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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro Sexta Parte: O capitão Silver

CAPÍTULO XXVIII: No acampamento inimigo

A chama vermelha da tocha mostrou-me, ao iluminar o interior da casamata, consumada a pior das minhas apreensões. Os piratas haviam tomado a casa e as provisões como antes, lá estava um barril de conhaque, lá estava a carne e o pão e, a multiplicar por dez o meu terror, nem sombra de prisioneiros.
Pensei que tivessem morrido todos, e o coração acusou-me amargamente de não ter lá ficado para morrer com eles. Eram ao todo seis piratas, não ficara mais ninguém com vida. Cinco tinham-se posto de pé, corados e inchados, arrancados de súbito ao primeiro sono da bebedeira. O sexto erguera-se apenas no cotovelo, estava pálido de morte, e a ligadura ensanguentada em volta da cabeça dizia que o ferimento era recente e o tratamento ainda mais recente. Lembrei-me do tiro dado ao homem que fugira para o bosque durante o assalto, e fiquei certo que era ele.
O papagaio estava empoleirado, a alisar as penas, no ombro do Long John. Também ele, pensei, parecia mais pálido e tenso do que o habitual. Ainda trazia vestido o fardamento que pusera para a sua embaixada, mas estava em muito pior estado, coçado, manchado de barro e rasgado pelos ramos aguçados da floresta.
–    Então – disse –, cá temos o Jim Hawkins, que as pranchas me rebentem! Vieste fazer uma visitinha, é? Está bem, recebo-te como amigo.
E sentou-se no barril de brandy, começando a encher o cachimbo.
–    Dá-me cá lume, Dick –, continuou, a seguir, com o tabaco bem aceso. – Tá bem, rapaz
–    acrescentou –, mete o archote na pilha da lenha, e os senhores cheguem-se para cá! Não precisam de ficar de pé por causa do senhor Hawkins, ele dá licença, garanto-lhes. E então, Jim – calcando o tabaco –, cá estás tu, e que surpresa agradável para o velho John. Já sabia que eras esperto desde a primeira vez que te vi, mas isto passa das minhas marcas, passa.
Como é natural, não dei resposta a tudo aquilo. Tinham-me feito encostar à parede, e ali fiquei a encarar o Silver, esperando aparentar à vontade, mas com o coração negro de desespero.
–    Ora bem, Jim, já que estás aqui – declarou –, vou desabafar contigo. Sempre gostei de ti, sempre, por seres um moço valente, e teres a mesma figura que eu tinha quando era novo e jeitoso. Sempre quis que viesses ter comigo e que recebesses a tua parte, para morrer como um fidalgo, e agora, meu franganote, chegaste. O capitão Smollett é um ótimo oficial, como nunca deixei de reconhecer, mas rijo na disciplina. O dever é o dever, diz ele, e tem razão. É melhor não te aproximares dele. O próprio doutor anda morto por te deitar a mão, o malvado ingrato foi o que ele disse, e toda esta história se resume nisto: não podes voltar para a tua gente, porque eles não te querem e, se por ti mesmo não arranjas uma terceira companha de bordo, até para não ficares sozinho, tens mas é de te juntar ao capitão Silver.
Até ali não havia novidade. Os meus amigos estavam então ainda vivos e, embora acreditasse em parte na história do Silver, de que o grupo do camarote andava irritado com a minha fuga, senti-me mais aliviado do que preocupado com o que tinha ouvido.
–    Não tenho nada a dizer a tu estares entregue nas nossas mãos – prosseguiu o Silver–,
 
embora estejas, garanto-te. Sou todo a favor da discussão, as ameaças nunca dão bom resultado, que eu saiba. Se te agrada o serviço, pois, juntas-te a nós, e se não te agrada, Jim, ora tens toda a liberdade de responder que não, és livre e bem-vindo, patrício, e não há marinheiro neste mundo capaz de ser mais leal que isto, ou arrombem-me os costados!
