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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO III

O autor é mandado para a corte; a rainha compra-o e o apresenta ao rei Discute com os sábios de Sua Majestade Preparam- lhe um aposento Torna-se favorito da rainha Mantém a honra do seu país As suas questões com o anão da rainha.

 

O trabalho e o cansaço, durante alguns dias, abalaram a minha saúde, porque, quanto mais meu amo ganhava, mais se tornava insaciável. Perdera completamente o apetite e quase me tornara um esqueleto. Meu amo, dando por isso e julgando que pouco tempo teria de vida, resolveu fazer-me valer o mais possível. Enquanto assim raciocinava, um sardral, ou escudeiro do rei, veio dar ordem a meu amo para me levar imediatamente à corte, para divertimento da rainha e de todas as damas. Algumas dessas damas já me haviam visto e relataram coisas estupendas acerca da minha pequena figura, do meu gracioso garbo e da minha fina inteligência. Sua Majestade e a comitiva ficaram extremamente encantadas com as minhas maneiras. Ajoelhei-me e pedi graciosamente vênia para lhe beijar o real pé; esta princesa, porém, apresentou-me o seu dedo mínimo, que abrangi com os meus dois braços e onde pousei, com o máximo respeito, os meus lábios. Dirigiu-me perguntas gerais com referência ao meu país e às minhas viagens, ao que respondi o mais distintamente que me foi possível, empregando poucas palavras; perguntou-me se ficaria satisfeito em viver na corte; fiz uma grande reverência até tocar na mesa em que me haviam colocado, e respondi humildemente ser escravo do meu amo, porém que, se isso apenas dependesse de mim, ficaria encantado em consagrar a minha vida ao serviço de Sua Majestade: em seguida, perguntou a meu amo se queria vender-me. Ele, que supunha que a minha vida não ia além de um mês, ficou radiante com a proposta e fixou o preço da minha venda em mil peças de ouro, que imediatamente lhe foram entregues. Pedi então à rainha que, visto haver- me tornado escravo de Sua Majestade, me concedesse a mercê de que Glumdalclitch, que fora sempre cheia de atenções e cuidados para comigo, fosse admitida em honra do seu serviço e continuasse a ser minha governanta. Sua Majestade concedeu-me isso e bem assim o lavrador, que bem contente se mostrou por ver a filha na corte. Quanto à pobre pequena, não podia ocultar a sua alegria. Meu amo retirou-se e disse-me, ao partir, que me deixava em um bom lugar, ao que apenas redargui com uma cavalheiresca vênia.

A rainha notou a frieza com que acolhera o cumprimento e a despedida do lavrador e perguntou-me  o  motivo.  Tomei  a  liberdade  de responder a Sua Majestade que só devia ao meu antigo amo a obrigação de me não haver esmagado como a um pobre animal inofensivo, achado casualmente nos seus campos; que essa boa ação estava bem paga pelo proveito que tirara, mostrando-me por dinheiro e pela importância que recebera pela minha venda; que a minha saúde estava muito abalada pela minha escravatura e pela obrigação contínua de entreter e divertir a populaça a todas as horas do dia e que, se meu amo não me julgasse a vida em perigo, Sua Majestade não me teria adquirido; como, porém, não tencionava doravante ser tão infeliz sob a proteção de tão boa e tão nobre princesa, ornamento da natureza, admiração do mundo, delícias dos seus súditos e fênix da criação, esperava que as apreensões que sofrera com o meu último amo ficariam sem efeito, pois já achava a minha vida reanimada pela influência da sua augustíssima presença.

Tal foi a súmula do meu discurso, proferido com diversos barbarismos e muitas vezes hesitante.

A rainha, que bondosamente desculpou os defeitos da minha arenga, ficou surpreendida por encontrar tanto espírito e tão bom senso em um pequeno animal; tomou-me nas mãos e levou-me imediatamente ao rei, que estava encerrado no seu  escritório.  Sua  Majestade,  príncipe  muito sério e de rosto severo, não reparando bem à primeira vista na minha figura, perguntou finalmente à rainha desde quando se tornara protetora de um splacnuck (pois me tomara por este inseto). A rainha, porém, que tinha infinito espírito, colocou-me delicadamente sobre a secretária do rei e ordenou-me dissesse eu próprio quem era. Fi-lo em poucas palavras e Glumdalclitch, que ficara à entrada do escritório, não podendo estar muito tempo sem mim, entrou e explicou a Sua Majestade que eu fora encontrado num campo.

