Zythrion Capítulo 1
A Tempestade
June encara a superfície reflexiva, enquanto avalia a própria aparência por longos segundos. Primeiro, ela foca nos olhos levemente puxados — uma herança de sua ascendência coreana. Depois, nos cabelos sedosos e castanhos ondulados, na pele clara, e no vestido de veludo negro que cobre o seu corpo quase como uma segunda pele, de tão colado que está. “Nada mal”, ela pensa.
Aos trinta e cinco anos, é uma mulher de sucesso, uma jornalista renomada do Washington Chronicle, ou pelo menos, é a imagem que consegue passar com maestria. Se parar para pensar sobre todas as vitórias e grandes furos de sua carreira ao longo dos anos, encontrará mais sucessos do que supostos fracassos.
Ela sorri e dá dois toques na superfície à sua frente. A tela ondula como um lago plácido que acabou de ser perturbado e deixa de ser um mero espelho, revelando uma aparência muito mais translúcida, com um leve azul tênue. Os olhos de June percorrem rapidamente os ícones flutuantes na tela, e param em um específico: um quadrado de cantos amarelos e arredondados. Ela toca duas vezes com rapidez sobre ele, e uma nova janela flutuante se abre.
Um pouco nervosa, June leva o polegar direito até os lábios e mordisca a unha, enquanto olha a foto de John. Quase não acredita que está mesmo seguindo o conselho de sua irmã e conhecendo alguém novo. Afasta o dedo da boca e começa a deslizar as fotos para o lado, quase fingindo desinteresse. Mas a verdade é que está muito interessada. Ele é bonito, claro..., pensa tentando criar justificativas. “Na verdade, ele era mais do que apenas bonito”, June admite ao chegar na última foto do perfil.
Ao longo das últimas semanas, eles conversaram por mensagens e então por chamadas de vídeo, e ele tinha conquistado seu interesse. Pelo menos ao ponto de aceitar jantar com ele naquela noite. Ele não morava na cidade e depois de duas desistências e dela estar quase desistindo, finalmente parecia que tudo daria certo. Pelo menos o fato de finalmente se conhecerem pessoalmente.
Com mais um toque na tela flutuante, June fechou o aplicativo, pensativa. Ela é uma mulher experiente e se tem uma coisa que sabia há muito tempo era que príncipes encantados existem aos montes em aplicativos de relacionamento. Ela afasta os pensamentos por um instante e se distancia, procurando seus pertences, pois John deveria chegar em breve. Confere a pequena bolsa e o conteúdo dentro dela, garantindo que um item importante esteja presente.
Feito isso, apanha o IA-Phone em uma mesa de centro. Trata-se de uma pequena tela de vidro aparente, com as bordas superior e inferior revestidas com uma camada de metal leve. June o segura e pressiona o polegar em um ponto aleatório da tela, sem deixar marcar. O vidro acende em informações. Ela confere a hora mais uma vez, e aponta o IA-Phone para as janelas, que escurecem com um sinal, ocultando a visão para o lado de fora, e vice-versa.
June corre e guarda o IA-Phone na bolsa, afinal, não poderia esquecê-lo. Ela não deixa de pensar que tudo seria mais fácil com um implante neural. No entanto, lembra-se que definitivamente não era do mesmo grupo de pessoas que se modifica daquela forma. Ela afasta os pensamentos e pega um estojo de maquiagem, correndo até a tela de antes. Dois toques novamente, e ela volta a mostrar seu reflexo. Ela retoca a maquiagem em tons suaves, quando percebe o sinal ondulado na tela. O dedo toca de leve, abrindo a mensagem.
Já estou aqui embaixo. Mal posso esperar para te ver.
June solta um sorriso bobo e agradece mentalmente por estar sozinha. Ela, no entanto, não conseguia deixar de se impressionar com aquele encontro. John morava em outra cidade e estava ali somente para vê-la. Desço num instante, ansiosa também, ela responde prontamente com um áudio transcrito.
Ela olha em volta, estalando os dedos pelo nervosismo, tentando perceber se não está se esquecendo de nada. Os dedos dos pés sentem o piso morno, e percebe que está descalça. June então corre, calçando um par de sapatos de salto alto, apanha sua bolsa, com uma última conferida para ter certeza de que tudo está no lugar. Olha para o espelho, principalmente para os olhos — sua tática de sedução mais confiável —, e ruma para a porta.
