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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO VI

O rei e a rainha fazem uma viagem à fronteira, onde o autor os acompanha Pormenor da maneira por que saí desse país para regressar à Inglaterra.

 

Tinha sempre presente no espírito que algum dia recuperaria a minha liberdade, ainda que não pudesse adivinhar por que meio, nem formar projeto algum com a menor probabilidade. O navio, que me tinha trazido e que soçobrara nessas paragens, era o primeiro barco europeu que, ao que se sabe, conseguira aproximar-se daí, e o rei dera ordens muito terminantes para que, se algum outro aparecesse, fosse puxado para terra e toda a tripulação e passageiros fossem metidos numa carroça de lixo e levados para Lorbrulgrud.

Estava muito empenhado em encontrar uma mulher da minha estatura com a qual eu pudesse multiplicar a espécie; no entanto, creio que preferiria morrer a fazer criação de desgraçados entes, destinados a ser engaiolados, assim como canários, e a ser, depois, vendidos por todo o reino a pessoas de elevada estirpe, como pequeninos animais curiosos. Era, na verdade, tratado com grande bondade; era o favorito do rei e da rainha e as delícias de toda a corte; mas estava numa situação que não convinha à dignidade da minha natureza humana. A princípio, não podia esquecer os preciosos penhores que deixara em minha casa. Desejava bastante encontrar-me entre povos com os quais pudesse entabular conversa como de igual para igual, e ter a liberdade de andar pelas ruas e pelos campos sem receio de ser pisado ou esmagado como uma rã ou ser o joguete de algum cãozinho; a minha libertação, porém, chegou mais depressa do que esperava e de uma forma extraordinária, que vou referir fielmente com todos os pormenores desse admirável acontecimento.

Havia dois anos que vivia nesse país. No princípio do terceiro, Glumdalclitch e eu fazíamos parte da comitiva régia numa viagem que o rei e a rainha realizaram pela costa meridional do reino. Levavam-me, de ordinário, na minha caixa de viagem, que era um aposento muito cômodo, com a largura de doze pés. Tinham, por minha ordem, colocado uma maca suspensa de cordões de seda aos quatro cantos superiores da minha caixa, a fim de que sentisse menos as sacudidelas do cavalo, sobre o qual um criado me levava na sua frente. Ordenara ao marceneiro que fizesse na tampa uma abertura com um pé quadrado para deixar entrar o ar, de maneira que, quando eu quisesse, pudesse abri-la e fechá-la por meio de uma corrediça.

 

Quando chegámos ao termo da nossa viagem o rei achou conveniente passar alguns dias numa vivenda que possuía perto de Flanflasnic, cidade situada a dezoito milhas inglesas da beira-mar. Glumdalclitch e eu estávamos deveras fatigados, e eu até um pouco constipado; mas a pobre pequena estava tão doente que era obrigada a permanecer sempre no quarto. Tive vontade de ver o oceano. Fiz-me parecer mais doente do que realmente me sentia e pedi que me dessem liberdade para respirar o ar do mar com um pajem com quem eu simpatizava muito e a quem, noutro tempo, fora confiado. Nunca esquecerei a repugnância com que Glumdalclitch consentiu nisso, nem a ordem severa que deu ao pajem para ter cuidado comigo, nem as lágrimas que chorou, como se tivesse o pressentimento do que me devia acontecer. O pajem conduziu-me, pois, na caixa, afastando-se quase meia légua da região, para os rochedos à beira-mar. Disse-lhe, então, que me pusesse no chão e, levantando o caixilho de uma das minhas janelas, comecei a olhar tristemente para o mar. Pedi então ao pajem que, tendo vontade de dormir alguns instantes na maca, mo deixasse fazer, pois isso me aliviaria. O pajem fechou bem a janela, com receio de que eu sentisse frio; depressa adormeci. Tudo o que posso conjecturar é que, enquanto dormia, o pajem, julgando que nada tinha a recear, trepou pelos rochedos em busca de ovos das aves marinhas, tendo-o visto da janela a procurá-los e apanhá-los. Fosse como fosse, o que é certo é que fui subitamente acordado por um violento solavanco que a minha caixa sofreu, que me senti no ar e, em seguida, arrebatado com prodigiosa rapidez. O primeiro solavanco quase me fez saltar fora da maca, mas, depois, o movimento tornou-se mais suave. Gritei com todas as forças dos meus pulmões, mas debalde. Olhei por entre os vidros e só vi nuvens. Ouvia por cima da cabeça um terrível ruído, semelhante ao bater de asas. Então, comecei a conhecer a perigosa situação em que me encontrava e a suspeitar que alguma águia tivesse segurado o cordão da minha caixa com o bico, no desejo de a deixar cair sobre algum rochedo, como uma tartaruga na casca e, em seguida, tirar-me para fora e devorar-me, porque a sagacidade e o olfato desta ave permitem-lhe descobrir a sua presa a grande distância, ainda que muito oculto estivesse na caixa que tinha apenas a espessura de duas polegadas.

