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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO XXIII

A maré desce

O coracle – como já calculara – era um caiaque muito seguro para uma pessoa do meu tamanho e peso, ao mesmo tempo leve e bem equilibrado na água mas, por outro lado, o mais caprichoso e imprevisível barco que se podia ter na mão. Fizesse o que fizesse, virava constantemente de bordo, e a sua manobra preferida era pôr-se às reviravoltas. Até o próprio Ben Gunn concordava que o bote tinha um feitio esquisito até a gente lhe apanhar o jeito.
O certo é que não havia meio de lhe acertar com o tal feitio. Virava-se para todos os lados menos para onde eu queria ir, fui navegando quase sempre de borda ao mar, e tenho a certeza que nunca teria chegado ao navio se não fosse a maré. Por mais que remasse, tive a sorte de continuar a ser arrastado por ela, e como o Hispaniola lá estava mesmo no meu caminho, nem 
podia falhar.
Ergueu-se primeiro à minha frente como uma mancha ainda mais negra do que a escuridão, a seguir começaram a tomar forma a mastreação e o casco e, no que me pareceu um curto momento (pois quanto mais avançava mais forte era a corrente da água), cheguei à amarra e deitei-lhe a mão.
O cabo estava esticado como a corda dum arco, tal era a força que fazia na âncora. Em redor do casco, no negrume, a correnteza borbulhava e cantava como uma cascata. Um golpe da minha navalha, e o Hispaniola vogaria ao sabor da maré. Tudo bem até aí, mas a seguir lembrei- me que um cabo esticado, cortado de repente, é tão perigoso como um coice de cavalo. Era mais que certo que, se me aventurasse a cortar a amarra da âncora, tanto eu como o caiaque íamos ser varridos do mar para fora.
Fiquei parado e, se a sorte não estivesse uma vez mais a meu favor, acabaria por ter de abandonar o plano. Mas o vento ligeiro que a princípio soprara de sudeste e sul rondara para sudoeste depois de anoitecer. Na própria altura em que assim meditava, a brisa apanhou o Hispaniola e impeliu o navio contra a corrente, com grande contentamento senti o cabo afrouxar- me na mão, que por instantes me ficou debaixo de água.
Decidindo-me, tirei a navalha, abri-a com os dentes e fui cortando as cordas uma a uma, até o cabo ficar feito em dois. Depois parei, aguardando a ocasião de os cortar logo que a força do navio fosse de novo aliviada por um sopro de vento. Tinha estado sempre a ouvir vozes altas vindas do camarote mas, para falar verdade, tinha a cabeça tão cheia de outros pensamentos que mal lhes dera ouvidos. Mas agora, sem mais nada em que me ocupar, comecei a prestar mais atenção. Reconheci uma delas como a do timoneiro Israel Hands, que fora outrora artilheiro de Flint. A outra era, com toda a evidência, do meu amigo do barrete vermelho. Iam ambos no pior da bebedeira, e continuavam a beber pois, ainda enquanto me esforçava por ouvi-los, um deles abriu a escotilha da ré, com uma praga, para atirar fora qualquer coisa que adivinhei ser uma garrafa vazia. Mas não estavam só tocados, não havia dúvida que estavam no auge da fúria. Soltavam uma saraivada de pragas, e de cada vez que a irritação explodia mais eu ficava com a certeza que aquilo ia acabar à pancada. Mas a discussão voltava a dissipar-se e as vozes resmungavam em tom mais baixo por algum tempo até chegar nova crise que, por sua vez, se extinguia sem consequências.
Podia avistar na praia o clarão da grande fogueira a arder por detrás das árvores. Alguém cantava um velho e monótono lamento do mar, com uma pausa soluçada no fim de cada verso, cujo fim parecia depender só da paciência do cantador. Mais de uma vez a tinha ouvido em viagem e lembrava-me dos versos:
“No mar só um escapou com vida, Dos setenta e cinco da partida.”
E pensei que aquilo era um pouco duro demais, mesmo a condizer com o grupo que pela manhã sofrera perdas tão violentas. Mas na verdade, pelo que via, todos aqueles piratas eram tão insensíveis como o mar por onde andavam.
Por fim, veio a brisa, a escuna guinou e aproximou-se no escuro, senti o cabo aliviar outra vez, e empreguei todas as forças a cortar o que restava das fibras.
A brisa não tinha grande efeito no coracle, e quase instantaneamente fui arrastado de encontro ao Hispaniola. Ao mesmo tempo, a escuna principiou a inclinar-se, rodando lentamente, atravessada na corrente.
Lutei como um desesperado, pois esperava ir ao charco a cada instante, vendo que não podia afastar o caiaque do casco do navio, esforcei-me por arrastá-lo para a ré.
Acabei por me libertar do perigo tão próximo, dava ainda o último puxão quando toquei num estai pendurado na borda da amura de popa. Agarrei-me logo a ele. Nem sei bem porque fiz aquilo. Ao princípio foi puro instinto, mas ao agarrar a corda, encontrando-a firme, a curiosidade
 