–    Então tenho de responder? – perguntei, com a voz muito trêmula. Com toda aquela conversa sarcástica fora posta a claro a ameaça de morte sobre a minha pessoa, tinha a cara a arder e o coração batia-me doloroso no peito.
–    Moço – disse o Silver –, nada de pressas. Tem calma. Nenhum de nós te vai apertar, rapaz, na tua companhia o tempo não custa nada a passar, percebes?
–    Está bem – respondi, com um pouco mais de ânimo –, se posso escolher, acho que tenho o direito de saber tudo o que se passa, e porque é que vocês estão aqui, e onde estão os meus amigos.
–    O que se passa? – ecoou um dos piratas, em voz rouca. – Ah, se alguém soubesse estava cheio de sorte!
–    Talvez seja melhor teres os porões fechados até falarem contigo, meu amigo – exclamou o Silver, com dureza, para o que falara.
–    Ontem de manhã, senhor Hawkins – continuou –, de madrugada, chegou o doutor Livesey com uma bandeira de trégua. Disse-me ele: “Capitão Silver, está arrumado. O navio foi- se embora!” Ora, pode ser que a gente estivesse a beber um copo, e a cantar para ajudar. Não digo que não. Pelo menos nenhum de nós tinha olhado. Olhamos e, cum raio, o barco tinha desaparecido! Nunca vi uma alcateia de palermas fazer tão grande figura de urso, e garanto-te que o mais urso de todos era eu. “Bem”, diz o doutor, “vamos ao acordo.” Chegamos a acordo, ele e eu, e cá estamos, provisões, aguardente, casamata, a lenha que vocês tiveram a amabilidade de cortar e, por assim dizer, o barco todo, das gáveas até à quilha. Quanto a eles, puseram-se a mexer, não sei onde param.
Deu mais umas fumaças no cachimbo.
–    E caso tenhas nessa cabeça a ideia – acrescentou – que a tua pessoa foi metida neste acordo, aqui tens a última coisa que se disse: “Quantos têm vocês”, digo eu, “para ir embora?” “Quatro”, diz ele, “quatro, e um de nós está ferido. Quanto àquele rapaz não sei por onde anda, o malandrim”, diz ele, “e pouco me interessa. Já estamos fartos dele.” Foi isto que ele disse.
–    Mais nada? – perguntei.
–    Pois, para ti é quanto basta, meu filho – retorquiu o Silver.
–    E agora tenho de escolher?
–    E agora tens de escolher, posso garantir-te.
–    Pois bem, não sou tão tolo que não saiba com o que é que posso contar. Se o pior ficar ainda pior, pouco me interessa. Já vi muita gente morrer desde que ando com vocês. Mas há uma ou duas coisas que tenho de lhes dizer – comecei, cada vez mais exaltado –, e a primeira é esta. Aqui estão vocês, numa triste situação, navio perdido, tesouro perdido, homens perdidos, o negócio foi todo ao charco, e se querem saber, quem fez tudo fui eu! Estava metido no barril das maçãs na noite que avistamos terra, e ouvi-te a ti, John, e a ti, Dick Johnson, e ao Hands, que está agora no fundo do mar, e fui contar tudo o que vocês disseram logo naquela hora. E a escuna, fui eu que lhe cortei o cabo, e fui eu que matei os homens que lá deixaram, e fui eu,que a levei para onde nunca mais a tornam a ver, nenhum de vós. É a minha vez de rir, dirigi a coisa toda desde o princípio, já não me metem mais medo do que uma mosca. Matem-me, se lhes apetecer, ou poupem-me. Mas só digo uma coisa, e mais nada, se me pouparem, o que lá vai lá vai, e quando forem julgados por pirataria farei tudo para vos defender. Agora escolham. Matem mais um, sem ganhar nada com isso, ou então poupem-me e fiquem com uma testemunha para vos livrar da forca.
