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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO XIX

Narração retomada por Jim Hawkins

–    A guarnição do fortim
Logo que o Ben Gunn avistou a bandeira parou, puxou-me pelo braço e sentou-se.
–    Olha – disse –, de certeza que são os teus amigos.
–    É mais natural que sejam os piratas – observei.
 
–    Qual! – exclamou. – Ora num sítio destes, onde só aparecem salteadores, o Silver havia mas era de içar a bandeira negra, não ponhamos dúvidas. Ná, são os teus amigos. Também houve os tiros, e acho que foram eles que levaram a melhor; e cá estão em terra no velho forte que o Flint fez há anos e anos. Lá boa cabeça tinha ele, o Flint. Mesmo cheio de rum, era homem que nunca dava o flanco. Medo foi coisa que nunca teve; só do Silver... do Silver que era mais refinado.
–    Bom – respondi –, talvez sejam eles, e antes assim; mais uma razão para ir a correr ter com eles.
–    Ná, camarada – redarguiu –, não corras tanto. És bom moço, se não me engano; mas não passas dum rapaz, e pronto. Agora cá o Ben Gunn é que tem asas. Nem o rum me leva lá para onde vais... nada disso, até falar com o teu fidalgo e apanhar-lhe a palavra de honra. E não te vás esquecer das minhas palavras: “Acima de tudo (é o que lhe vais dizer), confiar nele acima de tudo”... e a seguir dás-lhe um beliscão.
E pela terceira vez me beliscou com aquele mesmo ar de esperteza.
–    E quando mandarem chamar o Ben Gunn já sabes onde o hás-de encontrar, Jim. No mesmo sítio de hoje. E quem vier tem de trazer na mão um pano branco, e tem de vir sozinho. Ah! E também lhe dizes isto: O Ben Gunn, dirás tu, lá tem as suas razões.
–    Está bem – respondi –, acho que já percebi. Tens uma proposta a fazer, queres falar ao morgado ou ao doutor, e estás no sítio onde te encontrei. É só isso?
–    “Mas quando?”, dizes tu – acrescentou. – Ora, aí entre o meio-dia pelo sol e as seis badaladas, mais ou menos.
–    Pronto – atalhei –, e agora posso ir?
–    Não te esqueces? – perguntou, ansioso. – Dizes que quero a prova de confiança e que tenho as minhas razões. Razões particulares, é o mais importante, como de homem para homem. Pronto – ainda a prender-me –, acho que já podes ir, Jim. Mas Jim, se encontrares o Silver, não és capaz de entregar o Bem Gunn? Por nada deste mundo? Não, tu o dizes. E se os piratas desembarcarem, que achas se amanhã de manhã houver mais algumas viúvas?
Foi interrompido pelo estrondo dum tiro, e uma bala de canhão rasgou a folhagem e veio enterrar-se na areia a menos de cem metros de onde estávamos. No instante imediato, saltamos ambos para fugir cada um para seu lado.
Por uma boa hora, a frequência dos tiros abalou a ilha, e as balas continuaram a romper com estrépito pela floresta. Mudei-me de esconderijo em esconderijo, sempre perseguido, ou assim me parecia, por aqueles aterradores projéteis. Mas para o fim do bombardeamento, embora ainda não ousasse aventurar-me para o lado da paliçada, onde as balas caíam com mais frequência, tinha começado, de certa maneira, a recuperar a presença de espírito: e depois de um longo desvio para nascente, abriguei-me sob as árvores junto à praia.
Era já sol-posto, a brisa marítima agitava e penetrava o arvoredo, enrugando a superfície cinzenta do fundeadouro; a maré já vazara por completo, deixando a descoberto grandes extensões de areia; o ar, depois do calor do dia, atravessava-me o casaco de frio.
O Hispaniola estava ainda onde tinha ancorado; mas lá estava a bandeira negra – a flâmula dos piratas – içada à vante. Novo clarão vermelho, novo estrondo que fez retinir os ecos, e nova bala assobiando pelo ar. Era a última do bombardeamento. Fiquei por algum tempo a escutar o tumulto que sucedeu ao ataque. Havia homens a derrubar algo com machados na praia, perto da paliçada – depois descobri tratar-se da pobre canoa.
Mais longe, cerca da foz do rio, uma grande fogueira brilhava por entre as árvores, e entre aquele ponto e o navio atarefava-se uma das baleeiras, cujos homens, que eu já vira tão abatidos, gritavam como miúdos, agarrados aos remos. Mas naquelas vozes havia algo que fazia lembrar o rum.
Pensei, por fim que já podia voltar para a paliçada. Estava a considerável distância, no cabedelo que fecha o ancoradouro pelo nascente, ligado à Ilha do Esqueleto na meia-maré; e então, ao levantar-me, avistei ainda mais para baixo da língua de areia, no meio de arbustos
 
