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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO XVII

Prosseguimento da narrativa do médico

–    A última viagem da canoa
Aquela quinta vez foi muito diferente das outras todas.
Em primeiro lugar, o barco onde nos metemos mais parecia um pucarinho e estava perigosamente sobrecarregado. Cinco adultos, e três deles – Trelawney, Redruth e o capitão – com mais de metro e oitenta de altura, já ultrapassavam a sua capacidade. A somar havia a pólvora, carne e sacas de pão. A borda da ré ia metida na água. Por diversas vezes esta entrou, e antes de percorrermos cem metros já os meus calções e as abas do casaco estavam ensopados. O capitão obrigou-nos a equilibrar o barco, e conseguimos pô-lo um pouco mais direito. Mesmo assim, nem para respirar nos sentíamos seguros.
Em segundo lugar, a vazante estava agora a puxar – uma corrente forte e encrespada que seguia para poente pela baía, e depois para o sul e para o mar alto pelos estreitos por onde entráramos de manhã. Até as pequenas ondas eram um perigo para a embarcação sobrecarregada, mas o pior de tudo era que estávamos a ser arrastados do nosso curso normal, afastando-nos do ponto de desembarque do lado de lá da ponta de terra. Se nos deixássemos levar pela corrente, devíamos ir parar à praia ao lado das baleeiras, onde os piratas podiam aparecer de um momento para o outro.
–    Não consigo meter a proa na paliçada, senhor – avisei o capitão. Ia eu ao leme e ele a remar com o Redruth, por serem os mais robustos. – A maré ainda nos leva. Não podem puxar mais forte?
–    Não, porque nos afundamos – respondeu. – Tem de aguentar, por favor, aguentar até ver se avança.
Tentei, mas vi que a corrente continuava a arrastar-nos para oeste até lhe acertar a proa a nascente, ou com o leme em ângulo reto com o rumo que tínhamos de seguir.
–    Nunca mais lá chegamos por este andar – afirmei.
–    Se é o único curso a seguir, senhor, temos mesmo de o seguir – retorquiu o capitão. – Temos de ir contra a corrente. Ora veja – prosseguiu –, se garrarmos para sotavento do desembarque, é difícil prever onde iremos encalhar, e além disso podemos ser abordados pelos escaleres, mas por aqui a corrente acaba por ceder, e depois podemos voltar atrás pela praia adiante.
–    A corrente já não é tão forte, senhor – avisou o Gray, que seguia sentado nos paneiros da proa –, pode aliviar um pouco.
–    Obrigado, meu rapaz – respondi, como se nada tivesse sucedido, pois havia entre todos um acordo tácito para o tratar como um dos nossos.
De chofre, o capitão tornou a falar, e pensei notar-lhe uma pequena mudança na voz.
–    O canhão! – exclamou.
–    Já pensei nisso – atalhei, certo de que ele pensara num bombardeamento do forte. – Não o podem trazer para terra, e mesmo se pudessem, nunca conseguiam transportá-lo pela floresta.
 
