Skip to main content

Viagens de Gulliver

Capítulos 12

© Todos os direitos reservados.

Viagens de Gulliver CAPÍTULO V

O autor expõe ao amo o que ordinariamente acende a guerra entre os príncipes da Europa; explica-lhe,, em seguida, como os particulares se guerreiam mutuamente Retrato dos procuradores e juízes de Inglaterra.

 

 

O leitor, se lhe aprouver, observará que o que vai ler é extraído de muitas conversas que entabulei diversas vezes, durante dois anos, com o huyhnhnm, meu amo. Sua honra dirigia-me perguntas e exigia de mim narrativas pormenorizadas à medida que me adiantava no conhecimento e no manejo da língua. Expus-lhe, o melhor que me foi possível, o estado de toda a Europa; dissertei sobre artes, manufaturas, comércio, ciências, e todas as respostas que dava a todas às perguntas, foram assunto de uma inesgotável conversa; mas relatarei aqui apenas a substância dos colóquios que tivemos a respeito da minha pátria; e, dando-lhes a melhor ordem que me for possível, olharei menos o tempo e as circunstâncias do que as exatas veracidades. Tudo o que me inquieta é o trabalho que terei em restituir a graça e a energia dos magníficos discursos e os raciocínios sólidos de meu amo; peço, contudo, ao leitor, que me desculpe a minha fraqueza e incapacidade e de levar também em  conta  a  linguagem  um  pouco  defeituosa,  na qual    sou    obrigado   a    exprimir-me   no    atual momento.

Para obedecer, pois, às ordens de meu amo, certo dia historiei-lhe a última revolução havida em Inglaterra pela invasão do príncipe de Orange, e a guerra que esse príncipe ambicioso travou com o rei de França, o mais poderoso monarca da Europa, cuja glória estava espalhada por todo o universo e que possuía todas as virtudes régias. Acrescentei que a rainha Ana, que sucedera ao príncipe de Orange, continuaria esta guerra, em que todas as potências da cristandade estavam envolvidas. Disse-lhe que esta guerra funesta tinha podido fazer morrer até agora quase um milhão de Yahus; que tinha como conseqüência mais de cem cidades assaltadas e tomadas e mais de trezentos navios incendiados e afundados.

Perguntou-me, então, quais eram as causas e os motivos mais vulgares das nossas questões, às quais eu dava o nome de guerra. Respondi-lhe que essas causas eram inúmeras e que lhe citaria apenas as principais.

— Muitas vezes — lhe disse eu — é a ambição de certos príncipes, que nunca julgam ter muitas terras nem governar muitos povos. Algumas vezes, é a política dos ministros, que querem dar emprego aos súditos descontentes. Outras, tem sido a divergência de espíritos sobre a escolha de opiniões. Um imagina que assobiar é um bonito ato; outro, que é um crime; este diz que é preciso vestuário branco; aquele, que é preciso usá-lo preto, vermelho, cinzento; um é de opinião que o chapéu deve ser pequeno e de aba direita; outro, que deve ser grande e de aba caída sobre as orelhas, etc. (Imaginei de propósito estes quiméricos exemplos, não querendo explicar-lhe as verdadeiras causas das nossas dissensões com respeito à opinião, visto que teria certo custo e me envergonharia deveras em fazer-lhas compreender). Acrescentei que as nossas guerras nunca eram mais longas nem mais sangrentas do que quando eram motivadas por essas diferentes opiniões, que esses cérebros escandescidos sabiam fazer valer quer de um lado, quer do outro, e pelas quais se exaltam a ponto de pegar em armas.

Prossegui:

Dois príncipes estiveram em guerra, porque ambos queriam despojar um terceiro dos seus Estados, sem que a isso tivesse direito qualquer deles. Às vezes, um soberano atacava outro com receio de que este o atacasse. Declaram guerra ao seu vizinho, ora porque é muito forte, ora porque é muito fraco. Muitas vezes esse vizinho possui coisas que nos faltam e a ele faltam coisas que nós possuímos; então, declara-se a guerra para se possuir tudo ou nada. Um outro motivo que dá lugar à guerra num país, é quando este se encontra desolado pela fome, dizimado pela peste, roto pelas facções. Uma cidade está ao agrado de um príncipe e a posse de uma pequena província arredonda o seu Estado? motivo de guerra. Um povo é ignorante, simples, grosseiro e fraco? ataca-se chacinando uma parte e reduzindo a outra à escravidão, e isto com o fim de civilizá-lo. Uma guerra é muito gloriosa, quando um generoso soberano vem em socorro de outro, que o chamou e que, depois de ter expulso o usurpador, se apodera dos próprios Estados que socorreu, mata, põe a ferros ou expulsa o príncipe que lhe implorara auxílio. A consangüinidade, as alianças, os casamentos são outros tantos motivos de guerra entre os príncipes; quanto mais aparentados são, mais próximos estão de ser inimigos. As nações pobres estão esfomeadas; as nações ricas são ambiciosas; ora a indigência e a ambição gostam igualmente das mudanças e das revoluções. Por todas estas razões, vê bem que, entre nós, o mister de um guerreiro é o mais belo de todos os misteres; o que é um guerreiro? é um Yahu a quem se paga para matar, a sangue frio, os seus semelhantes, que não lhe fazem mal algum.