Ao cabo de certo tempo, notei que o ruído e o bater de asas aumentavam muito e que a caixa se movia para um lado e para outro como uma tabuleta impelida pelo vento; ouvi violentas pancadas que eram dadas na águia e depois, de repente, senti-me cair perpendicularmente durante mais de um minuto, mas com incrível velocidade.  A  minha  queda  acabou  por  um terrível solavanco que retiniu na minha cabeça como a nossa catarata do Niágara, depois do que fiquei às escuras durante um minuto e então a minha caixa principiou a elevar-se, de maneira que pude ver o sol por cima da minha janela. Percebi, então, que caíra no mar e que a caixa flutuava. Supus, e suponho ainda, que a águia que arrebatara a minha caixa fora perseguida por duas ou três águias e constrangida a deixar-me cair, enquanto se defendia das outras, que lhe disputavam a presa. As chapas de ferro, colocadas por baixo da caixa, conservaram o equilíbrio e impediram que se quebrasse e esmigalhasse ao cair.

Oh! como desejei que Glumdalclitch me socorresse nesse súbito acidente que tanto me afastara dela! Posso, na verdade, dizer que, no meio das minhas desgraças, lamentava e tinha saudades da minha pequena dona, e pensava no desgosto que sentiria com a minha perda e no sentimento da rainha. Estou certo de que poucos viajantes há que se tenham encontrado em situação tão triste como aquela em que então me encontrava, esperando a todo o instante que a minha caixa se partisse ou pelo menos se voltasse ao primeiro golpe de vento e fosse submergida pelas vagas; um vidro partido, e estava completamente perdido. Não havia nada que pudesse fazer senão conservar-me à minha janela,  que  estava  munida  pelo lado de  fora de arames muito fortes que a protegiam contra os acidentes que podem ocorrer em uma viagem. Vi a água entrar na minha caixa por algumas fendazinhas, que tratei de tapar o melhor possível. Ah! não tinha força para levantar a tampa da minha caixa, o que, se pudesse, faria, e aí me colocaria de preferência a ficar encerrado nessa espécie de porão.

Nesta crítica situação, ouvi, ou julguei ouvir, uma espécie de ruído ao lado da caixa; depressa comecei a imaginar que era puxada e de alguma forma rebocada, porque, de tempos a tempos, sentia como que um esforço, que fazia subir as ondas até à altura das janelas, deixando-me quase às escuras. Alimentei, então, algumas fracas esperanças de salvação, ainda que não pudesse imaginar de onde ela me viria. Subi para as cadeiras e aproximei a cabeça de uma pequena abertura que havia na tampa da caixa, e desatei a gritar com toda força e a pedir socorro em todas as línguas que sabia. Em seguida, atei o lenço a uma bengala que tinha e, fazendo-a sair pela abertura, manejei-a muitas vezes no espaço, a fim de que, se algum barco ou navio estivesse próximo, os marinheiros pudessem conjecturar que dentro daquela caixa estava um desgraçado mortal.

Não notei que tudo isso tivesse dado algum resultado,  mas  constatei  que  a  minha  caixa caminhava sempre para a frente. Ao cabo de uma hora senti que chocava contra alguma coisa dura. Temi a princípio que fosse um rochedo e fiquei muito alarmado com o caso. Ouvi, então, claramente, bulha sobre a tampa da caixa, como a de um cabo; depois, fui içado a pouco e pouco quase três pés a mais do que estava anteriormente; ao notar isso, ergui ainda a bengala e o lenço, gritando por socorro até ficar rouco. Como resposta, ouvi grandes aclamações repetidas três vezes, que me causaram transportes de alegria que não podem ser compreendidos senão por aqueles que os sentem; ao mesmo tempo ouvi andar sobre a tampa e alguém, chamando pela abertura, em inglês, perguntou:

— Está alguém aí?