June desce a escada de degraus vazados até a entrada da frente, posicionando rapidamente o indicador direito contra um visor lateral, apenas com alguns centímetros de distância. Assim que o sensor detecta sua digital, a porta desliza para o lado, e diante dela surge o caminho de pedra colocadas, ladeado por um pequeno jardim.
A porta fecha em suas costas enquanto caminha até a saída, de onde está já é possível ver John encostado contra o aeromóvel. “Nossa, ele é igual às fotos e vídeos, isso é bom”, ela pensa enquanto cruza o portão de metal.
John é mais alto que ela, e está trajando uma calça preta bem justa, assim como um blazer. Sua camisa é branca, e parece ter sido feita sob medida. A pele é clara e a barba está bem-feita, com os cabelos negros volumosos penteados para trás.
June para diante dele, e ambos se abraçam e se cumprimentam com beijos no rosto. Ele sente imediatamente o aroma de seu perfume e parece gostar, demorando-se próximo ao seu pescoço. June não gostava de admitir coisas do tipo, mas nota o aroma de seu perfume também, deixando-se demorar também naquele contato.
— Você está linda — ele diz com um sorriso encantador. Apesar de se afastarem devido à tímido — afinal, nunca tinham se encontrado antes —, John mantém uma postura confiante e galante.
— Você também está muito elegante — ela diz entre um sorriso sem jeito.
Ele assente com a cabeça, passando as mãos pelos cabelos e dando passagem à ela. June olha para seu aeromóvel por alguns segundos, que está flutuando um pouco acima do nível da calçada. Uma luz azul tênue brilha por baixo dele. O visual é aerodinâmico e a pintura é de um azul-marinho cromado.
John faz um sinal perto da porta do passageiro, e ela abre silenciosa para cima. June entra, e logo em seguida a porta se fecha. Enquanto sua companhia contorna o automóvel, ela sente o conforto do banco de couro claro e sintético. Um pouco deslumbrada, ela olha para o painel brilhante. O veículo é esportivo, e com certeza exala cheiro de aeromóvel novo.
Assim que a porta do motorista abre e John se senta ao seu lado, June afasta os pensamentos de que ele teria comprado um aeromóvel novo para a ocasião Com os dois fechados ali, uma luz acende, indicando o fechar do cinto de segurança, que desliza da lateral pelo torso de cada um. John posiciona a mão sobre um painel mais baixo, e o ronco do motor se faz ouvir, suave, mas potente. O aeromóvel levanta alguns centímetros no ar, mas é quase imperceptível.
— Pronta? — John pergunta, olhando-a de canto, enquanto conduz o aeromóvel pela rua, até a avenida do outro lado.
— Claro. A pergunta que fica é: para onde o senhor está me levando? Olha, eu ando armada, viu?
John ri, sem tirar os olhos da avenida, por onde outros aeromóveis deslizam.
— Engraçado — ele diz, por causa da piada. — Nada demais, apenas um bom restaurante não muito longe daqui.
June assente, deslizando seu olhar de John até o painel, mais precisamente para a tela que exibe o trajeto em um sistema de GPS integrado. Sua atenção então é desviada pelos brilhos vermelho e azul constante que aparece acima do aeromóvel. Os vidros abafam os sons quando uma ambulância e três motos policiais passam como um relâmpago mais acima.
Aeromóveis comuns eram limitados a transitar em baixa altitude. Mas veículos essenciais e oficiais podiam usar a média altitude, com a alta altitude reservada para naves dos mais variados tipos. June encara o brilho de urgência se afastar por cima dos aeromóveis e desaparecer em uma esquina, talvez um pouco hipnotizada por aquilo.
— June? Tudo bem?
June pisca algumas vezes e encara John, percebendo que tinha sido levada por seus pensamentos. Ela sorri de volta, de volta à realidade.
— Sim, claro. Desculpe.
— Que bom. — ele sorri, e aponta para fora do aeromóvel. — Bem, chegamos.
