Skip to main content

Viagens de Gulliver

Capítulos 12

© Todos os direitos reservados.

Viagens de Gulliver CAPÍTULO IX

Dos struldbruggs ou imortais.

 

 

Os Luggnaggianos são um povo muito delicado e valente e, embora tenham um pouco desse orgulho que é comum a todas as nações do Oriente, são, contudo, probos e educados com respeito a estrangeiros, principalmente com aqueles que são bem recebidos na corte.

Travei conhecimento e liguei-me com pessoas de grande conhecimento e de bom aspecto e, com o recurso do meu intérprete, tive com elas conversas agradáveis e instrutivas.

Um deles perguntou-me certo dia se tinha visto alguns dos seus struldbruggs, ou imortais. Respondi-lhe negativamente e que tinha muita curiosidade em saber como é que podiam ter dado aquele nome a humanos; disse-me que algumas vezes (embora raramente) nascia numa família uma criança com uma mancha vermelha e redonda, colocada diretamente na sobrancelha esquerda, e que essa feliz mancha a preservava da morte; que essa mancha era a princípio do diâmetro de uma moeda de prata (a que nós, em Inglaterra, chamamos three pence ) e que depois aumentava e até mudava de cor; que dos doze aos vinte anos era verde, data em que se tornava azul, até aos quarenta, em que se fazia completamente verde e tão grande como um shilling, e depois não mudava; acrescentou que nasciam tão poucas crianças com essa mancha na testa que apenas existiam mil e cem imortais de ambos os sexos em todo o reino; que havia quase uns cinqüenta na capital e que havia três anos não nascia uma criança dessa espécie, que fosse do sexo feminino; que o nascimento de um imortal não era concedido a uma determinada família; que era um presente da natureza ou do acaso, e que os próprios filhos dos struldbruggs nasciam mortais como os filhos dos outros homens, sem ter privilégio algum.

Esta narrativa agradou-me extremamente, e à pessoa que ma contava, entendendo a língua dos Balnibarbos, que falava à vontade, testemunhei a minha admiração e a minha alegria com as palavras mais expressivas e mais desusadas. Exclamei, com uma espécie de entusiasmo:

— Feliz nação, cujos filhos ao nascer podem alcançar a imortalidade! Feliz região, em que os exemplos dos tempos passados se mantém sempre, em que a virtude dos primeiros séculos subsiste ainda, e em que os primeiros homens vivem ainda e viverão eternamente, para dar lições de prudência a todos os seus descendentes! Felizes os  sublimes  struldbruggs,  que  têm  o privilégio de não morrer e a quem, por conseguinte, a idéia da morte não intimida, não enfraquece, não quebra.

Demonstrei, em seguida, que ficara surpreendido por não ter ainda visto nenhum desses imortais na corte; que, se alguns havia, a gloriosa mancha estampada na testa saltaria logo à vista.

— Por que o rei — acrescentei — que é um príncipe tão judicioso, não os emprega no ministério e não lhes confere a sua confiança?

Mas talvez a rígida virtude desses velhos importunasse e ferisse os olhos da sua corte. Ainda que assim fosse, estava resolvido a falar no assunto a Sua Majestade na primeira ocasião que se me deparasse, e quer ele tivesse como boa a minha opinião, quer não, aceitaria em todo o caso o alojamento que teve a bondade de oferecer-me nos seus Estados, a fim de poder passar o resto dos meus dias na ilustre companhia desses homens imortais, contanto que se dignassem aturar-me.

Aquele a quem dirigi a palavra, olhando-me então com um sorriso que denotava a minha ignorância, que lhe causava dó, respondeu-me que estava encantado por eu desejar ficar no país, e pediu licença para explicar aos outros o que eu acabava de dizer; fê-lo e, durante algum tempo, conversaram entre si na sua linguagem que eu não compreendia; não pude sequer ler- lhes, nos gestos ou nos olhos, a impressão que o meu discurso causara nos seus espíritos. Por fim, a mesma pessoa que me falara até então, disse- me delicadamente que os seus amigos estavam cativados com as minhas reflexões judiciosas sobre a felicidade e as vantagens da imortalidade, mas desejavam saber que sistema de vida seguiria e quais seriam as minhas ocupações e as minhas vistas, se a natureza me tivesse feito nascer struldbrugg.

