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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO X

A viagem

Toda a noite durou a azáfama para deixar tudo bem arrumado e estivado, enquanto carradas de amigos do morgado, o senhor Blandly e outros vinham ao largo para nos desejarem os votos de boa viagem e feliz regresso. Nunca na Almirante Benbow, quando era eu a fazer metade do serviço, tínhamos passado uma noite semelhante, e estava completamente estafado quando, pouco antes do amanhecer, o contramestre apitou e o pessoal começou a manobrar as barras do cabrestante. Mas mesmo que o meu cansaço fosse a dobrar não seria capaz de sair do convés, onde tudo para mim tinha novidade e interesse, as ordens secas, as notas agudas do apito, os homens afadigados nos seus postos, ao clarão das lanternas de bordo.
–    Anda lá, ó Churrasco, dá-nos a deixa – gritou uma vez.
–    A de antigamente – exclamou outra.
–    Muito bem, malta – disse o Long John, que observava apoiado à muleta, e logo entoou aquela música e letra que eu conhecia tão bem:
“Quinze homens na arca do morto”...
E toda a equipagem lhe respondeu em coro:
“Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!”
E ao terceiro ou puxaram as barras à frente num impulso coletivo.
Até naquele instante de excitação tudo me fez recuar num segundo à velha Almirante Benbow, como se ouvisse a voz estridente do capitão juntar-se ao coro. Mas logo a âncora foi suspensa e ficou fixa à vante, a gotejar, logo as velas principiaram a puxar-nos, a terra e os navios a deslizar de ambos os lados e, antes que pudesse estender-me para arrancar uma hora de sono, o Hispaniola tinha começado a viagem à Ilha do Tesouro.
Não vou narrar a viagem em pormenor. Tudo correu bem. O navio provou ser excelente, a tripulação capaz e o comandante perfeitamente ciente das suas funções. Mas antes de chegarmos à Ilha do Tesouro ocorreram duas ou três coisas que merecem ser contadas.
Em primeiro lugar, o senhor Arrow revelou ser ainda pior do que o capitão tinha receado. Não tinha autoridade sobre os homens, e as pessoas faziam dele o que lhes apetecia. Mas isso não era o pior, porque logo no começo da viagem começou a aparecer no convés com olhos turvos, face vermelha, voz entaramelada e outros sinais de embriaguez. Repetidas vezes foi repreendido e mandado recolher, outras, caiu e arranhou-se. Umas vezes ficava todo o dia estendido no pequeno catre num lado da camarata, outras conseguia estar quase sóbrio por um ou dois dias e
 
fazia o serviço menos mal.
Entretanto não fazíamos ideia onde ele arranjava a bebida. Era o mistério do barco. Por muito que o vigiássemos, nada podíamos descobrir e, quando lho perguntavam cara a cara, se estivesse bêbedo só se ria mas, quando estava sóbrio, negava solenemente tomar fosse o que fosse a não ser água.
Não era um inútil só como oficial, com a má influência que isso tinha nos homens, como também era bastante claro que daquele modo acabaria de certeza por se matar, de maneira que não foi grande surpresa para ninguém, nem sequer desgosto, quando uma noite escura, com o mar encapelado, desapareceu de vez para não mais ser visto.
–    Foi pela borda fora! – observou o comandante. – Bem, senhores, isso poupa o trabalho de o pôr a ferros.
Mas assim seguíamos sem um primeiro oficial, e era preciso, evidentemente, promover um dos homens. O candidato mais indicado era o contramestre Job Anderson que, embora conservando o posto anterior, passou a servir de imediato. O senhor Trelawney, que já tinha experiência do mar, provou a utilidade dos seus conhecimentos, pois também serviu muitas vezes em quartos de vigia com bom tempo. E o timoneiro Israel Hands era um velho e bem treinado marinheiro, cuidadoso e hábil, em quem se podia confiar para quase todos os problemas.
Era um homem de grande confiança do Long John Silver, e mencionar o seu nome leva- me a falar de novo do cozinheiro de bordo, o “Churrasco”, como os outros o tratavam. A bordo trazia a muleta segura por um pedaço de escota ao pescoço, para ter as mãos o mais livres possível. Era digno vê-lo encaixar a ponta da muleta num tabique e, apoiado nela, acompanhando todos os movimentos do navio, prosseguir nos seus cozinhados com a segurança de qualquer pessoa em terra. E ainda mais curioso era vê-lo atravessar o convés com mau tempo. Tinha mandado esticar um cabo ou dois para o ajudar a atravessar os pontos mais largos – chamavam- lhes os brincos do Long John – e deslocava-se de um para outro lugar, ora empregando a muleta, ora levando-a de rastos pelo cordão ao pescoço, tão rápido como qualquer outro que pudesse caminhar. Mesmo assim, alguns dos que antes tinham viajado com ele lamentavam vê-lo tão diminuído.
–    Não tem nada de vulgar, esse Churrasco, – dizia-me o timoneiro. – Teve boa educação quando era novo, e é capaz de falar como um livro se lhe apetecer, e duma coragem... um leão à beira do Long John não é nada! Já o vi agarrar quatro duma vez e dar-lhes cabo das cabeças, e desarmado.
Toda a equipagem o respeitava e até lhe obedecia. Tinha uma capacidade de comunicar com qualquer um e de prestar a todos pequenas atenções. Para mim era duma amabilidade incomparável, e sempre satisfeito de me ver na cozinha, que mantinha limpa como nova, os pratos rebrilhavam alinhados – ao alto e, ao canto, o papagaio numa gaiola.
–    Anda daí, Hawkins – dizia –, anda cá conversar com o John. Ninguém é mais bem- vindo que tu, meu rapaz. Senta-te aí e ouve as notícias. Cá está o Capitão Flint, trato o papagaio por Capitão Flint, nome do pirata célebre, cá está o Capitão Flint a predizer bom sucesso para a viagem. Não estavas, capitão?
E o papagaio respondia, com grande rapidez: – Peças de oito! Peças de oito! Peças de oito! – até dar a impressão que ia perder o fôlego ou até o John cobrir a gaiola com o lenço.
–    Ora, esse passarão – continuava – talvez tenha duzentos anos, Hawkins... em geral nunca morrem, e só o diabo em pessoa deve ter visto tanta maldade junta. Este andou a bordo com England, o grande capitão pirata England. Foi a Madagascar, ao Malabar, ao Suriname, a Providence, a Portobello. Esteve na recuperação das cargas de prata naufragadas. Foi lá que aprendeu a dizer Peças de oito”, e não admira, eram trezentas e cinquenta mil, Hawkins! Esteve na abordagem do barco Vice-rei das Índias, ao largo de Goa, lá isso esteve, e ao olhares para ele ainda te parece criança. Mas tu cheiraste a pólvora, não cheiraste, capitão?
–    A postos para largar – guinchava o papagaio.
–    Ah, lá jeitoso é ele – dizia o cozinheiro, dando-lhe do bolso um torrão de açúcar,
 