— Realmente, o que me acaba de dizer acerca das causas vulgares das suas guerras — replicou- me sua honra — dá-me uma elevada idéia do seu raciocínio!  Seja  ele  qual  for,  é  uma  felicidade, sendo tão maus, estarem impedidos de causar mal, pois, pelo que me tem dito dos terríveis efeitos dessas guerras cruéis, em que tanta gente pereceu, creio, na verdade, que me tem dito coisas que não são. A natureza concedeu-lhes uma boca chata num rosto chato; assim, não vejo como possam morder-se, senão a pouco e pouco. Quanto às garras que têm nos pés dianteiros e traseiros, são tão fracas e tão curtas, que, na verdade, bastaria um dos nossos Yahus para dar cabo de uns doze como o senhor.

Não pude deixar de abanar a cabeça e de sorrir com a ignorância de meu amo. Como conhecia um pouco a arte da guerra, fiz-lhe uma desenvolvida descrição dos nossos canhões, das nossas colubrinas, dos nossos mosquetes, das nossas carabinas, das nossas pistolas, da nossa pólvora, dos nossos sabres, das nossas baionetas; pintei-lhe o assalto às praças, as trincheiras, os ataques, as sortidas, as minas e as contra-minas, os assédios, as guarnições passadas ao fio da espada; expliquei-lhe as nossas batalhas navais; descrevi-lhe os nossos maiores navios naufragando com toda a tripulação, outros crivados de balas de canhão, desmantelados e queimados no meio das águas; o fumo, o fogo, as trevas, os clarões, o ruído, os gemidos dos feridos, os gritos dos combatentes, os membros saltando pelo ar, o mar ensangüentado e coberto de cadáveres;  em  seguida,  referi-lhe  os  nossos combates em terra, onde havia muito mais sangue vertido e onde, num dia, morreram quarenta mil combatentes, de ambas as partes; e, para fazer valer um pouco a coragem e a bravura dos meus queridos compatriotas, disse-lhe que os vira uma vez num assédio fazer saltar, com felicidade, uma centena de inimigos, e que tinha visto ainda saltar mais num combate no mar, de maneira que os membros espalhados de todos esses Yahus pareciam cair das nuvens, o que constituía um espetáculo muito agradável à nossa vista.

Ia continuar a fazer ainda alguma excelente descrição, quando sua honra me ordenou silêncio, dizendo:

— A índole do Yahu é tão má, que me custa crer que tudo o que acaba de referir-me não fosse possível desde que eu lhe supusesse uma força e uma habilidade iguais à sua maldade e malícia. No entanto, por muito má idéia que eu formasse acerca desse animal, não se aproximava daquela de que lhe dera O seu discurso perturba- me o espírito e coloca-me numa situação em que nunca me encontrei; receio que os meus sentidos, aterrorizados com essas horríveis imagens que me traçou, não venha a pouco e pouco a habituar-se a elas. Odeio os Yahus desta região, mas, apesar de tudo, perdôo todas as suas odiosas qualidades, visto como a natureza assim os formou e não possuem raciocínio para se governar e corrigir-se; porém que uma criatura, que se gaba de possuir este raciocínio, em partilha, seja capaz de cometer ações tão execrandas e de se entregar a excessos tão horríveis, é o que não posso compreender e me faz concluir que o estado dos irracionais ainda é preferível a um raciocínio corrupto e depravado; mas, de fato, o vosso raciocínio é um verdadeiro raciocínio? Não será antes um talento com que a natureza vos dotou para aperfeiçoar todos os vícios? Mas — acrescentou — nada me tem dito com respeito ao assunto a que chamam guerra. Há um ponto que interessa a minha curiosidade. Parece que disse havia nesse bando de Yahus que o acompanhava no seu navio, miseráveis que os processos haviam arruinado e despojado de tudo; e qual era a lei que os pusera naquele triste estado? Além disso, que lei é essa? A sua índole e o seu raciocínio não bastam e não prescrevem claramente o que devem e o que não devem fazer?

Respondi a sua honra que eu não estava absolutamente versado na ciência da lei; que o pouco conhecimento que possuía de jurisprudência aprendera no convívio de alguns advogados que outrora consultara sobre os meus negócios; que, no entanto, ia dizer-lhe o que soubesse a tal respeito. Falei-lhe, pois:

— O número daqueles que, entre nós, se dão à jurisprudência e fazem profissão de interpretar a lei, é infinito e ultrapassa o das Têm entre si todas as espécies de escalas, de distinções e de nomes. Como a sua enorme quantidade torna o ofício pouco lucrativo, para fazer de maneira que, ao menos, lhes dê para viver, recorrem à indústria e à chicana. Aprenderam, logo nos primeiros anos, a arte maravilhosa de provar, com um discurso retorcido, que o preto é branco e o branco é preto.

