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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro Capítulo II

O Cão Negro aparece e some-se

Pouco tempo se passou antes que ocorresse o primeiro dos acontecimentos misteriosos que por fim nos livraram do capitão, embora, como se verá, não dos assuntos que a ele estavam ligados. Foi um Inverno gelado, com geadas duras, prolongadas e fortes temporais; e logo de princípio se tornou claro que era pouco provável o meu pobre pai chegar a ver a Primavera. Definhava de dia para dia, e a minha mãe e eu tínhamos de tratar de toda a hospedaria, ocupados a ponto de não dar muita atenção ao nosso hóspede antipático. 

Sucedeu em Janeiro, de manhãzinha – numa gélida e cortante manhã –, com a enseada toda grisalha de geada, a ressaca a lamber de leve as rochas e o Sol, ainda baixo, a aflorar o topo dos montes e a brilhar lá longe no mar. O capitão tinha-se levantado mais cedo que o costume e descera para a praia, com o sabre a bailar debaixo das abas do velho casaco azul e o óculo de latão no braço, o chapéu tombado para trás. 

Lembro-me de lhe ver a respiração suspensa como fumo atrás dele enquanto se afastava, e a última coisa que lhe ouvi, ao passar pelo penedo grande, foi um alto brado de indignação, como se em espírito ainda altercasse com o doutor Livesey. 

A mãe estava lá em cima com o pai, e eu a pôr a mesa para servir o pequeno-almoço quando o capitão voltasse, quando a porta da sala se abriu e entrou um homem em quem nunca tinha posto os olhos. Era uma pessoa pálida e ensebada, sem dois dedos da mão esquerda; e embora usasse sabre, não tinha nada ar de guerreiro. Eu, que continuava de olhos abertos para tudo o que fosse gente do mar, com uma perna ou com duas, lembro-me que aquele me atrapalhou. Não lembrava um marinheiro, e mesmo assim também não deixava de ter algo que fazia pensar no mar. Perguntei em que podia servi-lo e respondeu que queria rum, mas, quando eu ia a sair para lho trazer, encostou-se a uma mesa e fez-me sinal para me aproximar. Fiquei onde estava, de guardanapo na mão. 

– Anda cá, filho – disse. – Chega-te mais para cá. 

Avancei um passo. 

– Esta mesa aqui é para o meu camarada Bill? – perguntou, com olhar matreiro. Disse-lhe que não conhecia o camarada Bill e que a mesa era para uma pessoa ali hospedada a quem chamávamos capitão. 

– Bem – retorquiu –, o meu camarada Bill bem pode ser capitão, é mesmo dele. Tem um corte na cara, e é um sujeito bem divertido, principalmente na bebida. Então te digo, como prova, que o teu capitão tem um golpe na face – e mais te declaro, se quiseres, que é na face direita. E pronto! Já te disse. Agora, está aqui na casa o meu camarada Bill? 

Disse-lhe que tinha saído. 

– Para que lado, filho? Para que lado foi ele? Depois de eu ter apontado para o rochedo e dito como e quando o capitão devia voltar, e respondido a várias outras perguntas, ele terminou: 

– Ah, esta vai-lhe saber tão bem como uns copos, ao meu camarada Bill. 

A sua expressão ao dizer estas palavras não era nada simpática, e tinha as minhas razões para crer que o estranho se enganava, mesmo partindo do princípio de que estava a ser sincero. Mas pensei que aquilo não me dizia respeito; além do mais, era difícil saber o que havia de fazer. O estranho deixou-se ficar ali dentro sem se afastar da porta, a espreitar para a esquina como um gato à espera do rato. Quando de uma vez saí para a rua, logo me chamou. e, como não obedecesse logo ao seu desejo, uma mudança horrível se lhe espalhou na cara de sebo e mandou me entrar com uma praga que me fez saltar. 

Logo que entrei voltou aos bons modos anteriores, meio cativante, meio trocista, fez-me uma festa no ombro, chamou-me bom rapaz e disse que tinha grande simpatia por mim. – Tenho um rapaz também – disse –, igualzinho a ti, que é todo o meu orgulho. Mas para os rapazes o mais importante é a disciplina, filho, a disciplina. Olha que se já tivesses andado no mar com o Bill, não tinhas ficado lá fora à espera que te chamassem duas vezes, nem pensar. O Bill nunca se portou assim, nem os que embarcavam com ele. E lá vem ele, de certeza, o meu companheiro Bill, com o óculo debaixo do braço, benza-o Deus, é mesmo ele. Anda comigo para a sala, filho, vamos ficar atrás da porta e fazer-lhe uma surpresa, e torno a dizer: abençoado seja. 