— Sim! — respondi — Sou um pobre inglês reduzido pela fortuna à maior calamidade que até agora qualquer criatura tenha Em nome de Deus, salve-me desta enxovia.

Ao que a voz me redarguiu:

— Tranquilize-se, que nada tem a recear; a caixa está segura ao navio, e o carpinteiro vem já para fazer um buraco e tirá-lo daí.

Respondi que isso era desnecessário e demorava   muito   tempo;   que   bastava   que qualquer tripulante pusesse o dedo no cordão a fim de levar a caixa para fora do mar, e colocá-la a bordo. Alguns dos que me ouviam falar assim, imaginavam que era um pobre insensato; outros riam; eu entretanto não me lembrava que estava tratando com homens da minha estatura e da minha força. Apareceu o carpinteiro e, dentro de poucos minutos, fez uma abertura na tampa, com a largura de três pés, e deu-me uma pequena escada pela qual subi. Entrei ao navio em um estado de grandíssima fraqueza.

Os marinheiros ficaram espantados e formularam-me mil perguntas, a que não tive coragem de responder. Imaginava ver-me entre pigmeus, tanto os meus olhos se haviam habituado aos objetos monstruosos que acabara de deixar; mas o capitão, M. Thomas Viletcks, homem de probidade e de mérito, oriundo da província de Salop, reparando em que eu estava caindo de fraqueza, mandou-me entrar para o seu quarto, deu-me um cordial para me fortalecer e fez-me deitar na sua cama, aconselhando-me a que repousasse, pois carecia bastante de descanso. Antes que adormecesse, disse-lhe que possuía preciosos móveis dentro da minha caixa, uma soberba maca, uma cama de campanha, duas cadeiras, uma mesa, um armário; que o meu quarto era atapetado ou, para melhor dizer, estofado de seda e algodão; que, se quisesse mandar   algum   homem   da   sua   tripulação rebuscar o meu quarto, abri-lo-ia na sua presença e lhe mostraria os móveis. O capitão, ouvindo-me aqueles absurdos, julgou que eu estava louco; no entanto, para me ser agradável, prometeu mandar fazer o que lhe pedia e, subindo ao convés, mandou alguns dos seus homens revistar a caixa.

Dormi durante algumas horas, mas continuamente sobressaltado pela idéia da região que deixara e do perigo que correra. Contudo, ao despertar, achei-me muito bem disposto. Eram oito horas da noite e o capitão ordenou que me dessem de cear imediatamente, supondo que jejuara durante muito tempo. Tratou-me com extrema bondade, notando, todavia, que eu tinha os olhos desvairados. Quando nos deixaram sós, pediu-me que lhe narrasse as minhas viagens e lhe explicasse por que acidente eu fora abandonado naquela grande caixa à mercê das ondas. Disse-me que, por volta do meio-dia, olhando pelo óculo, a descobrira de muito longe e a tomara por um pequeno barco, que queria apanhá-lo, em vista de querer comprar bolacha que lhe faltava; que, ao aproximar-se, conhecera o seu erro e mandara o escaler para verificar o que era; que os seus homens tinham voltado verdadeiramente aterrados, jurando que haviam visto uma casa flutuante; que rira do seu disparate e que ele próprio embarcara no escaler, ordenando aos seus marinheiros que trouxessem um cabo; que, como o tempo estava sereno, depois de ter remado em volta da grande caixa, rodeando-a por várias vezes, dera com a janela; que ordenara então à sua gente que remasse e se aproximasse desse lado e, que ligando um cabo a uma das argolas da janela, fizera-a rebocar; que vira a bengala e o lenço pela abertura e que imaginara que alguns desgraçados estivessem encerrados nela. Perguntei-lhe se ele ou a sua tripulação não tinham visto aves prodigiosas no ar, na ocasião em que me descobriram, ao que redarguiu que, falando sobre esse assunto com os marinheiros, enquanto dormia, um deles lhe dissera ter observado três águias que tomavam o rumo do norte; porém não tinha notado que fossem maiores do que o vulgar, o que é fácil de supor, visto a enorme altura a que voavam, e não pôde também adivinhar o motivo por que lhe formulavam semelhante pergunta. Em seguida, perguntei ao capitão a que distância supunha estar de terra; respondeu-me que, pelos melhores cálculos que pudera fazer, estávamos afastados cem léguas. Garanti-lhe que estava completamente enganado em quase metade, porque não tinha deixado o país de onde eu vinha, senão duas horas antes que eu caísse ao mar; esta minha observação fê-lo voltar a crer que o meu cérebro estava avariado, e aconselhou- me que tornasse a deitar na cama, num quarto que de antemão me mandara preparar. Afirmei-lhe que me sentia bem disposto depois da refeição e com a sua amável companhia, e que estava no pleno uso das minhas faculdades mentais e tão perfeitamente como antes.

