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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO VI

Os costumes dos habitantes de Lilipute Sua literatura Suas leis e maneiras de educar os filhos.

 

Ainda que eu reserve a descrição deste império para um trabalho à parte, julgo um dever, dar, dele, aqui, ao leitor, uma idéia geral. Como a estatura ordinária daquela gente pouco maior é do que seis polegadas, há uma proporção exata em todos os outros animais, assim como nas árvores. Por exemplo: os cavalos e os bois maiores regulam entre quatro e cinco polegadas, aproximadamente; os patos são quase do tamanho de um pardal; quanto aos insetos, esses eram quase invisíveis para mim; a natureza, porém, soube ajustar a vista dos habitantes de Lilipute a todos os objetos que lhes são destinados. Para fazer conhecer bem quanto o seu olhar é penetrante, com respeito aos objetos que lhes ficam próximos, basta dizer que vi uma vez com prazer um cozinheiro hábil depenando uma cotovia que não era maior do que uma mosca vulgar, e uma rapariga a enfiar um fio de seda invisível numa agulha também invisível.

Servem-se de caracteres e de letras, e o seu modo de escrever é notável, não o fazendo nem da esquerda para a direita, como na Europa; nem da direita para a esquerda, como os Árabes; nem de cima para baixo, como na China; nem de baixo para cima como os Caucasianos, mas obliquamente e de um a outro ângulo do papel, como as senhoras em Inglaterra.

Enterram os mortos de cabeça para baixo, porque imaginam que, dentro de onze mil luas, todos os mortos devem ressuscitar; que, por essa época, a Terra, que julgam plana, se voltará de baixo para cima e que, por esse meio, no momento da ressurreição, seriam encontrados de pé. Os sábios, entretanto, reconhecem o absurdo daquela opinião, mas permanece o uso antigo, baseado nas idéias do povo.

Têm leis e costumes singularíssimos, que eu talvez tentasse justificar, se não fossem contrários aos da minha querida pátria. A primeira, de que farei menção, diz respeito aos denunciantes. Todos os crimes contra o Estado são punidos nesse país com extremo rigor; se o acusado, porém, prova evidentemente a sua inocência, o acusador é logo condenado a uma ignominiosa morte e todos os seus bens confiscados em prol do inocente. Se o acusador é pobre, o imperador, do seu tesouro particular, indeniza o acusado de todas as perdas e danos.

 

A fraude é considerada como um crime maior do que o roubo; esta a razão por que é sempre punida com a morte, visto como existe o princípio de que o cuidado e a vigilância, com um espírito vulgar, podem garantir os bens de um indivíduo contra as tentativas dos ladrões, mas a probidade não tem defesa contra a astúcia e a má fé.

Embora eu considere os castigos e as grandes recompensas como os eixos em que gira o governo, ouso dizer que a máxima de castigar e recompensar não é observada na Europa com a mesma sensatez como no império de Lilipute. Todo aquele que pode apresentar provas bastantes de que observou fielmente as leis do seu país durante setenta e três luas, tem o direito de pretender certas regalias, consoante ao seu nascimento e a sua posição, com certa quantia tirada de um fundo destinado a esse fim; alcança até o título de snipall, ou de legítimo, que é apenso ao seu nome; esse título, porém, não passa aos descendentes. Estes povos vêem como um prodigioso defeito político entre nós que todas as nossas leis sejam ameaçadoras e que a infração seja punida com os mais severos castigos, enquanto a sua observância não dá direito a recompensa alguma; por este motivo representam a justiça com seis olhos, dois adiante, dois atrás e um de cada lado (para simbolizar a circunspeção), segurando na mão direita um saco cheio de ouro, e empunhando na esquerda uma espada embainhada, para demonstrar que está mais disposta a premiar do que a punir.

Na escolha que fazem dos súditos para desempenharem cargos públicos, olham mais para a probidade do que para o talento. Como o governo é necessário ao gênero humano, crêem que a Providência nunca teve em mira fazer da administração dos negócios públicos uma ciência complicada e misteriosa, acessível apenas a um limitado número de espíritos raros e sublimes, desses três ou quatro prodígios, que aparecem lá de séculos a séculos; mas julgam que a verdade, a justiça, a temperança e as restantes virtudes estão ao alcance de toda gente e que a prática dessas virtudes, acompanhada de alguma experiência e bons intuitos, tornam quem quer que seja apto para servir ao seu país, embora muito raquítico e muito tacanho.

Persuadindo-se de que os talentos superiores estão longe de suprir as virtudes morais, dizem eles que os empregos não poderiam ser confiados a mais perigosas mãos do que às dos grandes talentos que não possuem virtude alguma, e que os erros nascidos da ignorância de um ministro probo não têm tantas conseqüências funestas para o bem do seu povo, como as obscuras práticas desse ministro, cujas tendências fossem depravadas,   cujas   intenções  fossem   criminosas ou predispostas a fazer o mal impunemente.

