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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO V

Zelo do autor pela honra da sua pátria Faz uma vantajosa proposta ao rei, que a rejeita A literatura deste povo é imperfeita e limitada As suas leis, os seus assuntos militares e os seus partidários de Estado.

 

O amor pela verdade não permitiu que eu calasse esta minha conversa com o rei; este mesmo amor, porém, não me deixou também que me abstivesse de falar, quando vi o meu querido país tratado com tal vilipêndio. Iludi habilmente a mor parte das suas perguntas e dei a cada coisa a mais favorável forma que pude, porque, quando se trata de defender a minha pátria e de manter a sua glória, exalto-me, quando vejo que não há razão; então, nada omito para ocultar os seus defeitos e deformidades e para colocar a sua virtude e beleza na posição mais vantajosa. Foi o que me esforcei por fazer nas diversas conferências que tive com o judicioso monarca; por desgraça, perdi o meu trabalho.

No entanto, necessário é desculpar um rei que vive completamente separado do resto do mundo e que, por conseguinte, ignora os usos e costumes das outras nações. Esse defeito de conhecimentos será sempre a causa de muitos preconceitos e de uma certa maneira limitada de pensar, e que as idéias de virtude e de vício de um príncipe estrangeiro e isolado fossem tidas como regras e como máximas a seguir.

Para confirmar o que acabo de dizer e para fazer ver os desgraçados efeitos de uma educação limitada, relatarei, aqui, uma coisa que, com certo custo, se acreditará. Com o fim de alcançar as boas graças de Sua Majestade, dei-lhe conta de uma descoberta feita há uns quatrocentos anos, um pequeno pó negro que uma pequeníssima centelha podia acender num instante, de tal maneira que seria capaz de fazer ir pelos ares montanhas, com um ruído maior do que o do trovão; que certa quantidade deste pó, sendo metida num tubo de bronze ou de ferro, conforme a sua grossura, fazia sair uma bala de chumbo ou de ferro com tão grande violência e tanta velocidade, que nada era capaz de sustar a sua força; que as balas assim lançadas de um tubo fundido e expelidas pela inflamação daquele pequeno pó, quebravam, voltavam, davam cabo de batalhões, de esquadrões, arrasavam as mais fortes muralhas, deitavam por terra as mais elevadas torres e faziam soçobrar os maiores navios; que esse pó, metido num globo de ferro expelido por certa máquina, queimava, esmagava casas e lançava em todas as direções estilhaços que fulminavam tudo quanto encontrassem; que conhecia a composição desse maravilhoso pó, onde  só  entravam  coisas  vulgares  e  de  preço econômico e que até poderia ensinar aos seus súditos o segredo, se Sua Majestade quisesse; que, por meio deste pó, Sua Majestade derrubaria as mais fortes muralhas da mais potente cidade do seu reino, se alguma vez se sublevasse e ousasse resistir-lhe.

O rei, assombrado com a descrição que lhe fiz dos terríveis efeitos do meu pó, parecia não poder compreender como um inseto impotente, fraco, vil e rasteiro, imaginara tão horrível coisa, e de que ousava falar de forma tão familiar, que parecia olhar como bagatelas a carnificina e desolação que produzia tão pernicioso invento.

— Era preciso — dizia ele — que o seu inventor fosse um gênio mau, inimigo de Deus e das suas obras.

Respondeu que, embora nada lhe agradasse mais do que as novas descobertas, quer na natureza, quer nas artes, preferia perder a coroa a fazer uso de tão funesto segredo, proibindo-me, sob pena de perder a vida, de divulgá-lo a qualquer dos seus súditos; doloroso efeito da ignorância e da tacanhez de espírito de um príncipe sem educação. Este monarca, ornado com todas as qualidades que alcançam a veneração, o amor e a estima dos povos, de espírito forte e penetrante, de grande prudência, de  profunda  ciência,  dotado  de  admiráveis talentos para o governo, quase adorado pelo seu povo, encontra-se estupidamente incomodado por um capricho excessivo e extravagante, de que nunca fizemos idéia na Europa, e deixa fugir uma ocasião que lhe vem parar às mãos para se tornar o senhor absoluto da vida, da liberdade e dos bens de todos os seus súditos.

