Fogo e Lua no Sonhar Capítulo 9
O Reflexo das Brumas
Jasper emergiu lentamente das brumas densas, seus pés afundando no terreno pantanoso. A umidade subia por suas pernas, e o ar vibrava com uma energia inquietante, carregando o cheiro metálico de sangue envelhecido. A névoa ao redor parecia viva, como se a própria realidade estivesse se dissolvendo em sonhos fragmentados. A cada passo, ele sentia o mundo vacilar sob seus pés.
À frente, uma figura começou a se formar. Líquida, instável, feita de um brilho viscoso entre fumaça e água. Seu contorno lembrava o próprio Jasper, mas distorcido, como o reflexo de um espelho quebrado. Os olhos da criatura brilhavam com uma luz escura e familiar. Nas costas, uma foice de lâmina curva reluzia de forma ameaçadora.
Jasper parou. O ambiente em volta parecia prendê-lo — galhos surgiam da névoa como garras, e o chão sugava sua energia. Um silêncio opressor dominava tudo.
"Você deve estar se perguntando quem sou eu", disse a figura. Sua voz ecoava dentro da cabeça de Jasper. "A resposta é simples. Eu sou você."
Antes que ele pudesse responder, mais duas figuras emergiram. Uma à direita, com uma espada embainhada e uma cicatriz sob o olho direito. Outra à esquerda, com uma lança atravessada nas costas, irradiando autoridade e presença.
"Eu sou você", repetiram as três em uníssono, como um coro nascido da própria mente de Jasper.
Ele deu um passo atrás, atônito. Cada reflexo trazia uma emoção distinta. A da foice exalava morte e transição. A da espada, batalha e perseverança. A da lança, poder e destino.
"O que isso significa? O que vocês querem de mim?", perguntou Jasper.
A figura com a foice avançou primeiro. Seus movimentos eram elegantes, envoltos por névoa que dançava ao redor. "Somos as possibilidades que você carrega. Os caminhos que trilharia, os que rejeitou e os que ainda virão."
A da espada seguiu, tocando a empunhadura com leveza. "Carrego as cicatrizes que você tenta esconder. Lutas travadas. Feridas que ainda não fecharam."
A da lança aproximou-se. "E eu sou o poder que você teme. A força que precisa dominar."
Jasper sentiu-se nu diante deles. Era mais do que espelhos. Era ele mesmo — dividido, confuso, em conflito.
"Então, o que devo fazer?", sussurrou, a voz engasgada entre medo e coragem.
A figura da foice respondeu, sua voz carregada de lamento e desejo: "Sou o esquecido. Então, devo ser lembrado."
O ar vibrou com essa frase. As três figuras deram um passo à frente, alinhando-se. Uma onda de lembranças atingiu Jasper — cenas borradas de dor, vitória, perda. E, entre elas, a imagem viva de Peter, forte e dolorosa, irrompeu como uma ferida aberta.
"Peter...", disse ele, o nome como um sopro, como um grito abafado pela névoa. A dor da ausência reacendeu, mas algo mudou. Jasper não queria mais fugir daquilo.
"Eu aceito o que sou. Se sou vocês, então sou todos. E aceito isso."
Com as palavras, ele ergueu a cabeça. Visualizou a lança em sua mão, a foice em suas costas, a espada à cintura. Seus passos ficaram firmes. Não eram armas externas. Eram extensões dele.
Ele respirou fundo. O medo não desapareceu, mas foi engolido por algo maior: convicção.
"Eu sou você, e você é eu."
E, com isso, Jasper avançou — não contra as sombras, mas em direção a elas. Pronto para encarar o destino não como um escolhido, mas como alguém que, finalmente, havia escolhido a si mesmo.
O Caminho do Destino
Os ecos dos passos de Jasper e Aykos soavam abafados no corredor de mármore negro, como se o tempo ali caminhasse com mais cautela. Tapeçarias antigas narravam glórias esquecidas e quedas silenciadas, e cada fio parecia sussurrar o peso de séculos sobre os ombros de Jasper. Ainda assim, havia algo novo naquela travessia — uma sensação de ruptura, como se ele próprio fosse a rachadura numa história escrita por outros.
Jasper sabia o que carregava em suas veias. Sabia o que isso significava para os olhos dos succubus: “impureza”. A palavra de Aykos ecoava em sua mente como um selo — seco, cruel, mas verdadeiro:
“Você é menos. Não por sua capacidade, mas pelo sangue que corre em suas veias.”
Ele não revidou. Nem negou. Pela primeira vez, apenas escutou. E decidiu que não carregaria mais a expectativa de ser aceito. Se Magda quisesse reinar, ele a ergueria. Se sua missão fosse proteger em vez de comandar, que fosse. O que importava era a escolha — dele.
Diante da porta de ferro, selada com runas pulsantes, Aykos parou. Seu olhar era impassível, mas sua voz soou mais grave, quase respeitosa:
— O que quer que encontre aqui não mudará quem é. Mas talvez revele aquilo que ainda não sabe ser. Mesmo sem a linhagem pura… carrega essência divina. E isso... pode ser bênção. Ou maldição.
Jasper assentiu, sem palavras. Não precisava mais delas. A porta se abriu com um som profundo, revelando o cofre ancestral. Um salão escuro, silencioso, onde relíquias repousavam como vestígios de guerras antigas e pactos quebrados. No centro, sobre um pano de veludo, uma pequena caixa dourada esperava por ele.
Ele deu um passo à frente, mas parou ao sentir uma presença. Quando se virou, Anna estava lá — firme, serena, como se sempre tivesse feito parte daquele caminho.
— Achei que poderia precisar de mim — ela disse, e sua voz era quase um alívio.
Jasper suspirou. — Sempre preciso.
Anna se aproximou devagar. — Isso aqui… é mais do que parece, não é?
Ele olhou a caixa. — É um convite. Ou uma sentença.
Anna sorriu com doçura. — Talvez um começo.
Jasper hesitou, mas, quando ela estendeu a mão, ele a segurou — não por dúvida, mas por confiança. Juntos, abriram a caixa. Dentro, um cristal simples, pulsando com uma luz morna, como um coração prestes a despertar.
O tempo pareceu parar.
Ao tocar o cristal, imagens explodiram diante de seus olhos. Possibilidades. Futuros. Cicatrizes ainda por acontecer.
Ele se viu lutando — ao lado de Anna, de Peter, de Magda. Em algumas visões, vencia. Em outras, caía. Mas em todas, ele era alguém que escolheu lutar.
Quando a luz começou a diminuir, Jasper voltou os olhos para Anna. — Seja o que for que venha... estou pronto.
Ela assentiu, firme. — Estamos.
O cristal brilhou uma última vez, preenchendo o cofre com uma luz serena. E Jasper, pela primeira vez, não pensava mais no que perdeu.
Pensava no que viria.
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