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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro Quarta Parte: A paliçada

CAPÍTULO XVI: Narrativa retomada pelo médico

–    Como o navio foi abandonado
Foi perto da uma hora e meia – três badaladas para a gente do mar – que do Hispaniola saíram dois escaleres para terra. O capitão, o morgado e eu encontrávamo-nos no camarote a passar em revista os acontecimentos. Se houvesse um sopro de vento, teríamos caído em cima
 
dos seis revoltosos que conosco tinham ficado, deixado a amarra e largado para o mar alto. Mas faltava o vento e, para cúmulo da nossa falta de defesa, veio o Hunter anunciar-nos que o Jim Hawkins se tinha escapado para um dos botes para ir a terra com os outros.
Não nos passava pela ideia desconfiar do Jim Hawkins, mas ficamos preocupados pela sua segurança. Com a disposição em que os homens estavam, tornar a ver o rapaz não passava de simples hipótese. Corremos para o convés. O alcatrão fazia bolhas nas juntas, o cheiro penetrante enjoou-me, se havia um cheiro da febre e da desinteira era naquele ancoradouro abominável. Os seis malandros estavam sentados a murmurar, debaixo duma vela no castelo de proa; para terra podíamos avistar os botes amarrados, cada um com um homem sentado, junto à embocadura do rio. Um deles assobiava o “Lilibolero”.
A espera era um tormento, por isso foi decidido que o Hunter fosse comigo a terra na canoa em busca de informações. Os botes tinham-se inclinado para a direita, mas avançamos sem desvio na direção da paliçada indicada no mapa. Os dois que tinham ficado de guarda aos barcos pareceram agitados ao ver-nos, o assobio interrompeu-se e avistei a discussão entre os dois quanto ao que haviam de fazer. Se tivessem saído dali para ir avisar o Silver, tudo podia ter sido diferente, mas tinham as suas ordens, creio, e resolveram ficar onde estavam e continuar o “Lilibolero”.
Havia uma ligeira quebrada na praia, e manobrei o barco de modo a ficar por detrás dela. Os botes desapareceram mesmo antes de tocarmos em terra, saltei e pus-me a andar tão depressa quanto pude, com um lenço grande de seda sob o chapéu para me sentir mais fresco e tendo como proteção um par de pistolas carregadas de novo.
Ainda não tinha andado cem metros quando cheguei à paliçada. Era a seguinte a sua configuração: havia uma fonte de água clara no topo duma elevação. Sobre esta, em redor da fonte, tinham construído uma casa de toros bem robusta, capaz de abrigar uns quarenta homens à vontade, e com frestas para mosquetes por todos os lados. Em redor de tudo isto tinha sido aberta uma clareira larga, que por sua vez era circundada por uma paliçada de metro e oitenta de alto, sem portas nem aberturas, demasiado forte para ser derrubada sem tempo nem trabalho, e demasiado aberta para oferecer proteção aos que a sitiassem. As pessoas que estivessem na fortificação de toros levariam sempre a melhor, deixavam-se ficar tranquilamente no abrigo e atiravam aos outros como às perdizes. Tudo o que precisavam era de boa vigilância e de comida pois, a menos que fossem tomados de surpresa, podiam resistir a um regimento.
O que mais me admirou foi a nascente. Pois, embora no camarote do Hispaniola dispuséssemos de bom espaço, com abundância de armas, munições e comida, incluindo vinhos dos melhores, uma coisa havia que não fora prevista – não tínhamos água. Pensava nestas coisas quando retumbou na ilha o grito dum homem às portas da morte. A morte violenta não era novidade para mim – servi às ordens de sua alteza real o duque de Cumberland, e fui ferido em Fontenoy –, mas senti o coração falhar-me. “Lá se foi o Jim Hawkins”, foi o meu primeiro pensamento.
Alguma coisa é ter-se sido soldado, mas mais ainda é ser-se médico. Nesta profissão não há tempo para desperdiçar. Assim, a minha decisão foi instantânea, e sem demora voltei à praia e saltei para a canoa.
Por sorte, o Hunter era bom remador. A água voou, a canoa acostou e saltei para bordo da escuna. Como era natural, todos estavam agitados. O morgado, sentado, branco como um lençol, preocupava-se com os males em que nos havia metido, pobre alma! E um dos seis homens do bico da proa pouco melhor estava.
–    Ali está um homem – disse o capitão Smollett, indicando-o – que ainda é novo nesta vida. Quando ouviu aquele grito, doutor, esteve quase a desmaiar. Mais um jeito do leme e passa- se para o nosso lado.
Disse ao capitão qual era o meu plano, e entre nós tratamos dos pormenores para o executar.
Pusemos o velho Redruth no corredor entre o camarote e o castelo de proa, com três ou
 