Assim falando, o estranho puxou-me com ele para a sala e pôs-me atrás dele no canto, de modo a ficarmos escondidos pela porta aberta. 

Fiquei atrapalhado e assustado, como podeis calcular, e os meus receios aumentaram ao perceber que o forasteiro também não estava nada à vontade. Aprontou o punho do sabre e desprendeu a lâmina da bainha, e durante todo o tempo que ali esperamos não deixou de engolir em seco, como se quisesse o que a gente costumava chamar puxar por um nó na garganta. 

Por fim entrou o capitão, bateu com a porta sem olhar para os lados e atravessou a sala em direção ao pequeno-almoço. 

– Bill – chamou o estranho, com uma voz que, pensei, tentava soar forte e ousada. 

O capitão girou meia volta e enfrentou-nos; toda a cor morena lhe tinha fugido da cara, e até o nariz ficou azul; tinha o ar dum homem que vê um fantasma, ou o Anjo do Mal, ou algo pior ainda, se houver; e, pela fé de quem sou, tive pena de o ver, num curto instante, ficar tão velho e agoniado. 

– Vamos, Bill, bem me conheces; decerto que te lembras dum velho camarada, Bill. 

O capitão soltou uma espécie de suspiro estrangulado. 

– Cão Negro! – exclamou. 

– Quem havia de ser? – retorquiu o outro, mostrando-se mais à vontade. – O mesmo Cão Negro de sempre, para visitar o velho companheiro Bill na Hospedaria “Almirante Benbow”. Ah, Bill, Bill, muitas voltas deu o mundo para nós dois desde que perdi estas duas garras – disse, exibindo a mão mutilada. 

– Ouve cá – disse o capitão –, apanhaste-me, aqui me tens; pois então, fala, que se passa? 

– És mesmo tu, Bill – tornou o Cão Negro –, acertas sempre. Vou tomar um copo de rum, trazido por este bom menino de quem gosto tanto, e vamo-nos sentar, se fazes favor, e conversar como deve ser, como companheiros de bordo que fomos. 

Quando voltei com o rum já estavam sentados de cada lado da mesa – o Cão Negro junto da porta e sentado de lado, de modo a ter um olho no capitão e o outro, segundo pensei, na retirada. Mandou-me embora e disse-me para deixar a porta bem aberta. 

– Nada de espreitar às fechaduras, filho – declarou, e lá os deixei juntos, retirando-me para a taberna. 

Durante muito tempo, embora tentasse escutar, só consegui ouvir uns murmúrios; mas por fim as vozes começaram a subir de tom e pude apanhar uma ou outra palavra, a maior parte pragas do capitão. 

– Não, não, não e não; e é acabar com tudo! – gritou uma vez. E outra: – Se tocar a pendurar, que se pendurem todos, digo eu. 

A seguir, e de chofre, houve uma grande barulheira de pragas e outros sons; a cadeira e a mesa tombaram juntas, seguiu-se o choque de aço contra aço, depois um grito de dor e no momento imediato avistei o Cão Negro em fuga precipitada com o capitão na peugada, ambos de sabre desembainhado, o primeiro a jorrar sangue do ombro esquerdo. Mesmo ao chegar à porta o capitão apontou-lhe um último e violento golpe, muito capaz de o abrir até à espinha se não tivesse sido parado pela nossa grande tabuleta da “Almirante Benbow”. Ainda hoje se pode ver a marca na parte inferior do caixilho. 

A batalha terminou com aquele golpe. Apanhando-se na estrada, o Cão Negro, apesar da ferida, mostrou um par de calcanhares bem lestos e levou meio minuto para desaparecer por cima do monte. Pela sua parte, o capitão ficou especado a mirar a tabuleta com assombro. Depois de esfregar os olhos várias vezes com a mão, voltou enfim para dentro. 