A essa interessante pergunta retorqui que ia satisfazê-los imediatamente com prazer, que as suposições e as idéias me custavam pouco e que estava habituado a imaginar o que teria feito, se tivesse sido rei, general do exército ou ministro de Estado; que, com relação à imortalidade, meditara algumas vezes sobre o modo de proceder de que usaria se tivesse de viver eternamente e que, em vista do que me dizia, ia dar largas à minha imaginação.

Disse, pois, que, se tivesse tido a vantagem de nascer struldbrugg, logo que pudesse conhecer a minha felicidade e perceber a diferença que existia entre a vida e a morte, teria, primeiramente, metido mãos à obra, para me tornar rico, e que à força de ser intrigante, subtil e rasteiro, poderia esperar ver-me um pouco à vontade ao cabo de duzentos anos; que, em segundo lugar, me aplicaria muito seriamente ao estudo dos meus primeiros anos, que poderia orgulhar-me de me tornar, um dia, o homem mais sábio do universo; que observaria com cuidado todos os grandes acontecimentos; que examinaria com atenção todos os príncipes e todos os ministros de Estado que se sucedessem uns aos outros; teria tido o prazer de comparar todos os seus caracteres e de fazer sobre esse assunto as mais belas reflexões do mundo; que teria traçado uma memória fiel e exata de todas as revoluções da moda e da linguagem, e das mudanças havidas nos costumes, leis, usos e até nos prazeres; que, por esse estudo e por essas observações, me tornaria, por fim, um museu de antigüidades, um registro vivo, um tesouro de conhecimentos, um dicionário falante, o orador perpétuo dos meus compatriotas e de todos os meus contemporâneos.

—Nestas circunstâncias, nunca me casaria, — acrescentei — e levaria uma vida de rapaz alegre, livremente, economicamente a fim de que, vivendo sempre, tivesse sempre de que viver. Ocupar-me-ia em formar o espírito de alguns rapazes, dando-lhes parte das minhas luzes e da minha longa experiência. Os meus verdadeiros amigos, os confidentes, os meus companheiros seriam os meus ilustres confrades struldbruggs, de  que  escolheria  uma  dúzia  de  entre  os  mais velhos, para com eles me ligar mais estreitamente. Não deixaria de freqüentar também alguns mortais de merecimento, que me habituaria a ver morrer sem desgosto e sem pesar, pois a posteridade me consolaria da sua morte; poderia até ser para mim um espetáculo bastante agradável, do mesmo modo que um jardineiro sente prazer em ver as tulipas e os cravos do seu jardim nascerem, morrerem e tornarem a nascer. Comunicaríamos mutuamente, entre nós struldbruggs, todas as notas e observações que fizéssemos sobre a causa e o progresso da corrupção do gênero humano. Comporíamos a esse respeito um excelente tratado de moral, cheio de lições úteis e capazes de impedir a natureza humana de degenerar, como o fizera dia a dia, e pelo que é censurada há dois mil anos. Que espetáculo nobre e encantador não seria ver com os seus próprios olhos as decadências e as revoluções dos impérios, a face da terra renovada, as cidades soberbas transformadas em cidades burguesas ou tristemente amortalhadas nas suas vergonhosas ruínas; as aldeias obscuras tornadas a habitação dos reis e dos seus cortesãos; os rios célebres transformados em pequenos regatos; o oceano banhando outras praias; novas regiões descobertas; um mundo desconhecido, saindo, por assim dizer, do caos; a barbárie e a ignorância   espalhadas   pelas   nações   mais delicadas e mais esclarecidas; a imaginação extinguindo o juízo; o juízo gelando a imaginação; o amor pelos sistemas, pelos paradoxos, pelo empolado, pelas subtilezas e antíteses, sufocando a razão e o bom gosto; a verdade oprimida hoje e triunfante amanhã; os perseguidos tornados perseguidores e os perseguidores, perseguidos por sua vez; os soberbos, abatidos, e os humildes, glorificados; os escravos, os libertos, os mercenários, conseguindo uma fortuna imensa com a administração dos fundos públicos, com as desgraças, fome, sede, nudez e sangue dos povos; enfim, a posteridade desses salteadores públicos reduzida ao nada, de onde a rapina e a injustiça os haviam tirado! Como, nesta situação de imortalidade, a idéia da morte nunca estaria presente no espírito para me perturbar ou para arrefecer os meus desejos, entregar-me-ia a todos os prazeres sensíveis de que a natureza e o raciocínio me permitissem o uso. Contudo, as ciências seriam sempre o meu primeiro e mais querido cuidado; suponho que, à força de meditar, encontraria por fim as longitudes, a quadratura do círculo, o moto perpétuo, a pedra filosofal e a panacéia universal; que, numa palavra, levaria todas as ciências e todas as artes à sua última perfeição.