Não digo isto com o intuito de rebaixar as virtudes e as luzes deste príncipe, a quem, não ignoro, esta narrativa há-de desacreditar no espírito de um leitor inglês; mas asseguro que este defeito não provinha senão da ignorância. Esses povos não tinham ainda reduzido a política a uma arte, como os nossos sublimes espíritos da Europa.

Lembro-me de que, numa conversa que certo dia tive com o rei, disse-lhe que havia entre nós um grande número de volumes escritos acerca da arte de governar, e Sua Majestade formou a esse respeito uma opinião muito baixa do nosso espírito, acrescentando que desprezava e detestava todo o mistério, todo o requinte e toda a intriga nos processos de um príncipe ou de um ministro de Estado. Não podia compreender o que eu queria dizer com os segredos de gabinete.

Quanto a ele, resumira a ciência de governar em estreitíssimos limites, reduzindo-a ao senso comum, à razão, à justiça, à brandura, à rápida decisão dos processos civis e criminais e a outras práticas semelhantes ao alcance de toda a gente e que não merecem referência. Por fim, arriscou este estranho paradoxo que, se alguém pudesse fazer crescer duas espigas ou dois bocados de erva num pouco de terra onde antes só havia um, mereceria mais do gênero humano e prestaria um serviço mais essencial ao seu país do que toda a raça dos nossos sublimes políticos.

A literatura deste povo é muitíssimo limitada e consiste apenas no conhecimento da moral, da história, da poesia e das matemáticas; preciso é, porém, confessar que são excelentes nestes quatro gêneros.

O último dos citados conhecimentos só é aplicado por eles a tudo quanto seja útil, de maneira que o melhor da nossa matemática seria muito pouco apreciado por eles. Com respeito a entidades metafísicas, abstrações e categorias, foi-me impossível fazer que as compreendessem.

Nesse país não é permitido decretar uma lei que empregue mais palavras do que as letras existentes no alfabeto, que é composto de vinte e duas apenas; há até muito poucas leis que tenham tais dimensões. São todas expressas em termos claros e simples, e esses povos não são nem muito vivos, nem muito engenhosos para lhes achar algum sentido; e, além disso, é crime capital   escrever   um   comentário   sobre   qualquer lei.

Possuem desde remotíssimos tempos a arte de imprimir, tão bem como os chineses; as suas bibliotecas, porém, não são grandes; a do rei, que é mais numerosa, é constituída por mil volumes apenas, enfileirados numa galeria de duzentos pés de comprimento, onde tive a liberdade de ver todos os livros que me aprouve. O livro que tive, a princípio, curiosidade de ler, foi colocado em cima de uma mesa sobre a qual me puseram; então, voltando o rosto para o livro, comecei pelo alto da página; passeava por cima dele, para a direita e para a esquerda, cerca de dez passos, conforme o comprimento das linhas, e recuava à medida que caminhava na leitura das páginas. Começava a ler outra página pelo mesmo processo, depois do que a virava, o que com dificuldade pude fazer com as minhas duas mãos, porque o papel era tão espesso e tão seco como papelão. O seu estilo é claro, másculo e suave, mas nunca florido, porque não sabem entre si multiplicar as palavras inúteis e variar as expressões. Percorri muitos dos seus livros, principalmente aqueles que diziam respeito à história e à moral; entre outros, li com prazer um velho tratado que estava no quarto de Glumdalclitch e que se intitulava: Tratado da fraqueza do gênero humano e que apenas era estimado pelas mulheres e pelas classes   menos   elevadas.   Entretanto,   tive   a curiosidade de saber o que um autor desse país podia dizer sobre semelhante assunto. Este escritor fazia ver muito extensamente quanto o homem está pouco em situação de se pôr ao abrigo das injúrias da atmosfera e da fúria dos animais ferozes; quanto era ultrapassado por outros animais, quer em força, quer em velocidade, quer na previdência, quer na indústria. Mostrava que a natureza se tinha degenerado nos últimos séculos e que estava a declinar.