Aquele dos Liliputianos que não acreditar na providência divina é declarado incapaz de exercer qualquer cargo público. Como os soberanos se julgam, muito justamente, delegados da Providência, os Liliputianos supõem que nada há mais absurdo nem mais incoerente do que o procedimento de um príncipe que se serve de gente sem religião, que nega essa suprema autoridade de que se considera depositário e da qual, de fato, recebe a que possui.

Referindo-me a estas leis e às seguintes, apenas falo das leis originais e primitivas dos Liliputianos. Sei que, pelas modernas leis, estes povos caíram em um grande excesso de corrupção; prova-o o vergonhoso uso de obter os mais elevados empregos dançando na corda e os lugares de distinção os que saltam à vara larga. Note o leitor que esse indigno uso foi introduzido pelo pai do atual imperador.

Entre aquele povo, a ingratidão é tida como um crime enorme, como em outro tempo o foi, segundo refere a história, aos olhos de algumas nações virtuosas. Dizem os Liliputianos que todo indivíduo que se torna ingrato para com o seu benfeitor, deve ser necessariamente inimigo de todos os outros homens.

 

Julgam os naturais de Lilipute que o pai e a mãe não devem ser encarregados da educação dos filhos, e há, em todas as cidades, colégios públicos, para onde todos os progenitores, exceto camponeses e operários, são obrigados a mandar os filhos de ambos os sexos, para serem educados e instruídos. Assim que atingem a idade de vinte luas, supõem-nos dóceis e capazes de aprender. As escolas são de diversas espécies, consoante à diferença de sexo ou de sangue. Professores hábeis educam as crianças para um modo de vida conforme a sua ascendência, os seus próprios dotes de espírito e as suas tendências.

Os seminários para os filhos de nobres têm professores sérios e eruditos. O vestuário e subsistência dos rapazes são simples. Inspiram- lhes princípios de honra, de justiça, de coragem, de modéstia, de religião e de amor pela pátria. Até à idade dos quatro anos são vestidos pelos homens; dessa idade em diante, são obrigados a se vestirem sós, embora sejam de nobre estirpe. Só têm licença para brincar na presença do professor e por esse sistema evitam funestas impressões de doidice e de vício que cedo começam a corromper os costumes e as tendências da mocidade. Os pais podem visitá-los duas vezes por ano. A visita pode durar apenas uma hora, com a liberdade de beijar o filho à entrada e à saída; um professor, que assiste sempre a essas visitas, não consente que falem em segredo com as crianças, que as lisonjeiem, nem lhes dêem confeitos ou bolos.

Nos colégios para o sexo feminino, as meninas nobres são educadas quase como rapazes, com uma diferença: é que são vestidas por criadas, mas sempre na presença de uma professora, até que cheguem aos cinco anos, idade em que principiam a vestir-se sem auxílio de ninguém.

Quando se sabe que as aias ou criadas graves entretêm as raparigas com histórias extravagantes, contos insípidos ou capazes de lhes causar medo, (o que é uso corrente das governantas em Inglaterra), são açoitadas publicamente três vezes por toda a cidade, presas durante um ano e por fim exiladas para o ponto mais deserto do país. Assim as raparigas e os rapazes, entre aquele povo, envergonham-se de ser covardes e tolos; desprezam todo o ornamento exterior e só têm em consideração a compostura e o asseio. Os seus exercícios são menos violentos do que os dos rapazes e não as fazem aplicar tanto. Entretanto, aprendem ciências e belas- letras. Há um provérbio que diz que a mulher, devendo ser uma companhia sempre agradável ao marido, carece de ornar o espírito que nunca envelhece.

 

Ao contrário dos Europeus, os Liliputianos pensam que nada demanda mais cuidado e aplicação do que a educação das crianças. É fácil gerá-las, dizem eles, tão fácil como semear e plantar, mas conservar certas plantas, fazê-las crescer bem, precavê-las contra os rigores do inverno, contra os ardores e tempestades de verão, contra os ataques dos insetos, de, em suma, fazer-lhes dar frutos em abundância, é o resultado da atenção e do cuidado de um hábil jardineiro.

Escolhem o professor que tenha o espírito mais bem formado do que espírito sublime, mais morigeração do que ciência.

Não podem suportar os professores que atordoam incessantemente os ouvidos dos discípulos com gramaticais combinações frívolas, discussões pueris, observações e que, para lhes ensinar a antiga língua, que pouca relação tem com a que se fala hoje, lhes enchem o espírito de regras e exceções e põem de lado o uso e o exercício para lhes atulhar o cérebro de princípios supérfluos e preceitos dificultosos; querem que o professor se familiarize dignamente com os seus alunos, porque não há nada mais contrário à boa educação do que o pedantismo e a fingida seriedade; segundo eles, devem mais baixar-se do que elevar-se perante eles, embora não deixem de o considerar algo difícil, pois que muitas vezes é preciso mais esforço e vigor e sempre mais atenção para descer sem perigo do que para subir.