Logo que findei a minha prédica, o único que tinha compreendido voltou-se para a assembléia e fez dela um extrato na linguagem do país; depois de o ouvir, puseram-se a raciocinar juntos durante certo tempo, sem que, no entanto, testemunhassem, ao menos pelos seus gestos e atitudes, desprezo algum pelo que acabava de dizer. Por fim, todos, de comum acordo, pediram por favor e caridade à mesma pessoa que resumira o meu discurso, que me abrisse os olhos e me emendasse os erros.

Disse-me primeiramente que não era o único estrangeiro que olhava com espanto e com inveja a situação dos struldbruggs; que encontrara nos Balnibarbos e nos Japoneses pouco mais ou menos as mesmas exposições; que o desejo de viver era natural do homem; que aquele que tinha um pé para a cova, se esforçava por se manter firme no outro; que o velho mais corcovado imaginava sempre um amanhã e um futuro e apenas encarava a morte como um mal longínquo e fugidio; mas, na ilha de Luggnagg se pensava de um modo bem diferente, e que o exemplo familiar e a contínua presença dos struldbruggs haviam preservado os habitantes desse insensato amor pela vida.

— O sistema de conduta — continuou ele — que se propunha na suposição de ser imortal e que há pouco traçou, é ridículo e completamente contrário a todo o raciocínio. Supôs, decerto, que, nesse estado, gozaria de uma eterna mocidade, de um vigor e de uma saúde de ferro. Mas, quando perguntámos o que faria se tivesse de viver sempre, supusemos porventura que nunca envelhecesse e a sua pretendida imortalidade fosse uma eterna primavera?

Em seguida, descreveu-me os struldbruggs, dizendo que eram semelhantes aos mortais e como eles viviam até aos trinta anos; que, depois dessa idade, caíam a pouco e pouco em negra melancolia, que aumentava sempre até atingirem os oitenta; que, por então, não eram apenas sujeitos a todas as enfermidades, a todas as misérias e a todas as fraquezas dos velhos dessa idade, mas a aflitiva idéia da eterna duração da sua miserável caducidade os atormentava a tal ponto que nada podia consolá-los; que não eram simplesmente, como todos os outros velhos, cabeçudos, rabugentos, avarentos, carrancudos, linguareiros, mas gostavam de si próprios, renunciavam às doçuras da amizade, não dispensavam ternura a seus filhos e que, além da terceira geração, já não reconheciam a posteridade; que a inveja e a raiva os devoravam continuamente; e que a vista dos sensíveis prazeres de que usufruem os juvenis mortais, os seus divertimentos, os seus amores, os seus exercícios os faziam de certo modo morrer a cada momento; que tudo, até a própria morte dos velhos que pagavam o tributo à natureza, lhes excitava a raiva e os mergulhava no desespero; que,  por  essa  razão,  todas  as  vezes  que  viam realizar-se um enterro, maldiziam a sua sorte e se queixavam amargamente da natureza, que lhes recusara a doçura de morrer, de acabar a sua aborrecida carreira para entrar num eterno repouso; que já não se encontravam em estado de cultivar o espírito; que a memória enfraquecia; que mal se lembravam do que tinham visto e aprendido na sua mocidade e na idade madura; que os menos miseráveis eram os que tinham entontecido, que tinham perdido completamente a memória e estavam reduzidos ao estado infantil; esses, ao menos, encontravam quem se condoesse deles, dando-lhes todos os recursos de que necessitavam.

