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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO III

A Pinta Preta

Perto do meio-dia, fui ao quarto do capitão levar refrescos e remédios. Estava quase 

como o tínhamos deixado, mas menos abatido, com ar fraco e excitado. 

– Jim – disse –, és a única pessoa que vale alguma coisa por aqui; e sabes que fui sempre 

bom para ti. Nunca passou um mês sem te dar os teus quatro dinheiros de prata. E agora vês, companheiro, como estou por baixo e abandonado por toda a gente; vê lá se me trazes um bocadinho de rum, sim, compincha? 

– O doutor... – comecei. 

Mas logo começou a praguejar contra o médico, em voz fraca mas enérgica. 

– Os médicos são todos uns porcalhões – atalhou –, e esse doutor aí, que sabe ele dos 

homens do mar? Já estive em sítios quentes como alcatrão, com os parceiros a caírem por todos os lados com febre amarela, e os tremores de terra a fazer ondas como se fosse no mar. Que sabe o médico de terras assim? E digo-te que me sustentava de rum. Para mim foi o pão de cada dia, foi a minha criação; e se não tomo já o meu rum, o meu pobre casco vai dar à costa. Vais ficar com as culpas, Jim, e também aquele porco do doutor – e desfiou outra vez uma série de pragas. – Olha, Jim, como me tremem os dedos – prosseguiu num tom de súplica.Nem consigo fazê-los parar. Não bebi uma pinga em todo o santo dia. Digo-te que esse médico é doido. Se não bebo um gole, Jim, vêm-me os terrores; já os comecei a ter. Vi o velho Flint aí ao canto por trás de ti; vi-o pintado, tal e qual; e se me vêm os terrores, com a vida dura que vivi, olha que fico pior que mau. Esse teu médico até disse que um copo não me ia fazer mal. Dou-te um guinéu de ouro por uma canequinha, Jim. 

Ia ficando cada vez mais agitado, e fiquei assustado porque o meu pai, que passava muito 

mal, precisava de sossego; além do mais, fiquei mais confiante quando ele me lembrou o que o médico dissera e, ao mesmo tempo, ofendido pela proposta de suborno. 

– Não quero nada do seu dinheiro – respondi –, senão o que deve ao meu pai. Vou buscar-lhe um copo e mais nada. 

Quando lho trouxe, pegou-lhe com sofreguidão e bebeu-o duma vez só. 

– Ai, ai – disse –, já estou um bocadinho melhor. E agora, camarada, o médico não disse 

quanto tempo é que eu ia ficar aqui atracado? 

– Pelo menos uma semana – respondi. – Raios! – protestou. – Uma semana! Nem pensar, antes disso me põem uma pinta preta. Os desgraçados já por aí andam a querer dar cabo de mim, malandros que não souberam guardar o que era deles, e agora querem apanhar o que é dos outros. Sempre queria saber se isso são modos de marinheiros. Mas cá eu sou poupado. Nunca desperdicei nem perdi o meu bom dinheiro; e hei-de enganá-los outra vez. Não tenho medo deles. Vou safar-me desta, companheiro, e levá-los outra vez à pincha. 

Assim falando, tinha-se soerguido com grande dificuldade, agarrado ao meu ombro com 

tal força que quase me fazia gritar, e mexia as pernas como se fossem peso morto. As palavras, cheias de intenção, contrastavam tristemente com a fraqueza da voz que as pronunciava. Fez uma pausa quando ficou sentado na borda da cama. 

– Aquele médico deu cabo de mim – murmurou. – Tenho os ouvidos a zumbir. Deita-me 

para trás. 

Antes de o poder ajudar já se tinha deixado cair na posição anterior, ficando calado por 

um bocado. 

– Jim – disse, por fim –, viste aquele marinheiro, hoje? 

– O Cão Negro? – perguntei. 

– Ah! O Cão Negro – respondeu. – Esse é dos maus; mas ainda pior é quem o mandou. 