Parei porque, podem crer, já me faltava o ar e, para meu espanto, nenhum deles se mexeu, mas olhavam-me pasmados como carneiros. E enquanto estavam ainda a olhar, falei de novo:
 
–    E agora, senhor Silver – terminei –, julgo que és tu quem manda aqui, e se as coisas forem pelo pior, peço-te o favor de contares ao médico como é que eu me portei.
–    Eu tomo nota – disse o Silver, com um tom de voz tão esquisito que não tive meio de perceber se estava a fazer troça ou se ficara com boa impressão da minha coragem.
–    E digo mais – exclamou o velho da cara cor de mogno, chamado Morgan, que encontrara na taberna do Long John no porto de Bristol. – Era este que conhecia o Cão Negro.
–    Bem, e oiçam lá – tornou o cozinheiro –, também eu digo mais, cum raio! Pois foi este mesmo moço quem falsificou o mapa do Billy Bones. Temos andado sempre aos tombos por causa do Jim Hawkins!
–    Então aí vai! – atirou o Morgan, com uma praga.
E saltou de pé, puxando da faca, como se tivesse vinte anos.
–    Alto aí! – gritou o Silver. – Quem és tu, Tom Morgan? Se calhar pensavas que eras por aí capitão, talvez. Pelo inferno, que já te ensino! Atravessa-te comigo e vais parar onde já foram muitos antes de ti, do primeiro ao último, nestes trinta anos para cá, alguns no mastro, os costados me rebentem! E outros à tábua, e todos para os peixinhos. Olha que ninguém me fez frente que vivesse mais um dia, Tom Morgan, garanto-te.
O Morgan deteve-se, mas os outros soltaram murmúrios roucos.
–    O Tom tem razão – disse um.
–    Já me encolhi tempo de mais – acrescentou outro. – Que me enforquem se me encolho de ti, John Silver.
–    Algum dos senhores queria haver-se comigo? – rugiu o Silver, inclinando-se todo para a frente no seu barril, com o cachimbo aceso na mão direita. – Digam lá o que pretendem, acho que não são mudos. O que quiser tê-lo, terá. Será que passei tantos anos para deixar um filho duma colher de rum ir pendurar o chapéu atravessado na minha amarra na ponta final? Vocês sabem como é, são todos cavaleiros da fortuna, por conta própria. Ora, aqui me têm. O que se atrever que pegue num sabre, que o viro do avesso, com muleta e tudo, antes deste cachimbo acabar.
Ninguém se mexeu, ninguém respondeu.
–    É assim que vocês são, não é? – acrescentou, levando o cachimbo à boca. – Até dão vontade de rir, de qualquer maneira. Lá para lutar não são grande coisa, não. Devem entender o inglês do rei Jorge. O capitão aqui sou eu por eleição. O capitão aqui sou eu porque sou o melhor, de bem longe. Não querem lutar, como os bons aventureiros, nesse caso, cum raio, têm de obedecer, e é garantido! Ora eu cá gosto deste rapaz, nunca vi moço melhor que ele. É mais homem do que vocês são ratos aqui nesta casa, e só lhes digo isto: eu que saiba que alguém lhe põe a mão... é o que tenho a declarar, e garanto-lhes.
A isto seguiu-se um silêncio prolongado. Endireitei-me contra a parede, o coração a bater como um martelo; mas com um raio de esperança a brilhar por dentro. O Silver encostou-se à parede, de braços cruzados e cachimbo ao canto da boca, calmo como se estivesse na missa, mas o olhar vagueava furtivo, e vigiava os capangas pelo canto do olho. Por seu lado, eles foram-se juntando no canto mais afastado da casamata, e o tom baixo dos seus murmúrios chegava-me aos ouvidos sem parar com um curso de água. Uns após outros levantavam a cabeça, com a luz vermelha da tocha a tocar por instantes os rostos nervosos, mas não era para mim, e sim para o Silver, que os olhos se voltavam.
–    Parece-me que têm muito que falar – observou o Silver, cuspindo para o ar. – Digam lá o que tiverem a dizer, ou então fiquem quietos.