rasteiros, um penedo isolado bastante alto e todo branco.
Lembrei-me que devia ser a pedra branca da qual falara o Ben Gunn, e que se de um dia para o outro fosse preciso um bote já sabia onde o havia de procurar.
A seguir, entranhei-me no bosque até chegar à retaguarda do forte, do lado virado para a praia, e pouco depois encontrei o mais caloroso acolhimento dos meus fiéis companheiros. Logo que lhes contei o sucedido, pude olhar em meu redor. A casa de troncos era toda feita de toros não aparados – telhado, paredes e soalho. Este último estava assente a pouco mais de trinta centímetros da areia. Havia um alpendre à porta, e abrigada neste alpendre ficava a pequena fonte metida numa bacia artificial bastante estranha – nada menos do que uma enorme chaleira de bordo, de ferro, com o fundo arrancado, metida na areia até às marcas, como dizia o capitão.
Pouco restava além da estrutura da casa, mas havia num canto uma laje de pedra ao jeito de lareira, na qual um velho cesto de ferro ferrugento servia de grelha para o fogo.
As irregularidades da duna e todo o interior do cercado tinham sido libertos das árvores para construir a casa, e pelos cepos cortados podíamos ver como devia ter sido belo e majestoso o bosque derrubado. A maior parte do terreno fora arrastada ou coberta de detritos depois da remoção das árvores; somente por onde corria o fio de água da chaleira um tapete de musgo espesso com alguns fetos e humildes arbustos verdejavam ainda pela areia. Logo em redor da paliçada – demasiado perto, diziam –, a floresta continuava pujante, alta e densa, toda de pinheiros do lado de terra, mas do lado do mar com grande percentagem de carvalhos vivazes.
A brisa fria da noite, de que já falei, assobiava por cada frincha da construção rude, polvilhando o chão com uma chuva contínua de areia fina. Tínhamos areia nos olhos, nos dentes, na comida, areia a rodopiar na fonte no fundo da chaleira, areia por todo o lado como papas a levantar fervura. A chaminé era um buraco quadrado no teto; só pequena parte do fumo por lá passava, ficando o resto a pairar lá dentro, conosco a tossir e a esfregar os olhos.
A acrescentar a isto havia o Gray, com uma ligadura na cara por causa dum corte que fizera ao fugir dos amotinados; e o pobre do velho Tom Redruth, por enterrar, estendido junto à parede, esticado e rígido, coberto com a bandeira nacional.
Se nos deixassem ficar ali sentados sem fazer nada, acabaríamos por cair todos na neurastenia, mas o capitão Smollett nunca seria capaz de chegar a tal ponto. Convocou todo o grupo e fez a distribuição dos quartos de guarda.
O doutor, o Gray e eu, no primeiro; o morgado, o Joyce e o Hunter, no outro. Embora cansados como estávamos, dois foram mandados à lenha, outros dois fazer a cova do Redruth, o doutor encarregou-se da cozinha, eu fui de sentinela para a porta e o próprio capitão ia de uns para outros, mantendo o moral e dando uma mão onde quer que fosse preciso.
De vez em quando, o doutor vinha à porta apanhar ar e dar descanso aos olhos, que quase lhe caíam com tanto fumo, e sempre que assim fazia conversava um pouco comigo.
–    Aquele Smollett – observou de uma vez – é melhor homem do que eu. E para dizer isto é porque é um caso sério, Jim.
De outra vez ficou calado por um pedaço. A seguir, inclinou a cabeça de lado e encarou-
me.
–    Esse tal Ben Gunn é gente? – perguntou.
–    Não sei, senhor – respondi. – Não tenho bem a certeza se ele está bom da cabeça.
–    Se há dúvida quanto a isso, é porque está – retorquiu o médico. – Um homem que
passou três anos a roer as unhas numa ilha deserta, Jim, não pode parecer tão normal como tu ou eu. Não é da natureza humana. Tinhas dito que ele adorava queijo?
–    Sim, senhor, queijo – respondi.
–    Ora bem, Jim – continuou –, vê lá tu como as lambarices podem trazer bem ao mundo. Já viste a minha caixa de rapé, não viste? E nunca me viste tomar rapé; pela razão que na caixa de rapé tenho um pedaço de queijo Parmesão, é feito em Itália, é um queijo muito alimentício. Pois bem, fica para o Ben Gunn!
Antes de cearmos, enterramos o velho Tom na areia, ficando em redor dele por algum
 
tempo de cabeças descobertas ao vento.
Tínhamos apanhado uma boa porção de lenha que ainda não era suficiente, na opinião do capitão e este, abanando a cabeça, disse-nos que no dia seguinte nos tínhamos de entregar ao trabalho com mais ânimo. Seguidamente, depois de todos comermos a ração de carne de porco e bebermos um bom gole de aguardente aquecida, os três chefes reuniram-se – a um canto para discutir o nosso futuro.
Creio que teriam esgotado a sua capacidade quanto ao que fazer, pois as provisões eram tão poucas que bem podíamos morrer à fome e rendermo-nos muito antes de chegar qualquer socorro. Mas concluíram que a melhor esperança para nós era ir liquidando os piratas um a um até que eles se rendessem ou fugissem com o Hispaniola. De dezenove já tinham sido reduzidos a quinze, mais dois tinham sido feridos, e pelo menos um – o homem abatido junto da peça – ferido com gravidade, ou talvez já morto. De cada vez que fazíamos fogo, tínhamos de ser cuidadosos em extremo e resguardar as nossas vidas. Além do mais, contávamos com dois aliados de confiança – o rum e o clima.
Quanto ao primeiro, embora a perto de meia milha de distância, podíamos ouvi-los a berrar e cantar pela noite fora; e quanto ao segundo, o doutor apostou a cabeleira que metade deles ia morrer antes de passar uma semana, visto estarem acampados nos pântanos, sem medicamentos.
–    Portanto – concluiu –, se não nos matarem primeiro a tiro, ainda têm a sorte de se juntarem na escuna. Sempre é um navio, e podem voltar à vida de piratas, suponho.
–    Vai ser o primeiro navio que perco na minha vida – disse o capitão Smollet.
Como podem imaginar estava morto de cansaço, e quando consegui adormecer, depois de muitas reviravoltas, dormi como um madeiro.
Já os outros se tinham levantado havia muito, tomado o pequeno-almoço e aumentado de quase metade a pilha de lenha, quando fui acordado pelo tumulto e som de vozes.
–    Bandeira de tréguas! – ouvi alguém dizer, e logo a seguir, numa exclamação de surpresa.
–    É o Silver em pessoa!
Levantei-me logo e, a esfregar os olhos, corri para uma das frestas abertas na parede.


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