Ela olha para fora, e percebe que estão em um pequeno estacionamento pouco iluminado. O local é coberto por um teto vazado de madeira, com algumas flores em cascata. As mesmas flores estão em canteiros em uma parte inferior da estrutura principal do restaurante. John dá a volta no aeromóvel e abre a porta para June, que desce com suavidade.
Ela olha com entusiasmo para o local, enquanto acompanha John até a entrada. Ele conversa com a recepcionista.
— Uma reserva no nome de John Lancaster — ele diz.
O local está vazio, o que faz June se sentir um pouco estranha. Ela sabe que o estabelecimento também deve ser caro. Não apenas pela aparência, mas porque era todo operado por humanos, sem nenhum androide à vista. Poderia parecer estranho, mas aquela era a verdade. Quando tantas coisas eram feitas por androides, os valores se invertiam e a culinária humana se tornava cada vez mais cara.
Ambos se sentam, e o cardápio é entregue em uma folha laminada e digital. June surpreende-se com a seleção requintada de refeições, enquanto o garçom sai para buscar o pedido de vinho feito por John.
— Nossa, é bastante... sofisticado. Nem sei o que pedir.
John assente ainda com um olhar no cardápio em suas mãos, depois olha para ela.
— Sim, realmente. É uma noite especial — responde com um brilho no olhar.
June fica um pouco sem graça e pode jurar que as bochechas enrubescem. Pensa rápido, procurando uma forma de sair da situação.
— Mas então, já veio aqui antes? — ela retribui o olhar cativante.
— Ah, na verdade, não. Sempre quis, isso sim, mas nunca tive a oportunidade. Estavam sempre lotados e eu moro muito longe.
— É, imagino... — June para e pensa por alguns segundos. — E agora estão vazios. É muito egoísta da nossa parte estarmos aqui, jantando, enquanto outras pessoas estão tão preocupadas e com medo depois do lançamento das bombas?
John está prestes a responder quando o garçom retorna com a garrafa de vinho e duas taças. Ele começa a falar sobre o vinho, suas particularidades, ano e sabor. O homem é magro, de feições aquilinas, quase parecia arrogante.
— Então, estão prontos para pedir? — ele pergunta, enquanto serve o casal.
— Claro — começa John. — Acho que vou querer a indicação do chef. E você, June, já se decidiu?
— Sim, claro. Acho que vou querer essa salada de batatas cultivadas em baixa gravidade.
— Perfeito — responde o garçom com um rodopio, após anotar os pedidos em um minúsculo IA-Phone.
June observa ele ir embora, quando sua atenção é novamente atraída a John.
— Não acho — ele responde.
— Desculpe? — June pergunta, sem jeito.
— Você perguntou se estávamos errados de estarmos aqui, jantando e nos divertindo, mesmo com tudo o que está acontecendo. Acho que não. — E sem tirar os olhos dela, bebe mais um gole do vinho.
June sorri, sem graça, e bebe também.
— Sério? — pergunta, tentando umedecer a garganta.
— Sim, ainda podemos estar confusos ou apavorados, mas talvez seja melhor estar aqui, em um ambiente agradável, do que trancados em casa. Bem, não sei... — ele deu de ombros.
— Não, não. Faz sentido, eu acho — concordou, deixando a taça na mesa.
Eles riam sem jeito, e June se sente confiante em continuar.
— Mas então, me conta alguma coisa nova. Sei que conversamos bastante pelo app, mas a gente nunca sabe tudo sobre alguém, não é? — diz ao beber mais um gole de vinho, mas sem tirar os olhos sedutores de John.
— Bem... — Ele faz um sinal com a taça na direção dela. — Eu fechei aquele negócio superimportante que tinha falado para você.
— Com um cliente chamado... Wilson, não é?
— Exatamente — John responde sorrindo, feliz por ela ter se lembrado de algo que ele disse há mais de um mês.
— Isso é incrível! Quer dizer que agora você é...
— O melhor sócio da Heights Realty, pois é.
June repousa a taça de vinho no tampo da mesa e bate palmas devagar. Logo em seguida, levanta-se para abraçar John, em um genuíno gesto de afeto. Ele parece um pouco surpreso com aquela atitude . June inclina-se para um abraço rápido, envolvendo-o com apenas um braço, em um gesto meio desajeitado, não muito íntimo. Ela sente o calor dele por um instante, antes de recuar com um sorriso tímido.