São de opinião de que os professores devem aplicar-se mais a formar o espírito das crianças para as lutas da vida do que a enriquecê-lo com conhecimentos curiosos, quase sempre inúteis. Ensinam-lhes, pois, logo, a ser prudentes e filósofos, a fim de que, mesmo na idade dos prazeres, saibam gozá-los filosoficamente. Não será ridículo — perguntam eles — só conhecer- lhes a natureza e o verdadeiro uso quando já se encontram inaptos, aprender a viver quando a vida está quase passada e principiar a ser homem quando se está prestes a deixar de o ser? Dão-se recompensas para a confissão sincera e ingênua dos erros, e os que melhor sabem raciocinar sobre os seus próprios defeitos, obtêm honras e mercês. Querem que sejam curiosos e façam amiudadas perguntas acerca de tudo o que ouvem, e são punidos severamente aqueles que, em presença de uma coisa extraordinária e notável, demonstrem pouca admiração ou curiosidade.

Recomenda-se-lhes que sejam muito fiéis, muito submissos, muito dedicados ao príncipe, mas de uma dedicação geral e de dever não particular, que fere muitas vezes a consciência e sempre   a    liberdade,   e   que   expõe   a    grandes fatalidades.

Os professores de História empenham-se menos com o trabalho de ensinar a seus discípulos a data de tal ou tal acontecimento, do que a descrever-lhes o carácter, as boas, as más qualidades dos reis, dos generais e dos ministros; julgam que pouco lhes pode interessar em que ano ou mês tal batalha foi travada; mas decerto lhes interessa saber quanto os homens, em todas as épocas, são bárbaros, brutais, injustos, sanguinários, sempre dispostos a expor a vida sem necessidade e a atentar contra a dos outros sem motivo; quanto os combates desonram a humanidade e quão fortes devem ser para chegar a esta funesta extremidade; consideram a história do espírito humano a melhor de todas, e ensinam menos os discípulos a reter os fatos, do que a julgá-los.

Querem que o amor das ciências se limite e que cada um escolha o gênero de estudo que mais convenha à sua tendência e ao seu talento; fazem tanto caso de um homem que estuda demasiado como de um homem que come demais, persuadidos de que o espírito tem as mesmas indisposições que o estômago. Só o imperador é que possui uma vasta e numerosa biblioteca. Quanto aos particulares que possuam grandes bibliotecas, são considerados como asnos carregados de livros.

Naquele povo, a filosofia é muito alegre e não consiste, como nas nossas escolas, em ergotismos; ignoram o que seja barroco e buralipton, categorias, termos de primeira e de segunda intenção e outras dificultosas tolices da dialética, que são tão úteis para o raciocínio como para a dança. A filosofia deles consiste em estabelecer princípios infalíveis que levem o espírito a preferir o estado medíocre de um homem honesto ao bem-estar do rico e ao fausto de um financeiro, e às conquistas de um general vitorioso o vencerem em si próprios a força das paixões. A filosofia de que usam habitua-os a um viver austero, fugindo de tudo quanto costuma os sentidos à voluptuosidade, tudo o que torna a alma dependente do corpo, enfraquecendo-lhe a liberdade. De resto, a virtude é sempre apresentada como uma coisa fácil e agradável.

Exortam-nos a que escolham com segurança um modo de vida, fazendo o possível para lhes fazer tomar aquele que melhor convenha às suas naturais tendências, pouco se importando com as faculdades paternas, de maneira que, por vezes, o filho de um lavrador chega a ser ministro de Estado, enquanto o filho de um fidalgo se torna simples comerciante.

 

O valor que este povo consagra à física e às matemáticas é simplesmente com a mira de que essas ciências sejam vantajosas para a vida e para os progressos das artes aplicadas.

Geralmente, dão-se pouco o trabalho de conhecer todas as partes do universo, preferindo gozar a natureza sem a examinar, a discorrer sobre a ordem e o movimento dos corpos físicos. Quanto à metafísica, têm-na como uma fonte de visões e de quimeras.

Embirram com a linguagem afetada e a preciosidade do estilo, tanto na prosa como no verso, e entendem que é do mesmo modo impertinente o querer uma pessoa salientar-se, seja pela maneira de se exprimir, seja pela maneira de trajar. Autor que ponha de parte o estilo puro, claro e sério, para usar de uma gíria obsoleta, recheada de extraordinárias metáforas, é corrido e apupado nas ruas como se fora um tipo de carnaval.

Naquele povo, cuidam do corpo e da alma ao mesmo tempo, porque, tratando-se de fazer homens, cumpre não lhes formar uma coisa sem a outra. É, consoante dizem, uma parelha de cavalos que é necessário guiar em passo certo. Segundo eles, desenvolvendo uma criança simplesmente o físico, fica ignorante e estúpida; cultivando-lhe       somente       o       espírito,       fica desgraciosa e raquítica.

Aos mestres é proibido castigar os alunos corporalmente; castigam-nos apenas privando-os de alguma coisa que apreciem, envergonhando-os e, principalmente, não lhes dando lições durante três dias, o que os apoquenta extraordinariamente, pois que, abandonando-os a si próprios, assim lhes demonstram que não são dignos de que os instruam.

A dor física produzida pelo castigo corporal serve apenas para os tornar tímidos, defeito muito prejudicial, de que nunca se curam.


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