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A Ilha do Tesouro

Capítulos 34

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A Ilha do Tesouro CAPÍTULO XXV

Ataco a bandeira negra

Mal me tinha alojado no gurupés quando a giba esvoaçante bateu e se encheu do lado da escota contrária com um estrondo como um tiro. A escuna tremeu até à quilha com o puxão mas, logo a seguir, com as outras velas ainda cheias, a giba voltou a cair e ficou pendurada.
Aquilo quase me atirara ao mar e tratei de não perder tempo; trepei pelo pau do gurupés e caí de cabeça no tombadilho. Encontrava-me a sotavento da vante, e a vela grande, ainda cheia, ocultava-me de uma parte do convés da ré. Não via ninguém. As pranchas, por lavar desde a revolta, estavam cheias de pegadas, e uma garrafa vazia, com o gargalo partido, rolava de um para outro lado como coisa viva nos escoadouros.
O Hispaniola enfiou de súbito ao vento. As gibas atrás de mim estalaram, o leme bateu com força, todo o barco arrancou e estremeceu, e ao mesmo tempo a verga grande girou para dentro, o pano roncou nas escotas, pondo à vista o convés da ré a sotavento.
Lá estavam os dois guardas: o Barrete-Vermelho de costas, teso como um varapau, com os braços abertos em cruz e os dentes de fora da boca aberta, o Israel Hands apoiado na amura, o queixo no peito, as mãos estendidas para a frente no convés, e a cara, debaixo da pele queimada, tão pálida como uma vela de sebo.
Por algum tempo, o navio continuou a afocinhar e a cambar como um cavalo torto, as velas a encher ora dum lado ora do outro, e a verga a girar para a frente e para trás até todo o mastro gemer com o esforço A cada passo, também uma nuvem de respingos saltava pelas amuras, juntamente com as pancadas fortes do costado a lutar com a ondulação – de modo que o tempo parecia muito mais forte naquele grande navio de armação do que no meu coracle feito à mão e empenado, que agora estava no fundo.
 
A cada salto da escuna, o Barrete-Vermelho virava dum lado para o outro, mas – o que era impressionante de se ver – nem a atitude nem o sorriso congelado do homem eram perturbados por tais maus tratos.
A cada salto, também o Hands parecia cada vez mais caído sobre si próprio e fixo ao convés, com os pés a ficarem cada vez mais afastados e todo o corpo inclinado para a ré, de modo que pouco a pouco deixei de lhe ver a cara, até que por fim só lhe podia ver uma orelha e o caracol ralo de uma das suíças. Observei ainda que, em redor de ambos, havia manchas de sangue escuro nas pranchas, e comecei a convencer-me de que se tinham morto um ao outro durante a bebedeira.
Enquanto assim olhava e magicava, numa altura em que o navio se aquietou, o Israel Hands virou-se em parte para, com um gemido, se encolher de novo na posição em que primeiro o vira. Aquele gemido, que falava de dor e fraqueza mortal, e o jeito em que os queixos lhe pendiam, foi-me direito ao coração. Mas ao recordar a conversa escutada no barril de maçãs, deixei de sentir qualquer pena. Dirigi-me para a ré até chegar ao mastro grande.
– Venha para bordo, senhor Hands – declarei, irônico.
Rebolou os olhos pesadamente, mas estava entorpecido demais para mostrar surpresa. A única coisa que conseguiu balbuciar foi uma palavra – brandy.
Lembrei-me que não tinha tempo a perder e, evitando a verga que de novo girava de través, escapei-me para a ré e desci as escadas para o camarote.
Mal podem imaginar a cena de confusão. Todas as fechaduras tinham sido rebentadas em busca do mapa. O soalho encontrava-se coberto de lama, onde os bandidos se haviam sentado para beber ou discutir depois de se alagarem nos charcos à roda do acampamento. As amuras, todas pintadas de branco com cercaduras douradas, estavam repletas de marcas de mãos sujas. Dúzias de garrafas vazias tilintavam pelos cantos umas contra as outras com o rolar do navio. Um dos livros de medicina do doutor estava aberto em cima da mesa, com metade das folhas arrancadas, suponho que para acender cachimbos. No meio de tudo isto o candeeiro ainda dava uma luz mortiça, cheia de fumo e terrosa.
Dirigi-me à despensa, todos os barris haviam desaparecido, e o número mais inacreditável de garrafas tinha sido consumido e deitado fora. De certeza que desde o princípio do motim nem um único deles tinha podido estar sóbrio.
Rebuscando tudo encontrei uma garrafa ainda com algum brandy, para o Hands, e para mim arranquei algumas bolachas, umas frutas de conserva, boa porção de uvas e um pedaço de queijo. Com isto voltei para cima, coloquei os mantimentos atrás do posto do leme e bem fora do alcance do timoneiro, fui à vante beber uma quantidade de água da pipa e depois, só depois, levei o brandy ao Hands.
Deve ter bebido um copo inteiro até tirar a garrafa da boca.
–    Ai – disse ele –, cum raio, era disto que precisava! Já me sentara no meu canto e começara a comer.
–    Está muito ferido? – perguntei. Grunhiu, ou melhor dizendo, ladrou.
–    Se o médico cá estivesse – disse –, punha-me bom num instante, mas bem vês que não tenho sorte nenhuma, esse é que é o meu mal. E olha aquele, está pronto e morto, é o que ele está – acrescentou, apontando o do barrete vermelho. – Lá marinheiro é que nunca foi, afinal. E tu, donde é que saíste?
–    Ora bem – respondi –, vim a bordo tomar posse deste barco, senhor Hands, e até nova ordem faz favor de me tratar como comandante.
Encarou-me com amargura, mas sem responder. O rosto tinha melhor cor, embora parecesse ainda muito doente e continuasse a escorregar e a estender-se com os safanões do navio.
–    A propósito – continuei –, não aceito aquela bandeira, senhor Hands, e com sua licença vou arriá-la. É melhor não ter nenhuma do que esta.
 
