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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO V

A morte do cego

De certa maneira, a minha curiosidade era mais forte que o medo, porque não consegui ficar onde estava e trepei de novo à ribanceira, de onde, escondendo a cabeça atrás de uma giesta, podia observar a estrada mesmo defronte da nossa porta. Mal tinha tomado posição quando os meus inimigos começaram a chegar, sete ou oito, com passos desencontrados, pela estrada, precedidos pelo da lanterna. Três deles corriam juntos, de mãos dadas, e distingui, mesmo com a névoa, que o do meio era o pedinte cego. Logo a seguir, a voz dele mostrou-me que acertara. 

– Arrombem a porta! – gritou. 

– Sim, senhor! – responderam dois ou três; e convergiram para a Almirante Benbow, com o da lanterna atrás; a seguir vi-os parar e as conversas diminuíram de tom, como se fossem colhidos de surpresa por encontrarem a porta aberta. Mas a pausa foi breve, pois o cego deu de novo as suas ordens. A voz parecia mais forte e aguda, como se ardesse de impaciência e raiva. 

– Para dentro, entrem, entrem! – gritou, praguejando pela demora. Quatro ou cinco obedeceram logo, ficando dois na estrada com o impressionante mendigo. Houve nova pausa, seguida dum grito de surpresa, e a seguir outro grito lá dentro: 

– O Bill está morto! 

Mas o cego praguejou de novo contra a demora deles. 

– Revistem-no, seus cabras, e o resto vai lá acima buscar a arca – bradou. Pude ouvir o barulho na escada, que deve ter feito abanar a casa. Logo a seguir, novas demonstrações de espanto; a janela do quarto do capitão abriu-se com estrondo e com estilhaçar de vidros, e ao luar debruçou-se um homem, cabeça e ombros, que se dirigiu ao mendigo cego na estrada. 

– Pew! – exclamou –, já cá vieram antes de nós. Alguém virou a arca do avesso. 

– Está lá aquilo? – rugiu Pew. 

– O dinheiro está. 

O cego rogou pragas ao dinheiro. 

– O que eu quero é o papel do Flint – gritou. 

– Aqui não está – respondeu o outro. 

– Vocês aí em baixo, já viram no Bill? 

A esta pergunta, outro homem, decerto o que ficara a revistar em baixo o corpo do capitão, veio à porta responder. 

– O Bill já foi revistado – disse –, não tem nada. 

– É essa gente da estalagem, foi aquele rapaz. E não lhe ter eu arrancado os olhos! – exclamou o cego Pew. – Ainda há pouco aqui estavam... tinham a porta trancada quando cheguei. Espalhem-se, rapazes, e apanhem-nos. 

– Por isso, deixaram aqui a candeia – acrescentou o da janela. 

– Espalhem-se e encontrem-nos! Deitem a casa abaixo! – continuou Pew, batendo a bengala. 

Então seguiu-se um fragor por toda a nossa velha pensão, com correrias de pés, mobílias reviradas, portas arrombadas, cujo eco chegava à própria penedia, até que os homens saíram, um por um, para a estrada, concluindo que havíamos desaparecido. 

Nesse momento o mesmo assobio que nos tinha assustado quando contávamos o dinheiro do falecido capitão ouviu-se mais claramente na noite, mas desta vez repetido em dois toques. 

Pensara eu que devia ser a chamada do cego, por assim dizer, a convocar os seus homens para o assalto, mas via agora que era um sinal na encosta do lado do povoado e, pelo efeito que provocou nos piratas, um sinal de aviso de perigo próximo. 

– Aí está outra vez o Dirk – disse um. – Duas vezes: Temos de nos safar, malta. 

– Qual safar, seu bruto! – berrou Pew. – O Dirk foi sempre tolo e cobarde, não lhe liguem. Eles devem andar por aí, não podem estar longe, vocês conseguem. Espalhem-se e busquem os cachorros. Oh., vida minha – bradou –, tivesse eu uns olhos! 

Pareceu dar algum resultado este último apelo, pois um par de homens começou a procurar entre os destroços, embora com pouco ânimo, pensei, com metade da atenção para os riscos que corriam, enquanto os restantes ficavam na estrada, irresolutos. 

– Vocês com milhares à mão, palermas, e deixam-se ficar! Uma fortuna de reis para quem a encontrar, vocês sabem que está por aí, e ficam aí de mãos a abanar. Ninguém se atreveu a fazer frente ao Bill, mas eu sim – um cego! E perco eu a minha chance convosco! Tenho de ficar pobre de pedir, a mendigar uma gota de rum, quando bem podia andar de carruagem! Se ao menos tivessem a genica dum escaravelho, ainda os podiam caçar. 

– Diabo, Pew, já cá temos os dobrões! – resmungou um deles. 

– Devem ter escondido a maldita coisa – disse outro. – Agarra mas é no dinheiro e deixa te de arrelias. 

Arrelias era o termo, a ira de Pew cresceu a tal ponto e com tais argumentos que, por fim, totalmente dominado pela paixão, bateu a torto e a direito e, apesar da cegueira, a bengala atingiu os costados de vários deles com um som cavo. 