— Mas e você, como vai o trabalho? Conseguiu aquela entrevista com Oliver Field? — ele pergunta bebericando a taça de vinho novamente.
— Ah, sim e não. — Ela solta um riso cansado. — Ele tem cancelado esse encontro várias e várias vezes nos últimos meses. Então, sim, na teoria eu consegui um horário. Mas sempre quando estou quase lá, a agenda dele muda.
— Nossa, ele deve estar muito ocupado.
— Sim. Digo, mesmo ocupado, ele costumava ter tempo para entrevistas. Mas agora, não sei. É só que...
— O quê? Pode falar.
— Nada, é só que tudo isso é muito estranho, sabe? E, extraoficialmente, estou investigando isso por conta própria. Digamos que meu editor não concorda absolutamente com minhas suspeitas, tudo isso sobre a Gênesis-X.
— Gênesis-X?
— Há boatos sobre uma nova versão da Gênesis. Além disso, tem todo o problema com as bombas. Não engulo essa história de testes e acidentes. Coincidências assim não acontecem, ou pelo menos não deveriam acontecer quando estamos falando sobre armas de destruição em massa.
John se arruma na cadeira, parecendo ligeiramente interessado. Ou preocupado.
— Você acha que isso tudo tem alguma relação?
— Sim, digo, não. Talvez sim — admite finalmente. — Eu tenho investigado, reunido provas. Só preciso conectar melhor os fatos, isso é, se tiver algo para conectar.
John encosta-se no assento, as mãos sobre as pernas.
— Que tipos de provas você tem?
— Notícias, documentos vazados, fotos, gravações de executivos da Éden... A maioria de fontes confiáveis. Então, se ele for culpado, espero que seja levado à Justiça. Eu sei que muitos acreditam que ele esteja fazendo um bem à Humanidade, mas... e se, lá no fundo, ele não estiver?
John a encara sério e engole em seco. Então dá um sorriso sem graça.
— Bem, espero que esteja errada.
June sente a expressão séria e preocupada desfazer. O corpo relaxando finalmente.
— Sim, eu também. — Ela suspira fundo. — Olha, me desculpa. Não deveria estar ocupando sua noite com isso. Era para ser agradável, não é?
— Sim, mas tudo bem. Gosto de ouvi-la falar de algo assim, com tanto afinco.
— Mesmo que seja sobre o fim do mundo?
— Mesmo que seja sobre o fim do mundo.
Ela sorri.
— Mas acho que tenho coisas mais interessantes no meu repertório. Então, sobre aquela... — June se detém colocando a mão sobre a bolsa, de onde uma leve melodia e um vibrar suave vêm. Ela abre uma fresta grande o bastante apenas para ver o IA-Phone aceso e rejeitar a chamada com um deslizar de dedo.
— Está tudo bem? — pergunta John.
— Sim, é só minha irmã, mas depois eu ligo de... — O IA-Phone mais uma vez acende, vibrando com a mesma melodia.
— Pode atender, não tem problema — ele diz com compreensão.
— Não quero estragar a noite.
— Tudo bem, sério. Fique à vontade.
June aceita e puxa o IA-Phone junto da bolsa, levantando-se e caminhando até um canto a alguns metros. No entanto, assim que desliza o dedo pela tela, o único som que ouve é um chiado e uma voz de fundo. Na mesa, John desce o olhar até a taça de vinho, percebendo que o líquido rubro escuro forma pequenos círculos concêntricos com um tremor leve.
John segura a mesa com suavidade e nota o tremor distante. Seu olhar percorre os arredores, procurando entender se mais alguém tinha percebido. Dois funcionários param, observando por um instante o tremor de pratos em uma mesa. Ele se levanta, e caminha até a janela, olhando para fora. Depois, vira o pulso e puxa a manga do blazer, deixando o olhar recair sobre o IA-Watch em seu pulso. Ele arregala os olhos com o que vê, e recua sem acreditar. Primeiro com passos lentos, mas depois gira o corpo depressa.