E de novo evitando a verga, corri para a adriça, arriei a bandeira negra e atirei-a pela borda fora.
–    Deus salve o rei! – exclamei, agitando o boné. – E acabou-se o capitão Silver. Olhava-me com atenção e ar manhoso, sem tirar o queixo do peito.
–    Acho – disse por fim –, acho, capitão Hawkins, que agora há-de querer ir para terra.
Podíamos conversar.
–    Pois claro – respondi –, é o que mais desejo, senhor Hands. Ora diga lá – e recomecei a comer com apetite.
–    Esse homem – começou, com um aceno fraco para o corpo – chamava-se O'Brien, um irlandês dos bons, ele e eu pusemos-lhe o pano, com a ideia de levar o barco de volta. Bom, agora morreu... está mais que morto, e não vejo quem é que vai levar o navio. Tu não és de certeza, se eu não te ajudo. Ora bem, dás-me de comer e beber, e um lenço velho ou um pano para atar a minha ferida, dás, e eu ensino-te a conduzir, e isto vai dar tudo certo, acho eu.
–    Eu digo-lhe – atalhei –, não vou voltar para o ancoradouro do capitão Kidd. Quero levá-lo para a Angra do Norte, e pô-lo a salvo na praia.
–    Pois claro que está certo – gemeu ele. – Ora, no fim de contas não sou assim tão mau. Sei perceber, não sei? Fiz o meu jogo, fiz e perdi, e agora quem tem as cartas és tu. Angra do Norte? Ora, eu cá não tenho por onde escolher. Era capaz de te ajudar a navegar até à Doca da Forca, cum raio! E era mesmo.
Ao que me parecia, aquilo fazia algum sentido. O negócio foi fechado. Três minutos depois o Hispaniola vogava com bom vento ao longo da costa da Ilha do Tesouro, com boas esperanças de dobrar a ponta norte antes do meio-dia e de correr de novo até à Angra Norte antes da praia-mar, onde podíamos aportar em segurança e aguardar que a vazante nos deixasse desembarcar.
Amarrei a barra do leme e desci para ir buscar à minha arca um lenço de seda da minha mãe. Com este e ajudado por mim, o Hands ligou o golpe sangrento que recebera na coxa e, depois de ter comido um pouco e de dar mais um ou dois golos no brandy, começou a recuperar nitidamente, sentou-se mais direito, falou mais alto e com voz mais clara, e pareceu em tudo um novo homem.
A brisa ia maravilhosamente a nosso favor. Vogávamos como uma ave impelidos por ela, a costa da ilha a desenrolar-se com rapidez e a vista a mudar de minuto a minuto. Em breve deixamos para trás as terras altas e nos projetávamos ao longo de terrenos baixos e arenosos, pintalgados de pinheiros baixos, e em breve também os ultrapassamos para dobrar a ponta do monte rochoso em que a ilha termina ao norte.
Tinha grande entusiasmo pelo meu posto de comando e estava contente pelo tempo claro e cheio de sol, assim como por aquelas variadas perspectivas da costa. Tinha muita água e boa comida, e a consciência, que bastante me roera por causa da fuga, tranquilizara-se pela grande conquista que fizera. Nada pareceria faltar-me se não fosse o olhar do timoneiro que me seguia disfarçadamente pelo convés, e o sorriso estranho que lhe aparecia a cada passo na cara. Aquele sorriso tinha algo de dor e fraqueza ao mesmo tempo – um sorriso hesitante de velho, mas havia nele, além disso, um ar trocista, um véu traiçoeiro, um todo manhoso na expressão com que me vigiava e tornava a vigiar no meu trabalho.


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