enquanto o papagaio debicava as grades com uma série de pragas, numa imitação de malvadez.
–    Ora aí tens – acrescentava o John –, a gente não pode mexer no peixe sem se sujar, rapaz. Aqui está este meu velho pássaro inocente a queimar uns palavrões, e podes ter a certeza que nem sabe o que diz. Por assim dizer, era capaz de dizer o mesmo ao padre – e levava os dedos à pluma do chapéu com tal solenidade que me fazia pensar ser a melhor das criaturas.
Entretanto, o morgado e o capitão Smollett ainda se mantinham muitíssimo distantes um do outro. O morgado não disfarçava nada, desprezava o capitão. Este, por sua vez, só falava quando se lhe dirigiam e era sempre exato, breve e seco, de um laconismo bem medido. Convencido por falta de argumentos, admitia que talvez se tivesse enganado quanto à tripulação, que alguns dos homens eram tão aptos quanto podia desejar, e que era bom o comportamento de todos. Quanto ao navio, tinha-se-lhe afeiçoado por completo.
–    O barco responde ao vento ainda melhor do que um homem pode exigir da própria mulher, senhor. Mas – acrescentava – só tenho a dizer que ainda não estamos de volta e que a viagem não me agrada.
Ao ouvir isto, o morgado virava costas e punha-se a percorrer o convés, de nariz levantado.
–    Mais uma palavra dele – afirmava –, e vou rebentar.
Tivemos algumas borrascas, que apenas serviram para comprovar as excelentes qualidades do Hispaniola. Todos pareciam bastante satisfeitos, e caso contrário seria gente impossível de contentar, pois creio bem que nunca se vira uma companhia tão paparicada desde que Noé se fizera ao mar. A dose dupla de grogue era distribuída ao menor dos pretextos, em dias especiais havia doce, como por exemplo sempre que o morgado soubesse que alguém fazia anos, e um barril de maçãs ficava sempre aberto de fresco a meia-nau, para quem quisesse servir- se.
–    Que eu saiba isto nunca deu bom resultado – observava o capitão ao doutor Livesey. – Estragar os homens com mimo faz deles diabos. É o que penso.
Mas algum bem veio ao mundo pelo barril de maçãs, como vão saber, pois se não fosse isso não chegaríamos a apercebermo-nos do perigo e podíamos ter todos morrido à traição.
Passo a contar o sucedido.
Tínhamos apanhado os ventos alísios para colocar a brisa a nosso favor na demanda da ilha – não me é permitido ser mais claro –, e para lá vogávamos com vigia constante dia e noite, em boa velocidade.
Pelos cálculos mais largos, devíamos estar cerca do último dia da viagem de ida. A qualquer altura da noite ou, o mais tardar, antes do meio-dia seguinte, devíamos avistar a Ilha do Tesouro. Seguíamos para sul-sudoeste, firmes no curso da brisa e com mar calmo. O Hispaniola, em balanço regular, banhava a cada passo o pau da proa numa cabeleira de espuma. De baixo até acima, todo o pano puxava, era geral a melhor das disposições, pois chegava ao termo a primeira parte da nossa aventura.
Foi logo a seguir ao sol-posto, quando tinha terminado o meu serviço e me preparava para deitar, que me apeteceu comer uma maçã. Saltei ao convés. O vigia estava todo à vante à espera de ver a ilha. O da ré ocupava-se em manter o pano no curso da brisa e assobiava para si próprio, o que era o único som além do marulho das ondas em redor do barco.
Trepei para dentro do barril, para descobrir que estava quase completamente vazio. No entanto, sentado ali na escuridão e com o som do mar a juntar-se ao baloiçar do navio, teria dormitado, ou estava a ponto disso, quando um homem se sentou com estrondo, mesmo encostado ao barril. Este estremeceu com o encontrão, e ia eu a saltar lá de dentro quando o homem começou a falar. Era a voz do Silver e, mal teria dito uma curta dúzia de palavras, já eu tinha decidido não me mostrar por nada deste mundo, mas antes quedar-me ali, a tremer e à escuta, no limite do medo e da curiosidade, pois aquela dúzia de palavras dera-me a entender que as vidas de toda a gente séria que havia a bordo só de mim dependiam.


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