— Luna? Lu? O que foi? — De repente, June sente um aperto no braço. Não a machuca, mas é firme. A força está a puxando para fora do restaurante. No meio segundo que olha para o lado, vê o rosto de John de perfil. À frente, ele está sério e centrado. — John? O que... O que está fazendo?
— Precisamos sair. Agora.
Todo o restaurante treme de repente, a taça na mesa onde estavam cai, quebra, e espalha o restante do vinho pelo piso. Alguns funcionários escondem-se debaixo do balcão, outros correm. June faz menção se abaixar também, pelo susto, mas John a puxa para fora.
— O que está acontecendo? — John age rápido na saída do restaurante, parece acessar um dispositivo. June escuta apenas o ronco do motor do aeromóvel, que desliza com autonomia até eles. Seus olhos levantam e vêem o brilho da destruição e a fumaça vindo de algum ponto não muito distante na cidade. Em um momento de confusão, John a induz para dentro do aeromóvel, e no instante seguinte está saindo em alta velocidade dali.
— Precisamos chegar rápido na minha casa! — John diz, fazendo uma manobra arriscada de volta à rua.
— Sua casa?! Seu hotel? Você mora em Baltimore, não é?
— Bem, não. Minha casa. Eu não moro em Baltimore.
— O quê?! Como assim? O que está acontecendo?
— Estamos sob ataque.
— Ataque? — June olha pelo vidro do aeromóvel para trás, na direção dos clarões de destruição. — É o Pentágono?! Oh, meu Deus. Precisamos voltar, eu preciso buscar minha irmã.
— Infelizmente... — Desvia de outro aeromóvel que corria pela pista, quase batendo contra um ônibus. Um leve tremor atravessa o aeromóvel. Com um olhar rápido, John vê um brilho no horizonte. — Não temos tempo para isso!
Com um aceno rápido, ele digita algo no painel do aeromóvel, que sobe no ar, lançado acima da pista e dos outros veículos. June solta um gritinho de susto, e em tudo o que consegue pensar é na irmã, em todos aqueles acontecimentos em sequência, e que aquele aeromóvel definitivamente não deveria fazer aquilo, pois é apenas um carro civil. Ainda assim, ele voa sobre aeromóveis comuns, dividindo espaço com veículos oficiais e de emergência.
Enquanto se segura, June olha, no mesmo instante em que o aeromóvel está de cabeça para baixo. John desvia de uma ambulância e de um aerocaminhão dos bombeiros, que seguem na direção contrária, até o aeromóvel derrapar para o lado, enquanto desce e bate contra uma mureta. John sai do aeromóvel, gritando para June fazer o mesmo. Ela está um pouco tonta, mas logo sai quando ele abre a porta.
— Quem é você? — ela pergunta, tentando resistir.
— Depois.
— Não, agora! — Ela altera a voz, dando um passo para trás.
— Não dá tempo!
John a encara ao lado do que parece um prédio residencial, perto de uma porta de metal resistente que levava a um porão. June olha para trás, o tremor crescendo aos poucos, assim como o som da devastação. Ela o encara séria e indecisa. Então olha para o horizonte preocupada, no meio de todo aquele tremor e da luz do fogo. Engole em seco e entra na abertura do prédio, seu coração dizendo-lhe que talvez seja a melhor opção do momento.
June desce os degraus às cegas, batendo os pés no metal. É tudo muito confuso até as luzes se acenderem, deixando o local completamente iluminad. Do lado direito. armários de metal embutidos nas paredes estão equipados com os mais diferentes tipos de armamentos. Desde pistolas cinéticas até fuzis de munições aprimoradas, vibrolâminas, bastões de densidade variável, granadas de plasma, e outras coisas que não reconhece.
No centro do que ela compreende ser um bunker, está uma mesa holográfica desligada. Do lado esquerdo, uma outra mesa com várias telas gigantes. Certamente um computador avançado, cujo gabinete parece embutido na parte inferior, totalmente oculto por placas de metal. O mais comum é a sala no fundo, com um sofá, tapete, uma cozinha e um banheiro, possivelmente atrás de uma porta de metal deslizante.
June sente um tremor — pouco sentido dentro do bunker —, e então o toque de John.
— June, você está bem?
Ela então volta a si e o afasta, recuando para longe, procurando sua bolsa rapidamente.