O rei, mais sábio do que ninguém dos seus Estados, fora educado no estudo das filosofias e principalmente nas matemáticas. Entretanto, quando viu de perto a minha estatura e o meu aprumo, antes que eu principiasse a falar, imaginou que poderia ser uma artificiosa  máquina como um engenho que faz mover os espetos de assar, ou, melhor, um relógio inventado e executado por um hábil artista; mas, quando notou raciocínio nos sons que emitia, não pôde ocultar o seu espanto.

Mandou chamar três famosos sábios que estavam, então, de serviço na corte (segundo o admirável costume desse país). Esses cavalheiros, depois de terem examinado de perto o meu talhe com a máxima exatidão, discutiram diferentemente  a  meu  respeito.  Eram  todos  de opinião que não podia ser produto que seguisse as leis ordinárias da natureza, porque era destituído da faculdade natural de conservar a minha vida, quer pela agilidade, quer pela facilidade de trepar a uma árvore, quer pelo poder de cavar a terra para fazer buracos onde pudesse ocultar-me, como os coelhos. Os meus dentes, que examinaram detidamente, fizeram-lhes conjecturar que era um animal carnívoro.

Um desses filósofos foi mais longe; disse que eu era um embrião, um aborto; essa opinião, contudo, foi rejeitada pelos outros dois, que observaram que os meus membros eram perfeitos e completos na sua espécie e que tinha vivido muitos anos, o que pareceu evidente na minha barba, cujos pêlos descobriram com um microscópio. Não quiseram afirmar que eu fosse anão porque a minha pequenez estava fora de toda a comparação, e porque o anão favorito da rainha, o menor que até então se vira nesse reino, tinha quase trinta pés de altura. Após grande discussão, concluíram unanimemente que eu não passava de um replum sealcath, o que, sendo interpretado literalmente, queria dizer lusus naturae, decisão muito conforme com a filosofia moderna da Europa, cujos professores, desprezando o velho subterfúgio das causas ocultas, a favor das quais os sectários de Aristóteles tentam mascarar a sua ignorância, inventaram esta maravilhosa solução de todas as dificuldades   da   física.   Admirável  progresso   da ciência humana!

Feita esta conclusão decisiva, tomei a liberdade de proferir algumas palavras: Dirigi-me ao soberano e protestei a Sua Majestade que vinha de uma região em que a minha espécie se encontrava em muitos milhões de indivíduos de ambos os sexos, em que os animais, as árvores e as casas eram proporcionais ao meu tamanho, e onde, por conseguinte, podia sentir-me em condições de defender-me e encontrar o meu sustento, as minhas necessidades e as minhas comodidades, do mesmo modo que qualquer súdito de Sua Majestade. Esta resposta fez sorrir desdenhosamente os filósofos, que replicaram que o lavrador me ensinara bem e que eu sabia a lição na ponta da língua. O rei, que tinha um espírito mais esclarecido, despedindo os sábios, mandou chamar o lavrador que, por felicidade, ainda não saíra da cidade. Tendo-o, pois, interrogado particularmente, e em seguida acareando-o comigo e com a pequena, Sua Majestade principiou a acreditar que o que eu dissera podia muito bem ser verdade. Rogou à rainha que desse ordem para que tivessem comigo um cuidado muito especial, e foi de opinião que me deixassem continuar sob a tutela de Glumdalclitch, ao notar que tínhamos uma grande afeição mútua.

 

A rainha ordenou ao seu carpinteiro que fizesse uma caixa que me pudesse servir de quarto de dormir, conforme o modelo que eu e Glumdalclitch lhe fornecêssemos. Este homem, que era um artífice muito hábil, fez-nos, em três semanas, um quarto de madeira com dezesseis pés de largo e doze de alto, com janelas, uma porta e dois aposentos.

Um outro operário excelente, que se tornara célebre pelas curiosas bugigangas que fabricava, lembrou-se de me fazer duas cadeiras de um material parecido com marfim, e duas mesas com um armário, para eu guardar as minhas roupas; em seguida, a rainha mandou procurar pelos mercadores as mais finas fazendas para me fazer uma roupa.