Ensinava que as próprias leis da natureza revelavam absolutamente que tínhamos sido, a princípio, de uma estatura maior e de uma compleição mais vigorosa, para não sermos sujeitos a uma súbita destruição pela queda de uma telha de cima de uma casa, ou de uma pedra arremessada pela mão de uma criança, ou para não nos afogarmos em algum rio. Desses raciocínios, o autor tirava diversas aplicações úteis à conduta da vida. Quanto a mim, não podia deixar de fazer reflexões sobre esta moral e sobre a tendência universal que têm todos os homens de se queixar da natureza e de exagerar os seus defeitos.

Estes gigantes tinham-se como pequenos e fracos. Que somos nós, europeus? Esse mesmo autor dizia que um homem não passava de um verme  da  terra  e  de  um  átomo  e  que  a  sua pequenez devia sempre humilhá-lo. Ai! que sou eu — dizia de mim para mim — eu, que estou abaixo de nada em comparação desses homens que se consideram tão pequenos e tão insignificantes!

Nesse mesmo livro fazia-se ver a vaidade do título de alteza e grandeza, e quanto era ridículo que um homem, que tinha mais de cento e cinqüenta pés de altura, ousasse dizer-se alto e grande. Que pensariam os príncipes e os soberbos senhores da Europa — pensava eu então — se lessem este livro, eles que, com cinco pés e algumas polegadas, pretendem, sem cerimônia, que se lhes dê o tratamento de alteza e de grandeza? Mas, por que é que não exigiam também os títulos de grossura, largura e espessura? Ao menos teriam podido inventar um termo geral para compreender todas essas dimensões e fazer-se chamar vossa extensão. Responder-se-me-á, talvez, que as palavras alteza e grandeza se relacionam com a alma e não com o corpo; mas, se assim é, por que não tomar títulos mais próprios e mais condizentes com um sentido espiritual? Por que não se fizeram tratar por vossa sabedoria, vossa penetração, vossa previdência, vossa liberalidade, vossa bondade, vosso bom senso, vosso belo espírito? É preciso confessar que, como estes títulos teriam sido muito belos e muito honrosos, teriam também semeado  muita  amenidade  nos  cumprimentos dos inferiores, não havendo nada mais divertido do que um discurso cheio de contradições.

A medicina, a cirurgia, a farmacopéia são muito cultivadas nesse país. Entrei, certo dia, num vasto edifício, que julguei ser um arsenal cheio de balas e canhões: era a loja de um boticário; as balas eram pílulas e os canhões, seringas. Comparativamente, os nossos maiores canhões são, em verdade, modestas colubrinas.

Com relação à sua milícia, diz-se que o exército do rei é composto de cento e seis mil homens de pé e de trinta e dois mil de cavalo, se lícito é dar-se esse nome a um exército constituído de negociantes e lavradores, cujos comandantes não são senão seus pares e a nobreza sem recompensa nem soldo algum. São, de fato, bastante perfeitos nos seus exercícios e têm uma disciplina magnífica, o que não é para admirar, visto que os lavradores são comandados pelos seus próprios senhores e os burgueses pelos principais da sua própria cidade, eleitos à maneira de Veneza.

Tive curiosidade de saber por que este príncipe, cujos Estados são inacessíveis, julgava necessário ensinar ao seu povo a prática da disciplina militar; mas depressa soube a razão, quer pelas conversas que entabulei sobre este assunto,  quer  pela  leitura  das  suas  histórias; porque, durante muitos séculos, foram atacados pela doença a que tantos outros governos estão sujeitos: o pariato e a nobreza, disputando muita vez pelo poder, o povo pela liberdade e o rei pelo domínio arbitrário. Estas coisas, ainda que prudentemente temperadas pelas leis do reino, têm ocasionado a criação de facções, ateado paixões e causado guerras civis, a última das quais foi felizmente sufocada pelo avô do príncipe reinante, e a milícia, então estabelecida no reino, foi mantida desde então para prevenir novas desordens.


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