Viagens de Gulliver CAPÍTULO XII
Invectivas do autor contra os viajantes que mentem nas relações — Justifica a sua — O que pensa da conquista, que se quisesse fazer dos países que descobriu.
Dei-lhe, meu querido leitor, uma história completa das minhas viagens durante o espaço de dezesseis anos e sete meses; e, nessa relação, busquei menos ser elegante e enfeitado do que verdadeiro e sincero. Talvez tenha na conta de fábulas e historietas tudo o que narrei e a que naturalmente não encontrou verossemelhança; porém não me apliquei a procurar rodeios sedutores para dar força às minhas narrativas e torná-las críveis. Se me não acredita, queixe-se da sua própria incredulidade; quanto a mim, que não tenho gênio para ficções e possuo uma imaginação muito fria, relatei os fatos com tal simplicidade que devia curá-lo de todas as dúvidas.
É-nos dado a nós, viajantes que vamos a países onde quase ninguém vai, fazer descrições surpreendentes de quadrúpedes, de serpentes, de aves e de peixes extraordinários e raros. Mas que serve isso? O principal fim de um viajante que publica a relação das suas viagens, não deve ser tornar os homens do seu país melhores e mais prudentes e citar-lhes exemplos estrangeiros, seja para bem, seja para mal, para os excitar a praticar a virtude e a fugir do vício? Foi isso o que me propus neste trabalho e creio que me devem agradecer.
De todo o meu coração desejaria que fosse decretado por lei que, antes de qualquer viajante publicar a relação das suas viagens, jurasse em presença do lord grã-chanceler que tudo o que mandasse imprimir, fosse exatamente verdadeiro, ou, pelo menos, que assim o julgasse. O mundo não seria talvez enganado como é todos os dias. Dou antecipadamente o meu voto para essa lei e consinto em que a minha obra só seja impressa depois de que ela vigore.
Na minha mocidade percorri grande número de relações com infinito prazer; mas, desde que dei quase volta ao mundo, e vi coisas com os meus próprios olhos, perdi o gosto por essa espécie de literatura; prefiro ler romances. Desconfio de que o leitor pensa como eu.
Os meus amigos, julgando que a relação que escrevi das minhas viagens tinha um certo ar de verdade, que agradaria ao público, fizeram-me ceder aos seus conselhos e consenti na impressão. Sofri muitos desaires na minha vida, mas nunca tive tendência para mentir, seguindo assim o preceito de Virgílio na Eneida. Sei que não há muita honra em publicar narrações de viagens; que isto não demanda nem gênio nem ciência e que basta possuir uma boa memória ou ter um diário exato; sei também que os fazedores de relações se assemelham aos dicionaristas e são, no fim de certo tempo, eclipsados, como que aniquilados por uma multidão de escritores posteriores, que repetem tudo o que os outros disseram e acrescentam coisas novas. Talvez me aconteça o mesmo; viajantes irão aos países em que estive, inquirirão das minhas descrições, farão cair o meu livro e esquecer, talvez, o que nunca escrevi. Veria isso como uma verdadeira mortificação, se escrevesse para a glória; como, porém, escrevo para utilidade do público, nenhum cuidado me dá e estou preparado para todas as eventualidades.
Desejaria bem que o meu livro tivesse uma crítica severa; porém que se poderia dizer de um viajante que descreve países em que o nosso comércio não tem interesses e em que não se faz referência alguma às nossas manufaturas? Escrevi sem paixão, sem espírito de partido e sem querer ferir ninguém; escrevi para um fim mais nobre, que é a instrução geral do gênero humano; escrevi sem ter em vista interesse algum ou vaidade, de maneira que os observadores, os examinadores, os críticos, os chicaneiros, os tímidos, os políticos e os pequenos gênios intrujões, os espíritos mais difíceis e mais injustos nada terão que dizer-me e não encontrarão ensejo para exercer o seu odioso talento.