Esta princesa gostava tanto de me ouvir conversar, que não podia jantar sem mim. Tinha uma mesa colocada sobre aquela em que Sua Majestade comia, com uma cadeira em que me sentava. Glumdalclitch permanecia de pé sobre um tamborete, perto da mesa, para poder tomar conta de mim.

Certo dia, o príncipe, ao jantar, quis ter o prazer de conversar comigo, fazendo-me perguntas concernentes a costumes, religião, leis, governo e literatura da Europa, a que eu respondi o  melhor  que  pude.  O  seu  espírito  era  tão apurado e o seu juízo tão seguro, que fez reflexões e observações muito sensatas sobre tudo quanto lhe disse; referindo-se a dois partidos, que dividem a Inglaterra, perguntou-me se eu era whig ou tory; depois, virando-se para o seu ministro, que se postara por detrás dele, empunhando um bastão branco tão alto como o mastro do Soberano Real, disse:

— Como a grandeza humana pouco vale, pois que vis insetos têm também ambição pelas classes e distinções entre si! Têm pequenos farrapos que envergam, tocas, gaiolas, caixas, a que chamam palácios e solares; equipagens, librés, títulos, empregos, funções, paixões, como nós. Entre eles ama-se, odeia-se, engana-se, trai- se, como aqui.

Era assim que filosofava Sua Majestade, na ocasião em que lhe falara na Inglaterra, e eu sentia-me confuso e indignado de ver a minha pátria, a senhora das artes, a soberana dos mares, o árbitro da Europa, a glória do Universo, tratada com tanto desprezo.

Não havia nada que me ofendesse e me incomodasse mais do que o anão da rainha, que, sendo de uma estatura até então não vista naquele país, se tornou de extrema insolência na presença de um homem muito menor do que ele. Olhava-me com ar altivo e desdenhoso e zombava incessantemente da minha pequena estatura. Vinguei-me, apenas, tratando-o como irmão. Um dia, durante o jantar, o malévolo anão, aproveitando o ensejo, em que não pensava em coisa alguma, tomou-me pelo meio do corpo e deixou-me cair num prato de leite, desaparecendo logo. Fiquei apenas com as orelhas de fora e, se não fora um excelente nadador, decerto morreria afogado. Glumdalclitch, nessa ocasião, estava casualmente na parte oposta do aposento. A rainha ficou tão consternada com este acidente, que lhe faltou presença de espírito para me acudir; a minha pequena governanta, porém, correu logo em meu auxílio e tirou-me habilmente do prato, depois de eu ter bebido mais de meia canada de leite. Meteram-me na cama; entretanto, só sofri o desaire de perder a roupa, que ficou toda manchada. O anão foi castigado e eu senti certo prazer em assistir a esse castigo.

Vou agora fazer ao leitor uma ligeira descrição desse país, tanto pelo que pude conhecê-lo, como pelo que dele percorri. Toda a extensão do reino é aproximadamente de três mil léguas de comprimento e de duas mil e quinhentas de largura; daqui concluo que os nossos geógrafos da Europa se enganam, quando julgam que apenas há mar entre o Japão e a Califórnia. Imaginei sempre que devia haver daquele lado um grande continente, para servir de contrapeso ao grande continente da Tartária.

 

Devem, pois, corrigir-se os mapas e juntar esta vasta extensão do país à parte nordeste da América; e para isso estou disposto a auxiliar os geógrafos com as minhas luzes. Este reino é quase uma ilha, terminada ao norte por uma cadeia de montanhas que tem pouco mais ou menos trinta milhas de altitude, e de onde não é fácil a aproximação por causa dos vulcões, que são em grande número no cimo.

Os mais sábios ignoram que espécie de mortais habita além dessas montanhas, nem mesmo se lá existem habitantes. Não há porto algum nesse reino, e os locais da costa onde os rios vão perder-se no mar, são tão cheios de rochedos altos e escarpados, e o mar está ordinariamente tão agitado, que não há quase ninguém que se aventure a ele, de maneira que esses povos são excluídos de todo o comércio com o resto do mundo. Nos grandes rios pululam sempre excelentes peixes; assim, raramente se pesca no oceano, porque os peixes do mar são do mesmo tamanho dos da Europa e, com relação a eles, não merecem ser pescados; daí a evidência de que a natureza, na produção de plantas e animais de talhe enorme, se limita completamente a este continente, e, sob este ponto de vista, recorro aos filósofos. No entanto, apanham-se às vezes, na costa, baleias com que aquele povo se sustenta e se delicia. Vi uma dessas  baleias,  tão  grande,  que  um  homem daquela região mal a podia levar às costas. Às vezes, por curiosidade, trazem-nas em cestos a Lorbrulgrud; vi um pedaço num prato à mesa do rei.