–    Desculpe, senhor – retorquiu um dos homens. – O senhor é muito aberto com algumas regras, e talvez faça o favor de atender ao resto. A tripulação não está contente, a tripulação acha que conversa fiada não vale um gancho, a tripulação tem os seus direitos como qualquer outra, para falar com franqueza, e por aquilo que o senhor defende acho que podemos ter uma conversa. O senhor me desculpará, pois reconheço que é o capitão aqui, mas reclamo o meu direito para pedir uma reunião de conselho lá fora.
 
E com uma continência pretensiosa aquele sujeito, um homem alto e doentio de olhos amarelos e de trinta e cinco anos, dirigiu-se com calma à porta e desapareceu lá fora. Um após outro os restantes seguiram-lhe o exemplo, cada um fazendo a continência ao passar, cada um acrescentando qualquer desculpa. – Segundo as regras – disse um. – Conselho da coberta – observou o Morgan. E assim por diante, com uma ou outra frase, todos saíram deixando-nos ao Silver e a mim sozinhos à luz da tocha.
O cozinheiro tirou logo o cachimbo da boca.
–    Agora escuta, Jim Hawkins – segredou em voz firme e tão baixa que só eu ouvia –, estás a meia prancha da morte, e o que é muito pior, da tortura. Eles vão pôr-me de fora. Mas não te esqueças, estou contigo haja o que houver. Não era o que eu queria, não era, não, antes de tu falares. Fiquei danado de perder tanto dinheiro, e ainda por cima ser enforcado. Mas vejo que tu é que és o que me convinha. E disse para mim: ajuda o Hawkins, John, que o Hawkins te ajudará. Tu és a última cartada dele, John, e cum raio, ele é a tua! Costas com costas, digo eu. Salvas a tua testemunha e ele salva-te o pescoço!
Começava a perceber vagamente.
–    Queres dizer que tudo está perdido? – perguntei.
–    Claro que quero, diabo! – respondeu. – Vai-se o navio, vai-se o pescoço, as coisas estão nesse pé. Quando olhei para o mar, Jim Hawkins, e não vi a escuna, olha que sou forte, mas desanimei. Aquela malta e a conferência, eu digo-te, são tudo tolos e cobardes. Vou-te livrar deles dê lá por onde der. Mas olha cá, Jim... é ela por ela... trata de livrar o Long John da forca.
Fiquei mais que atrapalhado, o que ele pedia parecia-me de tal modo impossível, ele, o velho pirata, o chefe em toda a linha.
–    O que puder fazer faço – respondi.
–    Estamos entendidos! – exclamou o Long John. – Falaste como deve ser, e cum raio, tenho uma oportunidade.
Manquejou até à tocha espetada na pilha da lenha, para reacender o cachimbo.
–    Vê se me entendes, Jim – disse na volta. – Cá por mim tenho uma cabeça nos ombros. Agora estou do lado do morgado. Sei que meteste o navio nalgum lado. Como o fizeste não sei, mas seguro deve estar. Creio que o Hands e o O'Brien ficaram moles. Nunca acreditei grande coisa em nenhum deles. Ora presta atenção. Não faço perguntas, nem quero que mas façam. Quando acaba o jogo, lá isso sei eu, e conheço um moço bem valente. Ah, tu que és novo, tu e eu podíamos ter feito juntos uma porção de coisas boas!
Tirou do barril algum conhaque com uma caneca de folha.
–    Queres provar, companheiro? – perguntou e, à minha negativa, acrescentou: – Pronto, tomo eu um gole, Jim. Preciso de aquecimento, porque vai haver sarilho. E por falar nisso, Jim, porque será que o médico me deu aquele mapa?
A minha cara mostrou uma surpresa tão evidente que ele não teve precisão de mais perguntas.
–    Ah, mas olha que deu, de fato – disse. – E por detrás disso há qualquer coisa, por certo... decerto que há-de haver alguma coisa por detrás disso, Jim, boa ou má.
E bebeu outra golada de brandy, sacudindo a grande cabeça loira como um homem que está à espera do pior.


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