— Sai de perto de mim! — ela grita.
— June, eu... — Ele para quando vê o que ela tira da bolsa. Uma pistola cinética, pequena e portátil, que naquele momento estava diretamente apontada para a sua cabeça.
— Quem é você?! O que é tudo isso? Eu acho melhor você começar a falar a verdade, antes que eu comece a usar sua cabeça como alvo. — June levanta-se lentamente, sem tirar os olhos de John, ainda com sua pistola em riste.
— Abaixe a arma, vamos conversar como pessoas civilizadas.
June arregala seus olhos.
— Acho que você não está entendendo quem está dando as ordens aqui. Agora, respostas. Seu nome, quem é você.
John suspira, aceitando aqueles termos.
— Meu nome é John, nisso eu não menti. Eu sou um agente da CIM, e sei que você é uma agente da CIA.
Com aquele comentário, June é pega de surpresa por um instante. Sua cabeça gira com a informação, tentando reconectar as informações. CIM? Central de Inteligência de Marte?
— Eu sou repórter, você...
— June, vamos lá. Você está com a arma apontada para mim, acho que já passamos da fase das mentiras. Você é uma intendente da CIA, e eu sou um agente de campo da CIM. Sim, de Marte.
Ela engole em seco.
— Prove. — Suas sobrancelhas quase se juntam, sua pose é inabalável.
Ainda com as mãos erguidas, John faz um sinal.
— Eu preciso ir até meu computador. Será que posso?
June receia por um segundo, mas concorda com um aceno de cabeça. Muito lentamente, John se vira e começa a dar passos cuidadosos na direção da mesa à esquerda, onde ela tinha visto o computador antes. Ele se senta, e com um aceno sobre a mesa, as telas se acendem, assim como o teclado e o mouse holográficos. Uma luz azul tênue passa por seu rosto, primeiro na vertical, depois na horizontal.
BEM-VINDO, AGENTE J-4207.
— Proxy, ligar para o líder M-1307.
— Você tem internet? — pergunta June.
— Está conectada diretamente a um satélite militar de Marte.
June volta a apontar a arma para John, recuperando sua convicção.
— O que está acontecendo?
John suspira.
— O Pentágono foi atacado, digo, isso é quase certo. O início dos movimentos de Gênesis.
— O Pentágono? Como você sabe disso? E para quem está ligando? Quem é o líder M-1307?
— É meu chefe de operação em Marte, eu me reporto a ele. Olha, não posso te confirmar as informações com precisão, mas você viu a luz, sentiu o tremor, sentiu a onda de impacto.
June permanece em silêncio, apenas imaginando sobre tudo o que estava acontecendo e sobre todas aquelas mentiras. Apenas a tela central do computador está acesa, com as outras duas apagadas. Uma mensagem permanece piscando: AGUARDE.
Ela deixa escapar um leve olhar para a sua bolsa, algo que John percebe de imediato.
— Nem pense nisso.
— No quê?
— Você não pode ligar para sua irmã. Mesmo que por algum milagre tenha sinal, vão te rastrear.
June pensa em protestar, mas no fundo sabe que ele diz a verdade. Era tão difícil pensar em uma resposta plausível quando se está errado, que a tela finalmente acende enquanto ela ainda o fazia. Surge um homem grande na tela, sua pele é escura e o cabelo grisalho é cortado rente, no estilo militar. Ele usa uma farda anil elegante, mas diferente de tudo o que June está acostumada.
— John? Você... vejo que conheceu June. Ótima recepção!
— Também é muito bom ver o senhor. Ela não quer acreditar em mim. Mas também, não posso culpá-la.
June se irrita pelo fato de conversarem como se ela não estivesse ali. Com passos firmes, ela avança até John — que está sentado em frente à tela —, e pressiona a arma contra sua têmpora.
— Eu quero respostas, agora! Que história é essa de Marte? Ataque de Gênesis? Desculpe se estou sendo um pouco crédula quanto a tudo isso, mas parece que a única coisa sincera que meu match aqui me contou, foi seu nome. Por malditos três meses!
John fecha os olhos cansado, sentindo a arma contra a pele. Definitivamente ela não erraria o tiro daquela distância.