A região é muito povoada, porque contém cinqüenta e uma cidades, perto de cem burgos cercados de muralhas, e bem importante número de aldeias e lugarejos. Para satisfazer a curiosidade do leitor, bastará talvez dar a descrição de Lorbrulgrud. Esta cidade fica situada sobre um rio que a atravessa e a divide em duas partes quase iguais. Contém mais de oitenta mil casas e perto de seiscentos mil habitantes; tem de comprimento três glonglus (que são cerca de cinqüenta e quatro milhas inglesas) e dois e meio de largo, segundo a medida que tomei sobre o mapa real, levantado por ordem do rei, que foi estendido no chão de propósito para eu ver, e tinha cem pés de comprimento.

O palácio do rei é um edifício bastante irregular; ê antes um amontoado de edifícios, que têm perto de sete milhas de circuito; os principais aposentos têm a altura de duzentos e quarenta pés, tendo largura proporcional.

Cederam um coche para Glumdalclitch e para mim, a fim de vermos a cidade, as praças e os monumentos. Suponho que o coche era quase um quadrado  como  a  sala  de  Westminster,  não, porém, tão alto. Um dia, fizemos parar o coche em diversas lojas, onde os mendigos, aproveitando o ensejo, se amontoaram junto das portinholas e me patentearam os mais horrorosos espetáculos que foi dado ver a olhos ingleses. Como eram disformes, estropiados, sujos, cheios de chagas, de tumores que à minha vista pareciam enormes, peço ao leitor que ajuíze da impressão que essas misérias me causaram e me poupe o descrevê-los.

As aias da rainha pediam muitas vezes a Glumdalclitch que as visitasse nos seus aposentos e que fosse eu com ela, para terem o prazer de me ver de perto e tocar-me. Diversas vezes me despiam e me punham nu dos pés à cabeça, para melhor examinarem a delicadeza dos meus membros. Nesse estado, gabavam-me, metiam-me às vezes no seio e faziam-me mil carícias; nenhuma delas, porém, tinha a pele tão macia como Glumdalclitch.

Estou persuadido de que não tinham más intenções; tratavam-me sem cerimônia, como uma criatura sem raciocínio, despiam-se à vontade e tiravam a própria camisa na minha presença sem tomar as precauções que a  decência e o pudor exigem. Estava, entretanto, colocado em cima das cômodas, defronte delas e era obrigado, embora constrangido, a vê-las completamente   nuas.   E   digo   constrangido, porque, na verdade, essa vista não me dava tentação alguma nem o menor prazer. A sua pele parecia-me áspera, pouco unida e de diferente coloração, com manchas aqui e ali, do tamanho de pratos; os seus compridos cabelos caídos pareciam pedaços de fitas; nada digo acerca de outros sítios do corpo, donde é preciso concluir que a beleza das mulheres, que tanta emoção nos causa, não passa de uma coisa imaginária, pois que as mulheres da Europa se assemelhariam a essas mulheres a que acabo de aludir, se os nossos olhos fossem microscópicos. Suplico ao belo sexo do meu país que não se melindre com esta minha observação. É coisa de pouca monta para as belas, serem feias a olhos penetrantes que nunca verão. Os filósofos sabem bem o que isto é; quando, porém, olham uma beleza, vêm-na como toda a gente e já não são filósofos. A rainha, que conversava muitas vezes comigo acerca de minhas viagens por mar procurava todos os ensejos possíveis para me distrair, quando me via melancólico. Perguntou-me, certo dia, se tinha destreza para manejar uma vela ou um remo, e se um pouco de exercício nesse gênero não conviria à minha saúde. Respondi que conhecia muito bem dos dois, porque, embora o meu emprego particular fosse o de cirurgião, isto é, médico da armada, fui, muitas vezes, obrigado a trabalhar como marinheiro, mas ignorava como isso se fazia neste país, onde o barco menor era igual a um navio de guerra de primeira ordem entre nós; demais, um navio proporcionado à minha estatura e às minhas forças não poderia flutuar durante muito tempo naquelas águas, e não poderia governá-lo. Sua Majestade disse-me que, se eu quisesse, o seu carpinteiro de navios faria um pequeno barco e me escolheria um lugar próprio, em que eu pudesse navegar. O carpinteiro de navios, seguindo as minhas indicações, construiu, no prazo de dez dias, um pequeno navio com todas as suas cordagens, capaz de conter comodamente oito europeus. Assim que o deu pronto, a rainha ordenou ao construtor que fizesse um tanque de madeira, com o comprimento de trezentos pés, a largura de cinqüenta e a profundidade de oito, o qual era bem alcatroado para impedir que a água saísse; foi colocado no chão, ao longo da parede, numa sala exterior do palácio: tinha uma torneira perto do fundo para deixar sair a água de tempos a tempos, e dois criados podiam-no encher em meia hora. Foi aí que remei para meu divertimento, tanto como para divertir a rainha e as suas damas, que sentiram grande prazer em ver a minha agilidade e jeito. Algumas vezes içava a vela e o meu único trabalho era governar o leme, enquanto as damas faziam vento com os leques; quando se encontravam cansadas, alguns pajens impeliam e faziam andar o navio com o seu sopro, enquanto  eu  mostrava  a  minha  destreza  a estibordo e a bombordo, conforme me apetecia. Quando acabava, Glumdalclitch guardava o navio no seu quarto e suspendia-o de um prego para secar.