Ora, se eu não puder sair daqui de nenhum jeito, e eles me trouxerem a pinta preta, toma 

atenção, que é a minha velha arca que eles querem; arranja um cavalo – sabes montar, não sabes? Pois então monta a cavalo e vai... bem, sim, tem de ser!... Vai procurar esse latrineiro do médico, e diz-lhe para reunir todos... magistrados e dessa gente... para os vir embarcar a todos aqui na “Almirante Benbow” toda a tripulação do velho Flint, homens e rapazes, todos os que restam. Eu era o imediato, sabes, o imediato do velho Flint, e sou o único que sabe o sítio. Disse-mo ele a caminho de Savannah, quando estava a morrer, como eu estou agora, entendes. Mas não digas nada antes deles me trazerem a pinta preta, ou antes de veres o Cão Negro outra vez, ou um marinheiro duma perna só, Jim, esse mais do que todos. 

– Mas o que é a pinta preta, capitão? – perguntei. 

– É uma convocação, companheiro. Eu digo-te caso eles a tragam. Mas abre-me bem 

esses olhos, Jim, e dou-te a minha palavra que divido tudo a meias contigo. 

Divagou ainda um pouco, com a voz cada vez mais fraca; mas pouco depois de lhe dar o 

remédio, que tomou como uma criança, com a observação – Se já se viu um marinheiro precisar de drogas, sou eu –, caiu num sono pesado como um desmaio, e assim o deixei. Se tudo tivesse corrido bem, não sei o que teria feito. Possivelmente iria contar tudo ao médico, pois sentia um medo mortal que o capitão se arrependesse daquela confissão e desse cabo de mim. Mas as coisas saíram ao contrário, o meu pai morreu de repente nessa mesma noite, e isso pôs todos os outros assuntos de lado. O nosso desgosto natural, as visitas dos vizinhos, os preparativos do funeral, e com todo o trabalho da hospedaria para ser feito, tudo me deixou tão ocupado que mal tinha tempo de pensar no capitão, e ainda menos para ter medo dele. 

O certo é que desceu à sala na manhã seguinte e comeu as refeições como de costume, 

embora comesse pouco e tomasse mais, desconfio, que a sua ração habitual de rum, porque foi ele próprio servir-se à taberna, com ar sombrio e a roncar com o nariz, e ninguém se atrevia a contrariá-lo. Na noite anterior ao funeral estava bêbedo como sempre; e foi uma lástima ouvi-lo, na casa enlutada, dar largas à feia e velha cantiga do mar; mas, fraco como estava, todos receávamos que morresse, e o médico, chamado a um doente de longe, nem sequer passou por ali perto depois do meu pai morrer. Disse que o capitão andava fraco, mas na verdade parecia ir enfraquecendo em vez de recuperar as forças. Subia e descia aos tropeços, ia da sala à taberna e voltava à sala, e por vezes punha o nariz fora da porta para cheirar o mar, agarrando-se às paredes em busca de apoio, com a respiração pesada e rápida como se estivesse a trepar a uma encosta íngreme. Deixou de me falar diretamente, e pensei que tivesse esquecido as confidências feitas; 

mas o seu génio estava mais caprichoso e, atendendo à fraqueza física, mais violento do que nunca. Agora tinha uma maneira assustadora de desembainhar o sabre e o deixar em cima da mesa à sua frente quando se embebedava. Mas com tudo aquilo, ligava menos às pessoas, parecendo absorto nos seus pensamentos e perdido em divagações. Uma vez, por exemplo, para nosso espanto, pôs-se a cantarolar uma ária diferente, uma espécie de cantiga de amor que devia ter aprendido na juventude antes de começar a ir para o mar. 

Assim se passou até ao dia seguinte ao do funeral e, perto das três horas daquela tarde 

dura, nevoenta e gelada, estava eu por momentos à porta, cheio de tristes pensamentos pelo meu pai, quando avistei alguém que lentamente se aproximava na estrada. 

