebri" é uma palavra da falcoaria, que se refere ao falcão-nebri. "cagado nebri" é pois um insulto. "uma ave de rapina cagada, ou seja, mal feita" que vinha das terras do Sardoal. 2 - mais uma frase humorística, a tentar imitar o latim, mas sem o conseguir.)]
CORREGEDOR
Venha a negra prancha para cá! Vamos ver esse segredo.
PROCURADOR
Diz um texto do Degredo...
DIABO
Entrai, que cá se dirá!
E assim que os dois entraram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor para a Brízida Vaz, porque a conhecia:
CORREGEDOR
Oh! Em má hora vos vejo, Senhora Brízida Vaz!
BRÍZIDA
Já nem aqui estou em paz, Pois nem aqui me deixais. Cada hora a mim sentenciada:
«Foi justiça que vós mandastes fazer... » (*)
[(*) Brízida com estas palavras queixa-se de que em vida fartava-se de ser perseguida pela lei e que fora sentenciada muitas vezes pelo Corregedor]
CORREGEDOR
E vós.. volta a tecer
E a urdir outra meada.(*)
[(*) E responde o corregedor que Brizida voltava sempre a fazer o mesmo, apesar das sentenças que lhe eram dadas]
BRÍZIDA
Diz ó, juiz da alçada:
Vem lá o Pêro de Lisboa? (*)
Levá-lo-emos à toa
E irá também nesta barcada.
[(*) O “Pêro de Lisboa”, dizem os historiadores que era um escrivão muito conhecido na altura em Lisboa pela má fama. É pois uma paródia dirigida a uma figura da época que já lhe apontava o inferno como destino final]
-
Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
-
Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
-
Obrigado por fazer parte dessa jornada!