Durante este exercício aconteceu-me um dia um acidente que me ia custando a vida, porque um dos pajens colocou o meu navio no tanque, e uma mulher da comitiva de Glumdalclitch levantou-me muito delicadamente para me meter no navio; mas, escorregando-lhe pelos dedos, cairia infalivelmente da altura de quarenta pés para a coberta, se não fosse detido por um grande alfinete, que estava preso no avental dessa mulher. A cabeça do alfinete passou por entre a camisa e o cós das calças e assim fiquei suspenso no ar pelos fundilhos, até que Glumdalclitch veio em meu auxílio.

Doutra vez, um dos criados, cuja função consistia em mudar a água ao meu tanque de três em três dias, foi tão desastrado que deixou cair à água uma enorme rã, sem que desse por isso.

A rã esteve oculta até o momento em que embarquei; então, vendo que tinha onde pousar- se, trepou para o navio e fê-lo inclinar de tal maneira que me vi obrigado a fazer contrapeso do lado oposto, para evitar que o navio submergisse, e depois, usando dos remos, forcei-a a sair.

 

Vou agora narrar o maior perigo que corri neste reino. Glumdalclitch tinha-me fechado à chave no seu quarto, saindo para negócios ou para fazer alguma visita. Era no verão e a janela do quarto e bem assim as janelas e a porta dos meus aposentos encontravam-se abertas; enquanto estava sentado tranqüila e melancolicamente perto da mesa, ouvi qualquer coisa entrar pela janela e andar aos pulos de um lado para outro. Ainda que ficasse um pouco assustado, tive coragem de olhar para fora, sem porém me levantar da cadeira; vi então um animal a pular e a saltar para todos os lados, o qual, por fim, se aproximou da minha caixa; este animal, que era um macaco, olhando para dentro e em todas as direções, causou-me tal terror que não tive a presença de espírito suficiente para me meter debaixo da cama, como podia fazer com grande facilidade. Depois de muitas caretas e cabriolas, descobriu-me, e, metendo uma das mãos pela abertura da porta, como costuma fazer um gato que brinca com um rato, embora mudasse muitas vezes de lugar para me pôr a salvo, agarrou-me pelas bandas do colete, (que era de fazenda desse país, muito espessa e muito forte) e puxou-me para fora. Agarrou-me com a mão direita e segurou-me como uma ama segura uma criança que vai amamentar, do mesmo modo que eu vi fazer à mesma espécie de animal com um  gato  da  Europa.  Quando  me  debatia, apertava-me com tanta força, que me pareceu que o melhor partido a tomar era ficar sossegado e ceder a tudo quanto lhe aprouvesse. Tenho alguns motivos para crer que me tomou por um pequeno macaco, porque, com a outra mão, afagava-me o rosto. Foi repentinamente interrompido por um ruído à porta do aposento, como se alguém tentasse abri-la; de súbito, saltou pela janela por onde tinha entrado, e daí, para os beirais, caminhando sobre as três mãos e segurando-me com a quarta, até que atingiu um telhado que ficava contíguo ao nosso. Nesse instante ouvi que Glumdalclitch soltava estridentes gritos. A pobre moça estava num grande desespero e toda essa parte do palácio ficou sobressaltada; os criados correram em busca de enxadas; o macaco foi visto por muitas pessoas sentado na empena de um edifício, segurando-me como uma boneca numa das mãos e dando-me de comer com a outra, metendo-me na boca algumas carnes que tinha apanhado, e batendo-me, quando eu não queria comer, o que era motivo de galhofa para a gentalha que me via debaixo, no que tinha razão porque, salvo para mim, a coisa tinha sua graça. Alguns atiraram pedras na esperança de fazer descer o macaco, mas foram logo proibidos disso pelo receio que tinham de me partir a cabeça.