Retomou a sua costumada seriedade e pediu- me para lhe dizer francamente se eu não tinha a consciência perturbada por algum crime que tivesse cometido e que fosse punido por ordem de algum príncipe, e exposto nessa caixa, como por vezes acontece aos criminosos de certos países, que são abandonados à mercê das ondas num navio sem velas e sem víveres; que embora se sentisse arrependido por haver recolhido a bordo tal celerado, dava a sua palavra de honra que me desembarcaria, com segurança, no primeiro porto que tocasse; acrescentou que as suas suspeitas haviam aumentado em virtude de alguns discursos muito absurdos, que fizera a princípio a alguns marinheiros, e, depois, a ele mesmo, com relação à minha caixa e ao meu quarto e bem assim pelos meus desvairados olhos e estranha atitude.

Pedi-lhe que ouvisse com paciência a narrativa da minha vida; historiei-lha mui fielmente desde a última vez que deixara a Inglaterra até o momento em que me descobrira; e, como a verdade abre sempre um caminho nos espíritos inteligentes, este honesto e digno fidalgo, que possuía bom senso e não era completamente destituído de letras, ficou satisfeito com a minha boa fé e sinceridade; mas, além disso, para confirmar tudo quanto eu dissera, pedi-lhe que desse ordem para trazerem o meu armário, cuja chave estava em meu poder; abri-o à sua vista e fi-lo examinar todas as curiosas coisas executadas no país de onde eu saíra de uma forma tão estranha. Entre outros objetos, havia o pente que eu fabricara com os pêlos das barbas do rei e um outro da mesma matéria, ao qual servia de guarnição uma apara da unha do dedo polegar do mesmo soberano; havia uma carta de agulhas e de alfinetes com o comprimento de pé e meio; um anel com que um dia a rainha me presenteara de uma forma muito cativante, tirando-o do dedo e enfiando-mo no pescoço, como se fora um colar. Pedi ao capitão que aceitasse aquele anel como testemunho de reconhecimento pelos favores dispensados, o que ele recusou terminantemente. Por fim, disse-lhe que examinasse atentamente as calças que eu usava e que eram feitas de pele de rato.

O capitão ficou muito satisfeito com tudo o que lhe contei e disse-me que esperava, quando do nosso regresso à Inglaterra, que eu escrevesse a relação das minhas viagens e a publicasse em volume. Respondi que julgava haver já muitos livros de viagens; que as minhas aventuras não passariam de um simples romance e de uma ridícula  ficção;  que  a  minha  relação  conteria apenas descrições de plantas e de animais extraordinários, de leis, de costumes e usos extravagantes; que essas descrições eram muito vulgares e que já estavam fartos delas; e que, não tendo outra coisa a dizer com respeito às minhas viagens, não valia a pena dar-me o trabalho de descrevê-las. No entanto, agradeci-lhe a lisonjeira opinião que formava a meu respeito.