Confesso que me fizeram compreender que devia primeiro, como bom súdito e bom inglês, apresentar ao secretário de Estado, no meu regresso, uma memória instrutiva concernente às minhas descobertas, visto como todas as terras que um súdito descobre, pertencem, de direito, à coroa. Entretanto duvido que a conquista dos países de que se trata seja tão fácil como a que Fernando Cortez fez outrora de uma região da América, em que os espanhóis chacinaram tantos pobres índios nus e desarmados. Primeiramente, no que diz respeito ao país de Lilipute, é claro que a sua conquista não é coisa que valha a pena, pois não tiraríamos lucros que pagassem as despesas feitas com uma esquadra e um exército. Pergunto se haverá prudência em ir atacar os Brodbingnagnianos. Seria muito interessante ver um exército inglês fazer ali uma descida! Ficaria contente, se fosse enviado a uma região onde se tem sempre sobre a cabeça uma ilha aérea, pronta a esmagar os rebeldes e com razão maior os inimigos de fora que quisessem se apoderar desse império? É verdade que a conquista do país dos huyhnhnms parece muito acertada. Esses povos ignoram o ofício da guerra; não sabem o que são armas de fogo e armas brancas. Contudo, se eu fosse ministro de Estado, nunca estaria disposto a fazer semelhante conquista. A sua elevada prudência e a sua perfeita unanimidade são armas terríveis. Imagine-se, além disso, cem mil huyhnhnms lançando-se furiosamente sobre um exército europeu. Que carnificina não fariam eles com os dentes e de quantas cabeças e estômagos não dariam cabo com as suas patas traseiras?
Mas, longe de pensar em conquistar o seu país, queria antes que o convidassem a enviar alguns da sua nação para civilizar a nossa, isto é, para a tornar virtuosa e mais sensata.
Uma outra razão evita que eu seja de parecer da conquista dessa região, e de crer que venha a propósito aumentar os domínios de Sua Majestade britânica com as minhas felizes descobertas; esta é a verdade: a maneira por que se toma posse de um novo país descoberto causa- me alguns ligeiros escrúpulos. Por exemplo: um grupo de piratas é impelido por uma tempestade para uma região desconhecida. Um marujo, do alto da gávea, avista terra, e ei-los logo a singrar para lá. Aportam, desembarcam na praia, vêm um povo desarmado que os acolhe bem; logo dão uma nova denominação à terra e apossam-se dela em nome do seu chefe. Erigem um monumento que atesta à posteridade esta bela ação. Em seguida, põem-se a matar duas a três dúzias desses pobres índios e têm a bondade de poupar- lhes outra dúzia, que mandam para as suas cabanas. É este propriamente o ato de posse que o direito divino começa a fundar.
Depois se mandam outros navios a esse mesmo país para exterminar maior número dos naturais; submetem os chefes à tortura para os obrigar a entregar os seus tesouros.
Confesso que o que aí fica não respeita à nação inglesa, que, na fundação das colônias, faz sempre brilhar a prudência e a justiça e que, sob este ponto, pode servir de exemplo a toda a Europa. Sabe-se qual o nosso zelo para fazer conhecer a religião cristã nos países modernamente descobertos e felizmente ocupados; que, para aí fazer praticar as leis do cristianismo, temos o cuidado de mandar pastores muito piedosos e muito edificantes, homens de bons costumes e de bom exemplo, mulheres e donzelas irrepreensíveis e de uma virtude bem demonstrada, valentes oficiais, juízes íntegros e, principalmente, governadores de uma reconhecida probidade, que fazem consistir a sua felicidade na dos habitantes do país, que não exercem tirania alguma, que não têm avareza, ambição, cupidez, mas unicamente muito zelo pela glória e pelos interesses do rei seu amo. De resto, que interesse teríamos nós em querer nos apoderar dos países cuja descrição fiz? Que vantagens tiraríamos do trabalho de acorrentar e matar os naturais? Nesses países não há minas de ouro ou de prata, nem açúcar, nem tabaco.
Se, no entanto, a corte for de parecer contrário, declaro que estou pronto a atestar, quando me interrogarem judicialmente, que, antes de mim, europeu algum pusera os pés nestas mesmas regiões; tomo por testemunhas os naturais, cujo depoimento deve fazer fé. É verdade que se pode fazer chicana com relação a esses dois Yahus que citei, e que, conforme à tradição dos huyhnhnms, apareceram sobre uma montanha e tornaram-se desde então a vergôntea de todos os Yahus que infestam essa região. Não é difícil, porém, provar que esses dois antigos Yahus eram oriundos da Inglaterra; certos traços dos seus descendentes, certas tendências, certas maneiras o fazem pressupor. Quanto ao mais, deixo aos doutores em matérias de colônias discutir este assunto e examinar se não se funda num título claro e incontestável pelo direito da Grã-Bretanha.
Indíce
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