— Quando um struldbrugg — acrescentou — se casa com uma struldbrugg, o casamento, conforme as leis do Estado, é dissolvido logo que o mais novo dos dois chegue aos oitenta anos. É justo que desgraçados entes humanos, condenados, contra a vontade e sem o haverem merecido, a viver eternamente, não sejam ainda, para acréscimo de desgraça, obrigados a viver com uma mulher eterna. O que é mais triste ainda é que, depois de ter atingido esta idade fatal, são olhados como mortos civilmente. Os seus herdeiros apoderam-se dos seus bens; são- lhes dados tutores, ou antes, são despojados de tudo e reduzidos a uma simples pensão alimentícia (lei muito justa em virtude da sórdida avareza  comum  aos  velhos).  Os  velhos  são mantidos por custeio público numa casa chamada: hospital dos imortais pobres. Um imortal de oitenta anos já não pode exercer um emprego ou função alguma; não pode negociar, não pode contratar, não pode comprar nem vender e o seu próprio testemunho não é reconhecido em justiça. Quando, porém, atingem noventa anos, ainda é pior: todos os dentes e cabelos caem; perdem o paladar e bebem e comem sem prazer algum; perdem a noção das coisas mais fáceis de reter, e esquecem o nome dos amigos e às vezes o próprio. Torna-se-lhes por este motivo inútil entreterem-se com a leitura, pois que, quando querem ler uma frase de quatro palavras, esquecem as duas primeiras, enquanto lêem as duas últimas. Pelo mesmo motivo lhes é impossível conversar com alguém. Além disto, como a língua deste país está sujeita a freqüentes mudanças, os struldbruggs nascidos num século têm muito trabalho em compreender a linguagem dos homens nascidos noutro século, e são sempre estrangeiros na sua pátria.

Tais foram os pormenores que me forneceu a respeito dos imortais desse país, pormenores que me surpreenderam em extremo. Em seguida, mostrou-me uns seis, e confesso que nunca vi nada mais feio e mais desagradável; as mulheres, sobretudo, eram horrorosas; imaginei ver espectros.

O leitor decerto compreenderá que perdi, então, toda a vontade de tornar-me imortal por semelhante preço. Fiquei vexadíssimo com as loucas imaginações a que me entregara sobre o sistema de uma vida eterna neste baixo mundo.

O rei, sabendo da conversa que eu mantivera com aqueles de quem falei, riu muito das minhas idéias sobre a imortalidade e a inveja que eu sentira pelos struldbruggs. Em seguida, perguntou-me muito a sério se eu queria levar comigo dois ou três exemplares deles para o meu país, para curar os meus compatriotas do desejo de viver e do medo de morrer. No íntimo, sentiria muito prazer em que me tivesse feito esse presente; mas por uma lei fundamental do reino é proibido aos imortais sair dele.


  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!

Deixe um comentário

Você está comentando como visitante.
  • Na Literaz, a leitura gratuita é possível graças à exibição de anúncios.
  • Ao continuar lendo, você apoia os autores e a literatura independente.
  • Obrigado por fazer parte dessa jornada!