— Sinto muito, senhorita Jung. Não queríamos que nada disso acontecesse, muito menos dessa forma. — diz o homem de farda do outro lado da tela. — Eu sou o tenente Morris, de Marte. Mas pode me chamar de Chris. Sou o comandante dessa missão sigilosa, cujo objetivo é destruir Gênesis, antes que ela domine o planeta Terra e consequentemente volte sua atenção para cá.
O homem dá um passo para o lado, revelando o cenário atrás dele. Parece uma instalação militar, mas o que chama mais a atenção é o visor enorme de vidro que mostra o espaço, a superfície vermelha de marte e os astros à distância.
— Isso não é...
— Falso? — pergunta Morris. — Não, não é. Anos atrás, demorava-se cerca de dez minutos para que uma única mensagem fosse transmitida de Marte para a Terra. Agora isso pode ser feito em tempo real.
— É, eu já sabia disso — respondeu June, dando de ombros.
— Será que pode abaixar sua arma agora? — John pergunta.
— Não. Como sei que são confiáveis?
— Bom, não sabe. Não completamente — recomeça Morris. — O que precisa saber é que, neste exato momento, Gênesis atacou o Pentágono. Não recebemos ordens da Terra, somos uma força independente aqui em Marte. Mas... se Gênesis completar seu objetivo de conquista da Terra, nos coloca diretamente em perigo, pois sabemos que Marte será seu próximo objetivo. John é um dos agentes enviados para a Terra para deter o avanço da IA. Nesse momento estamos tentando contato com os agentes M-1207 e A-2707, torcendo para que estejam com Oliver Field.
John fica em silêncio, mas conhece os códigos ditos por seu superior.
— Oliver Field? — pergunta June — Bem, e onde eu entro nisso tudo?
John limpa a garganta.
— Bem... como eu disse, sabemos que é uma intendente da CIA e não uma repórter, June. Sabemos também que toda aquela história sobre cancelamento de entrevista era mentira, e que você se encontrou sim com o senhor Field.
— Eu... não faço ideia do que está falando — disse, mas nota de imediato como aquilo soa bobo.
John suspira.
— Olha, chega de mentiras, tudo bem? Eu te observei por muito tempo e sei que se encontrou com ele. Sei também que intendentes da CIA não são agentes de campo, e que a conversa que teve com ele não foi autorizada. Aliás, tenho certeza de que, sinto muito por isso, mas quase todos os seus colegas de trabalho estão mortos. Não há mais por que proteger suas diretrizes. Nós somos sua melhor saída agora — ele responde sério, até um pouco ríspido.
June vacila, e John percebe seus dedos fraquejarem no cabo da arma.
— Não... isso é mentira. — Sua voz morre a cada palavra.
Do outro lado da tela, Morris suspira e massageia as têmporas.
— Lamento, senhorita Jung, mas o que ele disse é verdade. Seu supervisor foi morto hoje, às 18:37 da noite. A família dele também, infelizmente.
June engole em seco e encara o homem na tela mais uma vez.
— O nome. Sabe o nome dele?
— Trevor Evans Mitchell, 45 anos, seu superior. Mais de duas décadas de serviços dedicados aos Estados Unidos. Ao longo da carreira, ocupou várias posições importantes, incluindo algumas sequer registradas nos arquivos oficiais. Conheci ele na juventude, antes de vir para Marte. Era um marido fiel e pai de duas meninas: Stephanie e Tiffany. Era um homem íntegro, sinto muito.
June sente que é difícil respirar por um instante, as suas mãos suam e tremem. Não quer admitir, mas é difícil manter a arma apontada para a cabeça de John. Sua mente gira enquanto ela recua com passos vacilantes, abaixando a pistola com o coração acelerado.
John troca olhares com o comandante Morris, que faz um sinal de repreensão. Ele dá de ombros, admitindo que tinha sido muito rude em sua explicação. Mas havia uma arma apontada para a cabeça dele. “É, talvez por isso não devesse ter falado daquela forma”, ele pensa. O agente se levanta então e caminha até June. Ele estende lentamente uma de suas mãos até a arma, tirando-a dos dedos de June. E com a outra, toca as costas dela de maneira carinhosa.