Era um cego, pois tateava o caminho com uma bengala e trazia nos olhos e no nariz uma 

venda grande e verde; e tinha uma corcunda como se fosse velho ou fraco, dentro dum velho e imenso capote remendado, de marinheiro, com um capuz que o fazia parecer absolutamente deformado. Nunca na minha vida vi figura mais medonha. Parou a pouca distância e ergueu a voz, dirigindo-se ao ar à frente dele, num velho estribilho: 

– Quem quer dizer ao pobre cego, que perdeu a vista preciosa dos olhos na defesa 

voluntária da sua terra-mãe, a Inglaterra, “e que Deus abençoe o rei Jorge!”, onde ou em que parte desta terra se encontra? 

– Aqui é a “Almirante Benbow”, na enseada do Monte Negro, meu bom homem – declarei. 

– Oiço uma voz – tornou ele –, uma voz jovem. Podes dar-me a mão, meu amiguinho, e 

levar-me para dentro? 

Quando estendi a mão, fui num ápice agarrado como numa tenaz por aquela criatura 

horrível, sonsa e cega. Fiquei tão aterrado que lutei para me libertar, mas o cego puxou-me para si com um só movimento do braço. 

– Agora, rapaz – disse –, leva-me ao capitão. 

– Senhor – respondi –, palavra que não me atrevo. – Oh – troçou ele –, então é isso! Leva-me já, senão parto-te o braço. 

E deu-me um torcegão que me fez gritar de dor. 

– Senhor – acrescentei –, é por si que tenho medo. O capitão já não é o mesmo. E está 

sentado com o sabre desembainhado. Outro senhor... 

– Vamos lá, anda para a frente – atalhou ele, e nunca ouvi uma voz tão cruel e fria, tão 

feia como a daquele cego. Fez-me arrepiar mais do que a dor, e logo lhe fui fazendo a vontade, passando pela porta e em direção à sala onde estava o pirata velho e doente, entontecido de rum. O cego mantinha-se colado a mim, com uma garra de ferro, e derreava-me com um peso superior às minhas forças. – Leva-me direito a ele, e quando lá chegares grita “Bill, está aqui um seu amigo”. Senão, olha o que te faço – e deu-me outra torcidela que pensei que me ia fazer desmaiar. Com tudo isto eu já estava tão aterrado pelo pedinte cego que me esqueci do medo que tinha do capitão e, ao abrir a porta da sala, gritei em voz trêmula o que me fora mandado. 

O pobre do capitão ergueu os olhos, e no mesmo instante o álcool desapareceu para dar 

lugar a um olhar fixo e sóbrio. 

A expressão daquele rosto era menos de terror do que de um sofrimento de morte. Fez 

um movimento para se levantar, mas penso que lhe não restava no corpo força suficiente. 

– Agora deixa-te estar sentado onde estás, Bill – disse o mendigo. – Se não posso ver, 

posso ouvir um dedo a mexer. Negócio é negócio. Deixa ver a mão esquerda. Rapaz, segura-lhe a mão esquerda e chega-a aqui à minha direita. 

Ambos lhe obedecemos à letra, e vi-o passar algo da palma da mão que trazia a bengala 

para a do capitão, que logo se fechou. 

– E pronto, já está feito – declarou o cego, e com estas palavras largou-me de chofre, 

para com incrível exatidão e agilidade se escapar da sala para a estrada onde, paralisado ali dentro, fiquei a ouvir as pancadas da bengala desaparecerem ao longe. 

Passou algum tempo antes de qualquer de nós recobrar os sentidos; mas por fim larguei

lhe o pulso, que ainda segurava, e no mesmo momento ele retirou a mão e olhou fixamente para a palma. 

– Dez horas! – exclamou. – Faltam seis horas. Ainda os apanhamos! – e pôs-se em pé de 

um salto. 

Mal o fez cambaleou, levou a mão à garganta, oscilou por instantes e a seguir, com um 

som estranho, estatelou-se ao comprido no chão, de cara para baixo. 

Corri logo para ele, chamando pela minha mãe. Mas toda a pressa era inútil. A morte 

atingira o capitão com uma apoplexia fulminante. É coisa difícil de explicar, tanto mais que eu nunca tinha gostado do homem, embora tivesse sentido pena dele nos últimos tempos, mas logo que percebi que morrera desatei numa torrente de lágrimas. Era a segunda morte que presenciava, e o desgosto da primeira ainda estava vivo no meu coração.


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