– Jim – disse –, rum. – Ao falar cambaleou um pouco e segurou-se à parede com a mão. 

– Está ferido? – gemi. 

– Rum – repetiu. – Tenho de me ir embora daqui. Rum! Rum! 

Corri, mas estava transtornado por tudo o que sucedera, parti um copo e encravei a torneira do pipo, e enquanto ainda não tinha saído daquela atrapalhação ouvi na sala uma queda violenta, voltei a correr e dei com o capitão estendido ao comprido no chão. Nesse instante, a minha mãe, assustada com os gritos e a luta, descia a correr as escadas para me ajudar. 

Um de cada lado, levantamos-lhe a cabeça. Respirava com ruído e dificuldade, mas com os olhos fechados e uma cor medonha na cara. 

– Ai de mim, ai de mim! – choramingou a minha mãe. – Que desgraça em casa! E o pobre do pai doente! 

Não fazíamos ideia do que era preciso fazer para socorrer o capitão, e só pensávamos que fora ferido de morte no combate com o estranho. O certo é que peguei no rum e tentei fazê-lo beber, mas tinha os dentes e os queixos cerrados como ferro. 

Foi com grande alívio que vimos a porta abrir-se para dar entrada ao doutor Livesey, que viera ver o meu pai. 

– Oh, doutor – gememos –, que temos de fazer? Onde é que ele está ferido? 

– Ferido? Mas que disparate! – atalhou o médico. – Está tanto como vocês ou eu. O que ele teve foi um ataque, como eu o avisei. Olhe, senhora Hawkins, agora vá para o pé do seu marido e se puder não lhe conte nada. Por mim vou tentar salvar a fraca vida deste sujeito que nada vale; e tu traz-me uma bacia, Jim. 

Quando voltei com a bacia, o médico já tinha rasgado a manga do capitão de forma a expor o braço grande e musculoso. Tinha tatuagens em vários pontos. “Boa Fortuna, Bons Ventos e Ao Gosto de Billy Bones”, estavam muito bem marcadas com clareza no antebraço; e junto ao ombro tinha o desenho duma forca com um enforcado, que me pareceu feito com grande engenho. 

– Profético – afirmou o médico, tocando nesta figura com o dedo. – E agora, Mestre Billy Bones, se é esse o teu nome, vamos ver a cor do teu sangue. Jim, tens medo do sangue? 

– Não, senhor. 

– Então segura aqui na bacia – e dito isto pegou na lanceta e abriu uma veia. Muito sangue foi tirado até o capitão acordar e virar para nós o olhar embaciado. Em primeiro lugar reconheceu o médico com um franzir eloquente; depois virou-se para mim e pareceu aliviado. Mas de repente mudou de cor e tentou erguer-se, exclamando: 

– Que é feito do Cão Negro? 

– Aqui não há nenhum cão preto – disse o médico –, exceto o que você já carrega em cima de si. Você continuou a beber rum; teve um ataque, precisamente como lhe disse; e agora mesmo, muito contra a minha vontade, o arranquei da cova pelos cabelos. Ora, senhor Bones... 

– Não é o meu nome – interrompeu. 

– Bem me importa – ripostou o médico. – É o nome dum pirata que conheço, e dou-lho a si porque não estou para perder tempo, e digo-lhe o seguinte: um copo de rum não o vai matar, mas quando toma um você continua sem parar, e aposto a minha cabeleira que, se não pára já, morre; entende o que lhe digo? Morre, e vai para onde é o seu lugar, como diz a Bíblia. Vamos, agora faça um esforço. Ao menos por esta vez vou ajudá-lo até à cama. 

Um de cada lado, com muito esforço, lá conseguimos guindá-lo escada acima e deitá-lo na cama, onde a cabeça lhe tombou na travesseira como se estivesse a ponto de desmaiar. 

– Agora atenção – preveniu o médico –, fico com a consciência limpa... para si o rum é igual à morte. 

E com estas palavras saiu do quarto para ir ver o meu pai, levando-me pelo braço. 

Logo que fechou a porta, virou-se para mim: 

– Aquilo não é nada. Tirei-lhe sangue bastante para o deixar em sossego por algum tempo; deve ficar de cama por uma semana, é o melhor para ele e para vocês, mas outro ataque vai liquidá-lo.


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