— São estes que arruinam e despojam os outros, com a sua habilidade? — atalhou sua

— São, decerto — repliquei eu — e vou citar- lhe um exemplo, a fim de que melhor possa ajuizar do que Imagine que o meu vizinho tem vontade de possuir a minha vaca; vai logo ter com um procurador, isto é, um douto intérprete de prática da lei, e promete-lhe uma recompensa se puder fazer ver que a minha vaca não é minha. Sou obrigado a dirigir-me também a um Yahu da mesma profissão para defender o meu direito, visto que a lei me não permite que me defenda a mim próprio. Ora, eu, que tenho certamente por um lado a justiça e o direito, nem por isso deixo de encontrar dois grandes obstáculos; o primeiro é que o Yahu, ao qual recorri para defender a minha causa,   está,   por   ofício   e   espírito profissional, habituado desde a mocidade a advogar a falsidade, de maneira que se vê fora do seu elemento quando lhe digo a verdade nua e não sabe como desvencilhar-se; o segundo obstáculo é que o mesmo procurador, não obstante a simplicidade do pleito de que o encarreguei, é obrigado a embrulhá-lo, para se conformar com o uso dos seus colegas e prolongá-lo o mais que puder, do contrário acusá- lo-iam de estragar o ofício e dar mau exemplo. Estando as coisas neste pé, só me restam dois meios para me desembaraçar da questão: o primeiro é ir ter com o procurador da parte contrária e tentar suborná-lo, dando-lhe o dobro do que esperava receber do seu constituinte; e decerto vossa honra compreende que me não é difícil fazê-lo pender para uma proposta tão vantajosa; o segundo meio, que vai talvez surpreendê-lo, mas é menos infalível, é recomendar a este Yahu, que me serve de procurador, pleiteie a minha causa um pouco confusamente e faça entrever aos juízes que a minha vaca podia não ser minha, mas do meu vizinho. Então os juízes, pouco habituados às coisas claras e simples, darão mais atenção aos subtis argumentos do meu advogado, acharão gosto em ouvi-lo e a contrabalançar o pró e o contra e, nesse caso, estarão melhor dispostos a julgar em meu favor do que se ele se limitasse a provar o direito, que me assistisse, em quatro palavras. Uma das máximas dos juízes é que tudo quanto foi julgado, foi bem julgado. Assim, têm o máximo cuidado em conservar num cartório todas as decisões anteriormente tomadas, mesmo as ditadas pela ignorância, e que são o mais manifestamente possível opostas à equidade e à justa razão. Estas anteriores decisões formam o que se chama jurisprudência; são alegadas como autoridades e não há coisa alguma que não se prove e não se justifique, citando-as. Data de há pouco, contudo, o abandono do abuso que havia em dar tanta força à autoridade das causas julgadas; citam-se sentenças pró e contra, trata- se de ver que as espécies nunca podem ser completamente semelhantes e ouvi dizer a um juiz que as sentenças são para aqueles que as alcançam. De resto, a atenção dos juízes volta-se sempre mais para as circunstâncias do que para a causa principal. Por exemplo: no caso da minha vaca, quererão saber se é vermelha ou negra, se tem grandes cornos; em que campina costuma pastar; que quantidade de leite fornece por dia, e assim sucessivamente; isto feito, põem-se a consultar as antigas decisões. De tempos a tempos trata-se da questão; por muito feliz se deve dar o constituinte se for julgada ao fim de dez anos! É preciso observar ainda que os homens de lei têm uma linguagem especial, um calão que lhes é próprio; um modo de se exprimir que os outros não entendem; é nesta magnífica linguagem que são escritas as leis, leis multiplicadas ao infinito e acompanhadas de inúmeras exceções. Vossa honra vê perfeitamente que, neste labirinto, o justo direito se perde facilmente; que a melhor questão é difícil de ganhar-se; e que, se algum estrangeiro, nascido a trezentas léguas do meu país, tivesse a lembrança de vir disputar-me uma herança que está na posse de minha família há trezentos anos, lhe seriam precisos talvez trinta anos para concluir e esgotar por completo este difícil pleito.

— É pena — atalhou meu amo — que uma gente com tanto gênio e talento não encaminhe o espírito para outro lado, fazendo dele bom Não seria melhor — acrescentou — que se ocupassem em dar aos outros lições de prudência e de virtude, e participassem com o público das suas luzes? Porque, indubitavelmente, essa hábil gente possui conhecimento de todas as ciências.

— Qual história! — repliquei — Sabem apenas do seu mister e nada mais; são os maiores ignorantes do mundo sobre qualquer outra matéria; são inimigos da boa literatura, de todas as ciências, e, nas relações vulgares da vida, parecem estúpidos, mazombos, enfadonhos, Falo na generalidade, porque se encontram alguns espirituosos, agradáveis e galantes.


  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!

Deixe um comentário

Você está comentando como visitante.
  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!