–    Olhe lá atrás, doutor – respondeu o capitão.
Tínhamo-nos esquecido totalmente da peça de nove, e lá estavam, para consternação nossa, os cinco bandidos atarefados à volta dela, retirando o jaquetão, como chamavam ao encerado forte que a cobria durante a viagem. E não era só isso, mas também ao mesmo tempo me lembrei que deixáramos ficar as munições e a pólvora do canhão, e que bastava um golpe de machado para pôr tudo ao dispor daqueles demônios.
–    O Israel era o artilheiro do Flint – observou Gray, com a voz rouca.
Arriscando tudo, enfiamos a proa do barco direita ao ponto de desembarque. Por essa altura já nos tínhamos distanciado o bastante da força da corrente para equilibrar o rumo com o ritmo necessariamente lento da remada, de modo a podermo-nos manter apontados ao destino. Mas o pior era que, nesse rumo, ficávamos virados bem de lado para o Hispaniola, em vez de estarmos de popa, oferecendo assim um alvo tão grande como a porta dum palheiro.
Pude ouvir, tão bem como ver, aquele danado borrachão do Israel Hands atirar no convés uma das balas redondas.
–    Quem é o nosso melhor atirador? – perguntou o capitão.
–    É o senhor Trelawney, e de longe – respondi.
–    Senhor Trelawney, o senhor faz-me o favor de abater um daqueles homens? Se possível o Hands? – pediu o capitão.
Trelawney manteve-se calmo como aço. Observou o fulminante da arma.
–    Agora – exclamou o capitão –, cuidado com essa arma, senhor, para não afundar o barco. Atenção, todos equilibram o barco quando ele apontar.
O morgado levantou a arma, os remos pararam, e inclinamo-nos para manter o equilíbrio, com tal harmonia que nem gota de água entrou.
Entretanto, os do navio tinham feito rodar o canhão no seu eixo e o Hands, que estava à boca da peça com o escovilhão, era por isso o mais exposto. Mas não tivemos sorte, porque no instante em que Trelawney disparara ele abaixou-se e a bala, assobiando-lhe por cima, foi atingir um dos outros quatro.
O grito que soltou foi respondido não só pelos companheiros de bordo mas também por grande número de vozes de terra, e quando para lá olhei vi os restantes piratas a sair em corrida do arvoredo e a precipitarem-se para os escaleres.
–    Aí vêm eles, senhor – avisei.
–    A toda a força – comandou o capitão. – Agora não interessa se vamos ao charco. Se não pudermos desembarcar, acabou-se.
–    Só um bote é que tem homens, senhor – acrescentei –, a tripulação do outro se calhar vai por terra cortar-nos o caminho.
–    Vão ficar fartos de correr, senhor – retorquiu o capitão. – Sabe como é o marinheiro em terra. Com eles não me preocupo, mas sim com as balas da peça. Aqueles berlindes! Nem a criada da minha mulher falhava o tiro. Diga-nos, morgado, quando vir a mecha, e o resto é lógico.
Tínhamos entretanto avançado em boa média para um batel tão carregado, metendo relativamente pouca água. Já estávamos bem perto, mais trinta a quarenta remadas e encalharíamos, pois a vazante já deixara à vista uma língua de areia estreita abaixo da cortina de árvores. A baleeira já não nos assustava, a ponta de terra já a ocultara. A maré, que tão cruelmente nos retardara, estava agora a compensar-nos, demorando os nossos perseguidores. O perigo só podia vir da peça.
–    Se me atrevesse – afirmou o capitão –, era capaz de parar para liquidar outro homem.
Mas era evidente que tudo faziam para não demorar o tiro do canhão. Nem sequer tinham olhado para o camarada tombado, embora não tivesse morrido, pois pude vê-lo tentando arrastar-se.
–    Prontos! – gritou o morgado.
–    Firme! – bradou o capitão, rápido como o eco.
 
E ele e o Redruth recuaram com um grande puxão que meteu a ré toda dentro de água. No mesmo instante soou o tiro. Foi o primeiro que o Jim ouviu, não lhe tendo chegado o som do tiro do morgado. Nenhum de nós soube precisamente quando o projétil passou por nós, mas imagino que tenha sido mesmo por cima da cabeça e que talvez a sua deslocação do ar tenha contribuído para o nosso desastre.
O certo é que a canoa se afundou pela ré, muito devagar, num metro de água, deixando- me a mim e ao comandante em pé, de frente um para o outro. Os outros três mergulharam de cabeça e levantaram-se, ensopados e a deitar água por todos os lados. Até aí o mal não foi grande. Não havia baixas, e podíamos chapinhar a salvo para terra. Mas ficaram todas as provisões no fundo e, para piorar as coisas, só duas das cinco armas estavam em condições. Tirara à pressa a minha dos joelhos e segurara-a acima da cabeça, como por instinto. Quanto ao capitão, tinha a dele às costas em bandoleira, mas com a coronha virada para cima, muito sensatamente. As outras três também tinham tomado um banho.
Para aumentar a nossa preocupação, ouvimos vozes que se aproximavam ao longo da floresta da praia, e corríamos não só o perigo de nos ser cortado o caminho da paliçada, no estado de inferioridade em que ficáramos, como também o que nos esperava se, no caso do Hunter e do Joyce serem atacados por meia dúzia deles, não estivessem ambos à altura para agüentar o assalto. Que o Hunter era rijo, isso sabíamos nós, o Joyce já oferecia dúvidas – era um homem agradável e educado como criado de quarto e para tratar de roupas, mas com aptidão insuficiente para soldado de linha. Com tudo isto no espírito, chapinhamos para terra o mais depressa que nos foi possível, deixando para trás a pobre canoa e praticamente metade de toda a pólvora e provisões.


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