acabou por prevalecer e decidi que tinha de espreitar pela escotilha do camarote.
Icei-me mão após mão pelo cabo acima e, quando achei que já estava perto, elevei-me mais um pouco com enorme risco, até avistar o teto e uma parte do interior do camarote. Entretanto, a escuna e o minúsculo bote deslizavam com rapidez pela água, a ponto de já irmos a passar em frente à fogueira do acampamento. O navio falava, como dizem os marinheiros, em voz alta, rompendo as pequenas ondas com o marulho incessante dos redemoinhos; até os olhos me chegarem ao peitoril, não podia entender como era que os homens de guarda ainda não tinham mostrado alarme. Contudo, um só olhar bastou, e não podia arriscar-me a olhar mais que uma vez em cima daquele madeiro nada firme. Topei com o Hands e o companheiro abraçados numa luta de morte, cada um com uma das mãos no pescoço do outro.
Deixei-me cair, e mesmo a tempo, pois estive prestes a dar um mergulho. Por momentos só continuava a ver aquelas duas caras raivosas e purpúreas a balançar juntas debaixo do candeeiro fumarento, e fechei os olhos para os habituar de novo ao escuro.
A cantiga sem fim acabara por parar, e toda a companha que restava à roda da fogueira entoava o coro tantas vezes ouvido:
“Quinze homens na arca do morto Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum! O resto levou-os o vinho e o diabo Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!”
Pensava em como nessa altura o álcool e o diabo estavam tão ocupados no camarote do Hispaniola, quando um brusco safanão do coracle me apanhou de surpresa. Ao mesmo tempo, baloiçou com força e pareceu-me mudar de bordo. Por seu lado, a velocidade aumentara de modo estranho.
Abri logo os olhos. Em toda a volta havia pequenos redemoinhos que avançavam para mim com um som áspero, e tinham uma leve fosforescência. O próprio Hispaniola, cuja esteira ainda me arrastava a poucos metros de distância, pareceu cambalear no seu rumo, e vi a mastreação inclinar-se um pouco contra o negrume da noite; prestando mais atenção, fiquei certo de que o barco estava a garrar para sul.
Olhei de esguelha e o coração martelou-me as costelas. Além, bem para trás, ia o clarão do fogo do acampamento. A corrente dobrara em ângulo reto, levando consigo a escuna e o pequeno coracle, que bailava; cada vez mais rápida, mais agitada, cada vez mais barulhenta, enrolava-se pelos canais a caminho do mar alto.
O navio, à minha frente, fez de repente um bordo violento, virando-se talvez uns vinte graus, e quase no mesmo instante ouvi dois gritos seguidos. Depois os passos em corrida pela escada da camarata, e fiquei a saber que os dois bêbedos tinham enfim interrompido a briga para se darem conta do desastre em que estavam metidos.
Estendi-me ao comprido no fundo daquele malvado caixão e recomendei com fervor a alma ao Criador. Tive a certeza de que para lá dos estreitos havíamos de cair numa barreira qualquer de vagalhões raivosos, onde todos os problemas não tardariam a cessar, e embora talvez pudesse suportar a ideia de morrer, não conseguia suportar a visão do destino que vinha ao meu encontro.
Assim devo ter ficado durante horas, sempre a ser sacudido em vaivém pelas vagas, a cada passo molhado por borrifos e sem deixar de aguardar a morte sob a onda seguinte. Fui ficando gradualmente entontecido, uma sonolência, por vezes um entorpecimento, apoderava-se de mim apesar de estar cheio de medo, até que por fim sobreveio o sono e, estendido no meu caiaque rolado pelo mar, sonhei com a minha terra e com a velha Almirante Benbow.

 

2 Termo do País de Gales: barco usado pelos pescadores galeses, de couro ou oleado esticado sobre uma armação de verga (Samuel Johnson, Um Dicionário da Língua Inglesa, Londres, 1829). (N. do T.)


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