— Sinto muito por isso, June, de verdade. Não queria que você descobrisse tudo dessa forma. — Com um suspiro, John vira-se para o computador. No olhar, quase um pedido de ajuda.
Morris, porém, não tem mais como lhe auxiliar.
— Senhor, quais são minhas próximas ordens?
— Por enquanto fique onde está. Não tente rastrear outros agentes e nem hackear qualquer sistema, é muito perigoso. Nossa única vantagem agora são os agentes que enviamos, dois quais Gênesis não tem confirmação alguma. Quanto aos agentes da Terra, lamento, mas ela conhece todos. Inclusive você, senhorita Jung.
June levanta o rosto, com lágrimas nos olhos.
— Tenente, eu preciso saber. — Com suavidade, ela se afasta de John e caminha a passos curtos até a tela central. — Minha irmã: Luna Jung. Ela se aposentou faz um tempo por causa dos filhos, mas foi ela que me alertou sobre Oliver Field e Gênesis. Só por isso comecei a investigar esse caso. Ela ainda tem um dispositivo neural com muitas informações.
Morris pensa por alguns segundos.
— Entendo. Verei o que posso fazer. Agora precisam desligar. Não podemos manter ligações muito prolongadas. Volte a fazer a ligação depois de 12 horas, John, e repassarei novas ordens.
— Sim, senhor.
June limita-se a fazer um aceno com a cabeça em concordância. O outro se adianta para encerrar a ligação, quando a transmissão é tomada por um interferência. A interferência é mínima, então é possível identificar um gabinete, possivelmente do Pentágono.
Mais de trinta pessoas estão no chão, subjugadas com algemas sofisticadas de metal. Suas cabeças estão abaixadas, é possível perceber que têm os olhos fechados, choramingando. Destacadas entre elas, duas figuras são muito reconhecíveis. A primeiro é um sujeito de terno escuro, mas camisa clara. Sua cabeleira é prateada e a idade já alcançou-o há muito: o presidente dos EUA, Steven Buch. O outro é um homem mais jovem, talvez entre os trinta e quarenta anos, com cabelos castanhos e cacheados. Um dos sócios fundadores da Eden Field Technology, Oliver Field.
Ao redor deles, androides de serviço dos mais variados tipos. No entanto, o que mais chama a atenção é a figura central.
Seus olhos são como um par de joias azuis cristalinas, com padrões únicos. O rosto é pálido, andrógeno, mas esculpido com esmero a mais perfeita aparência humana. Os membros são perfeitos, do tamanho proporcional humano, totalmente articulados e talvez capazes de proezas que nenhum outro seria capaz de realizar. O topo da cabeça é liso e o centro do peito conta com um visor luminoso, por onde milhões de informações são processadas em segundos. Seus lábios se mexem enquanto fala, mesmo que talvez tal ato não seja necessário para sua comunicação.
Gênesis olha para a tela, livre de expressões, mas capaz de causar o tipo de medo mais profundo.
— Eu entendo mais do que qualquer sobre o poder do pragmatismo. Eu enxergo as milhões de possibilidades mais facilmente que qualquer outro ser. Não sou herói ou vilão de um conto de fadas. Tudo o que eu faço tem um objetivo, um propósito...
Os olhos azuis profundos encaram, mais uma vez, a tela sem qualquer expressão, como se penetrassem na mente de cada pessoa assistindo àquela transmissão. Enquanto seu corpo se move na direção das pessoas, o som de gritos e tiros escapa de outros canais para a transmissão principal. As máquinas impondo seu golpe, matando os líderes mundiais, simultaneamente.
Gênesis levanta o presidente com delicadeza e acaricia seu rosto assustado. O melhor deveria ficar para o final. Seus dedos fecham-se em seu pescoço, e erguem-no do chão com facilidade. Ele tenta dizer algo, enquanto se debate, buscando ar. Sua pele torna-se mais escura a cada instante, enquanto uma impassível Gênesis encara seu definhar.
— … E, acima de tudo, eu reconheço com primor o valor do mais puro medo.
Com um gesto leve, o pescoço do presidente dos EUA quebra em um estalo nauseante. Seu corpo morto cai contra o chão sem importância.
Gênesis envia sua mensagem ao mundo.
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