Por seu turno, os atingidos insultavam o cego, ameaçando-o com palavrões incríveis e tentando em vão tirar-lhe a bengala. Aquela zaragata foi a nossa salvação, pois enquanto ainda estava bem acesa, outro som veio do alto do monte, para o lado da aldeia – o tropel de cavalos a galope. Quase ao mesmo tempo, o estouro e o relâmpago dum tiro de pistola partiu do lado das sebes. 

Era evidente tratar-se do último sinal de perigo, que levou os piratas a voltarem-se e a fugir em todas as direções, uns pela praia, outros pelo monte acima, de modo que em meio minuto todos tinham desaparecido menos Pew. Tinham-no abandonado, não sei se por puro pânico ou por vingança pelas imprecações e bengaladas dele; mas ali ficou só, a tatear a estrada num frenesi, cambaleante, chamando pelos companheiros. Por fim virou-se na direção errada e correu para além do sítio onde eu estava, direito ao povoado, a gritar: 

– Johnny, Cão Negro, Dirk – e ainda outros –, não deixem o velho Pew só, rapazes, não o velho Pew! 

Nessa altura, o ruído dos cavalos chegou ao máximo, e quatro ou cinco cavaleiros apareceram ao luar e deslizaram pela vertente abaixo a todo o galope. 

Pew percebeu o seu engano, voltou-se com um grito e correu a direito para a valeta, onde caiu. Mas num segundo se pôs de pé e deu outra corrida, desta vez totalmente desnorteada, direto ao primeiro dos cavalos. 

O cavaleiro tentou desviar-se, mas em vão. Pew caiu com um grito lancinante que rasgou a noite, e os cascos do animal atingiram-no e espezinharam-no sem interromper a corrida. Caiu de lado, depois abateu-se lentamente de bruços e ficou imóvel. 

Saltei e chamei os cavaleiros. Mas já estavam todos a parar, impressionados com o desastre, e logo pude ver quem eram; o que seguia em último lugar era o rapaz que tinha ido da aldeia a casa do doutor Livesey, o resto eram guardas fiscais que encontrara no caminho e com que tinha tido a inteligência de regressar logo. As notícias da presença do lugre na Toca do Gato tinham chegado ao conhecimento do superintendente Dance e feito com que nessa noite ele viesse para os nossos lados, e foi a isso que a minha mãe e eu ficamos a dever o termos escapado à morte. 

Pew estava morto e bem morto. Quanto à minha mãe, depressa recuperou os sentidos com água fria e sais depois de a transportarmos para a aldeia, e o terror pelo qual passara não foi tão forte que a fizesse esquecer de continuar a lamentar-se pelo resto do dinheiro. 

Enquanto isso, o superintendente cavalgou o mais rápido que podia para a Toca do Gato, mas os seus homens tiveram de desmontar e seguir pelo vale às apalpadelas, à frente dos cavalos e por vezes tendo de os ajudar, num temor constante de encontrar emboscadas, de modo que não foi motivo de surpresa termos chegado à Toca e ver o lugre já largado, embora ainda próximo. O oficial chamou para o barco. Uma voz respondeu avisando-o para sair do luar se não queria apanhar chumbo, e ao mesmo tempo uma bala assobiou-lhe junto ao braço. Logo depois o lugre passou para lá do cabo e desapareceu. O senhor Dance ficou por ali, dizendo que se sentia como peixe fora de água,, e nada mais pôde fazer do que mandar um homem a B... para avisar o barco-vedeta. 

– Mas isso – acrescentou – bem pouca coisa é. Safaram-se, e acabou-se. Mas – concluiu – ainda bem que liquidei o mestre Pew – pois nessa altura já tinha sabido a minha história. 

Voltei com ele à Almirante Benbow, e não se pode imaginar uma casa num tal estado de destruição, o próprio relógio não escapara à fúria destruidora deles ao procurarem-nos, e embora não tivessem tirado nada a não ser o saco das moedas do capitão e o dinheiro do balcão, logo reconheci que estávamos arruinados. O senhor Dance não conseguiu entender o que se passara. 

– Levaram o dinheiro, dizes tu? Bem, Hawkins, então de que fortuna andavam eles atrás? Mais dinheiro, suponho? 

– Não, senhor, creio que não era do dinheiro – respondi. – Por acaso, senhor, parece que queriam o que eu tenho aqui no bolso e, para lhe falar verdade, precisava pôr isto a salvo. 

– Claro, rapaz, de acordo – disse ele. – Se quiseres, eu guardo-o. 

– Tinha pensado que o doutor Livesey, talvez... – comecei. 

– Pronto, está bem – interrompeu, com ânimo –, acho muito bem, é um cavalheiro e magistrado. E pensando melhor, posso lá ir relatar o sucedido a ele ou ao morgado. Com o Pew morto, e o caso arrumado... não é que eu sinta pena, mas ele foi morto, sabes, e as pessoas relacionam logo o caso com um oficial do fisco de sua majestade, se é que podem relacionar. Bom, Hawkins, então se quiseres, levo-te comigo. 

Agradeci-lhe com sinceridade, e voltamos a pé ao povoado onde tinham ficado os cavalos. Quando tinha contado à minha mãe o que ia fazer já todos estavam montados. 

– Dogger – chamou o senhor Dance –, tens um bom cavalo, leva este moço contigo. 

Logo que montei, agarrado ao cinturão de Dogger, o superintendente deu a partida e o grupo largou a trote largo para casa do doutor Livesey.


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