Pareceu-me admirado de uma coisa: de eu falar tão alto, perguntando-me se o monarca e a soberana desse país eram surdos. Respondi-lhe que era uma coisa a que me habituara havia mais de dois anos e que, por meu lado, admirava a sua voz e a da sua gente, que parecia falar-me sempre ao ouvido, mas que apesar disso, podia ouvi-los muito bem; que, quando falava nesse país, era como um homem que fala da rua para outro que está no alto de um campanário, exceto quando era colocado sobre uma mesa ou equilibrado na mão de qualquer indivíduo. Declarei-lhe que notara outra coisa e era que, a princípio, ao entrar no navio, quando os marinheiros se mantinham de pé junto de mim, pareciam-me infinitamente pequenos; que, durante a minha permanência nesse país, não podia ver-me ao espelho, desde que os meus olhos se haviam habituado a objetos grandes, porque a comparação que fazia tornava-me desprezível a mim próprio. O capitão disse-me, enquanto ceávamos, que tinha notado que eu examinava as coisas com uma espécie de assombro e que algumas vezes lhe parecia que fazia esforços para não soltar uma gargalhada; que, em tais momentos, não sabia como aceitar o caso, mas que o atribuía a um desarranjo mental. Redargui que estava assombrado por haver sido capaz de me conter ao ver os pratos da grossura de uma moeda de prata de três soldos, uma perna de carneiro que era uma simples isca, um copo tão grande como uma casca de noz e, assim sucessivamente, continuei a descrever todo o resto dos seus móveis e das suas coisas, comparativamente; porque, embora a rainha me tivesse dado para meu uso tudo quanto era necessário num tamanho proporcionado à minha estatura, o que é certo é que as minhas idéias estavam completamente entregues ao que via em volta de mim, e fazia como todos os homens que examinam continuamente os outros sem se examinarem a si próprios e sem prestarem atenção à sua pequenez. O capitão, referindo-se ao velho rifão inglês, disse-me que eu tinha mais olhos do que barriga, pois que reparara que não comia com grande apetite; e continuando a gracejar, acrescentou que daria com prazer cem libras esterlinas para ter o gosto de ver a minha caixa no bico da águia e, em seguida, cair de tão grande altura no mar, o que certamente seria um caso muito interessante e digno de ser transmitido aos séculos vindouros.

 

O citado capitão, que regressava de Tonquin, fazia-se de vela para Inglaterra, e fora impelido para o nordeste, a quarenta graus de latitude, e cento e quarenta e três de longitude; como, porém, se levantasse um vento de monção dois dias depois da minha estada a bordo, fomos levados para o norte durante muito tempo; e, costeando a Nova Holanda, fizemo-nos no rumo de oeste-nordeste e depois de sudoeste, até termos dobrado a Cabo da Boa Esperança. A nossa viagem foi muito feliz, mas eu pouparei ao leitor a sua descrição. O capitão aproou a uns dois portos e fez chegar aí o seu escaler para trazer víveres e tomar água; quanto a mim, não saí de bordo senão quando aportamos às Dunas. Isso deu-se, creio, que a 3 de Junho de 1706, quase nove meses depois da minha libertação. Ofereci os meus móveis para garantia do pagamento da minha passagem; o capitão, porém, protestou, dizendo nada querer receber. Despedimo-nos muito afetuosamente e fiz-lhe prometer que iria visitar-me em Redriff. Aluguei um cavalo e um guia por algum dinheiro que o capitão me emprestou.

Durante esta viagem, notando a pequenez das casas, das árvores, do gado e dos habitantes, julguei-me ainda em Lilipute: receei pisar os viajantes que encontrava e muitas vezes gritei para os fazer afastar do caminho, de maneira que em várias ocasiões corri o risco de ficar com a cabeça       partida       por       causa        da       minha impertinência.

Quando cheguei a minha casa, que reconheci a custo, um dos criados abriu-me a porta e eu baixei a cabeça para entrar, com receio de dar alguma cabeçada; essa porta parecia-me um postigo. Minha mulher correu logo para me beijar, mas curvei-me até a altura dos seus joelhos, temendo que não chegasse à boca. Minha filha saltou-me para os joelhos a fim de me pedir a bênção, mas só pude distinguir-lhe as feições quando se levantou, estando desde muito acostumado a estar de pé, com a cabeça e os olhos erguidos para cima. Considerei todos os meus criados e uns dois amigos que ali se encontravam como pigmeus e a mim como um gigante. Disse a minha mulher que ela tinha sido muito frugal, porque eu achava que ela própria estava reduzida, assim como a filha, a coisa nenhuma. Numa palavra, procedi de maneira tão estranha que todos formaram de mim a mesma opinião que o capitão formara quando me viu a bordo, e concluíram que eu ensandecera. Pormenorizo estas coisas para tornar conhecido o grande poder do hábito e do preconceito.

Em pouco tempo me habituei à mulher, à família e aos amigos; minha mulher opinou que eu não tornaria a embarcar; no entanto, a minha má  estrela  ordenou  precisamente  o  contrário, como o leitor poderá verificar pelo seguimento. Entretanto, é aqui que finda a segunda parte das minhas mal-aventuradas viagens.


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