quatro mosquetes carregados e um colchão a protegê-lo. O Hunter trouxe o escaler sob o portaló da popa, e o Joyce e eu pusemo-nos a carregá-lo com pólvora, latas, armas, sacos de bolachas, barricas de carne, um pipo de aguardente e a minha preciosa mala de medicamentos.
Entretanto, o morgado e o capitão ficaram no convés, e este último chamou o timoneiro, que era o principal graduado a bordo.
–    Senhor Hands – disse –, aqui estamos ambos com um par de pistolas cada um. Se qualquer de vocês seis fizer um só gesto suspeito, é um homem morto.
Recuaram todos, encolhidos; após breve conferência, dirigiram-se em conjunto para a camarata de vante, pensando, por certo, apanhar-nos de costas voltadas. Mas quando deram com o Redruth à espera deles no corredor improvisado, mudaram logo de direção e de novo se viu aparecer uma cabeça no convés.
–    Para baixo, cachorro! – bradou o capitão.
A cabeça voltou a esconder-se, e não voltamos a ter notícia daqueles seis marujos tão amedrontados.
Arrumando tudo à pressa, tínhamos carregado a canoa até não poder mais. O Joyce e eu saímos pelo portaló da popa e remamos de novo para terra tão depressa quanto podíamos. Esta segunda excursão não deixou de despertar a atenção dos guardas na praia.
O “Lilibolero” foi interrompido outra vez e, logo antes de os perdermos de vista atrás da ponta de terra, um deles saltou e desapareceu. Ainda pensei em mudar o plano para lhes destruir os barcos, mas receava que o Silver e os outros se encontrassem por perto, e podia deitar tudo a perder por arriscar demais.
Desembarcamos no mesmo ponto da primeira vez e tratamos de equipar o fortim. Seguimos os três pelo mesmo caminho, com toda a carga às costas, e lançamos as provisões por cima da paliçada.
Seguidamente deixamos o Joyce de guarda – claro que era só um, mas com meia dúzia de mosquetes –, voltando o Hunter comigo à canoa para trazermos novo carregamento. Assim prosseguimos, sem tempo de respirar, até todo o material estar arrumado e os dois homens ficarem a postos no fortim enquanto eu, com as forças de que ainda dispunha, ginguei o barco de volta ao Hispaniola.
Correr o risco de outro carregamento completo parece mais audacioso do que na realidade era. Era evidente que eles tinham a vantagem do número, mas nós tínhamos a das armas. Nem um único dos que estavam em terra tinha um mosquete e, antes de chegarem ao alcance das pistolas, podíamo-nos gabar de dar cabo de meia dúzia, pelo menos.
O morgado esperava-me à vigia da ré, com toda a energia recuperada. Agarrou o cabo e prendeu-o, e lançamo-nos a carregar o barco a toda a pressa. Levamos carne de porco, pólvora e bolachas, só com mais um mosquete e um sabre por cabeça para o morgado e para mim, o Redruth e o capitão. O resto das armas e pólvora lançamo-las pela borda em duas braças e meia de água de modo que podíamos ver o brilho do aço lá em baixo à luz do sol, no fundo de areia limpa. A maré começava a descer, e o navio a rodar em torno da âncora. Ouvimos vozes ao longe, do lado das baleeiras; embora isso nos tranquilizasse quanto ao Joyce e ao Hunter, que estavam bastante para nascente, era um aviso para que partíssemos.
O Redruth retirou do seu posto no corredor e lançou-se no barco, que então levamos de volta à amurada para receber o capitão Smollett.
–    Agora, senhores – disse este –, ouvem-me? Da vante não deram resposta.
–    É contigo, Abraham Gray, é contigo que falo. Ainda nenhuma resposta.
–    Gray – tornou o senhor Smollett, um pouco mais alto –, vou deixar o navio, e dou-te ordem de seguires o teu capitão. Sei que no fundo és bom homem, e até digo que nenhum dos outros que aí estão é tão mau como quer parecer. Tenho aqui o meu relógio, dou-te trinta segundos para te apresentares.
 
Um intervalo.
–    Anda, meu rapaz – prosseguiu o capitão –, não estejas a perder tempo. Cada segundo que passa estou a arriscar a minha vida e a destes senhores.
Houve um restolho brusco, um ruído de pancadas, e de lá saiu o Abraham Gray com um golpe de faca na face, correndo para o capitão como um cão à chamada do dono.
–    Estou com o senhor, comandante – afirmou.
Logo a seguir saltaram para junto de nós e pusemo-nos ao largo.
Tínhamos deixado o navio, mas ainda faltava chegar a terra e à nossa paliçada.


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