As escadas foram montadas e muitos homens subiram-nas. Logo o macaco, aterrado, deixou o campo livre e largou-me sobre um beiral. Então, um dos lacaios da minha dona, excelente rapaz, subiu e, metendo-me na algibeira das calças, fez- me descer com segurança.

Estava quase sufocado com as porcarias que o macaco me tinha metido nas goelas; a minha querida dona, porém, deu-me um vomitório que me aliviou. Estava tão fraco e tão moído pelos apertões deste animal, que fui obrigado a recolher à cama, onde permaneci durante quinze dias. O rei e toda a corte mandaram perguntar por mim todos os dias. O macaco foi condenado à morte e foi lavrado um decreto em que se proibia a posse de um animal deste gênero nas imediações do palácio. Da primeira vez que, depois de estar completamente restabelecido, me apresentei ao rei para lhe agradecer todos os seus cuidados, deu-me a honra de chalacear muito a respeito deste caso; perguntou-me quais tinham sido os meus pensamentos e reflexões, enquanto estive nas mãos do macaco; que gosto tinham os alimentos que me dera, e se o ar fresco, que respirara no telhado, me não aguçara o apetite. Desejou muito saber o que faria em tal situação no meu país. Disse a Sua Majestade que na Europa não havia macacos, à exceção de dois que tinham trazido de países estrangeiros, e que eram tão pequenos que ninguém podia temê-los e que, com respeito àquele enorme animal, (era, de fato, tão  grande  como  um  elefante),  se  o  medo  me houvesse dado tempo para pensar nos meios de recorrer à minha espada, (e proferindo estas palavras, tomei um ar altivo e levei a mão ao punho da espada), quando meteu a mão no meu quarto, talvez lhe fizesse tal ferimento que o obrigasse a retirar-se mais depressa do que viera. Pronunciei estas palavras num tom enérgico, como uma pessoa ciosa de sua honra e que tem sentimentos. No entanto, o meu discurso apenas produziu uma gargalhada, e todo o respeito devido a Sua Majestade por parte daqueles que o rodeavam, não pôde retê-los, o que me fez refletir sobre a tolice de um homem que tenta dignificar- se em presença dos que estão fora de todos os graus de igualdade ou de comparação para com eles; e, entretanto, o que então me aconteceu, vi repetir-se muitas vezes em Inglaterra, onde um homenzinho se orgulha, se faz valer, finge de fidalgote e ousa tomar ares importantes como grandes do reino, porque tem algum talento.

Fornecia todos os dias à corte matéria para algum ridículo, e Glumdalclitch, embora me estimasse com grandes extremos, era bastante maliciosa para informar a rainha das asneiras que eu às vezes fazia, supondo que, referindo-as, podia fazer rir Sua Alteza. Tendo-me um dia, por exemplo, apeado do coche em passeio, acompanhado por Glumdalclitch, levado por ela dentro da caixa, desatei a andar; havia excremento de vacas pelo caminho; quis, para demonstrar a minha agilidade, saltá-lo; por infelicidade, porém, saltei mal e caí exatamente no meio, de maneira que fiquei todo sujo. Tiraram-me dali a custo e um dos lacaios limpou- me o melhor que pôde com um lenço. A rainha foi depressa sabedora daquela impertinente aventura e os lacaios divulgaram-na por toda parte.


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