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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO IV

Diversas idéias do autor para agradar ao rei e à rainha O rei informa-se acerca da Europa, de que o autor lhe faz um relatório As observações do rei sobre este assunto.

 

Eu costumava ir ter com o rei, quando ele se levantava, uns três dias por semana, e encontrava-me lá muitas vezes quando o barbeavam, o que, a princípio, me fazia tremer: a navalha do barbeiro era quase duplamente do tamanho de uma foice. Sua Majestade, consoante era uso do seu país, só se barbeava duas vezes por semana. Certo dia pedi ao barbeiro alguns pêlos da barba de Sua Majestade. Tendo-me feito presente deles, peguei num pedaço de madeira e, fazendo-lhe alguns buracos com o bico de uma agulha, prendi, aí, com tal habilidade, os pêlos, que fiz um pente, o que foi um grande auxílio, porque o meu estava todo partido e quase inútil e não fui capaz de encontrar na região um operário que os soubesse fabricar.

Lembro-me de uma diversão que procurei para mim por essa mesma ocasião. Pedi a uma das criadas graves da rainha, que guardasse os finos cabelos que caíssem da cabeça de Sua Alteza quando a penteassem, e que mos desse. Juntei   uma   considerável   porção   e,   então, aconselhando-me com o marceneiro que recebera ordem para fabricar tudo quanto eu lhe pedisse, dei-lhe instruções para fazer duas poltronas do tamanho das que se encontravam na minha caixa e de fazer-lhes pequenos buracos com uma sovela delgada.

Quando os pés, os braços, as travessas e os espaldares ficaram prontos, compus o fundo com os cabelos da rainha, que passei pelos buracos e fiz delas cadeiras parecidas com as de cana de que nos servimos em Inglaterra. Tive a honra de presentear com elas a rainha, que as meteu num armário como uma curiosidade.

Quis um dia que me sentasse numa dessas cadeiras, mas eu excusei-me, protestando que não era tão temerário nem tão insolente que aplicasse o assento sobre os respeitáveis cabelos que tinham, noutro tempo, ornado a cabeça de Sua Alteza. Como era dotado de jeito para a mecânica, fiz, em seguida, com esses cabelos, uma pequena bolsa bem talhada, com o comprimento aproximado de duas varas, com o nome de Sua Alteza tecido em letras douradas, que dei a Glumdalclitch, com o consentimento da rainha.

O rei, que deveras apreciava música, dava muitas vezes concertos, a que eu assistia metido na  caixa;  o  ruído,  porém,  era  tão  grande,  que quase me era impossível distinguir os acordes. Tenho a certeza de que nem os tambores nem as trombetas de um exército real, rufando e soando perto dos meus ouvidos ao mesmo tempo, poderiam igualar aquele ruído. Eu costumava fazer colocar a caixa longe do sítio em que estavam os concertistas, de fechar as portas e as janelas e de correr os cortinados: com essas precauções, não achava desagradável a música.

Aprendi, na minha mocidade, a tocar cravo, Glumdalclitch possuía um no seu quarto, onde, duas vezes por semana, ia um professor para ensinar. Deu-me um dia a fantasia para deliciar o rei e a rainha com uma ária inglesa tocada neste instrumento; isso, porém, pareceu-me extremamente difícil, porque o cravo tinha quase sessenta pés de comprimento e as teclas eram da largura aproximada de um pé, de maneira que, com os meus dois braços estendidos, não podia atingir mais do que cinco teclas e, além disso, para tirar alguns sons, tinha que dar fortes punhadas. No entanto, tive segunda idéia: arranjei dois bastões quase com a grossura de uma agulha de meia vulgar e forrei as extremidades dos bastões com pele de rato, para bater sobre as teclas e delas tirar alguns sons; coloquei-me num banco fronteiro para onde subi e então desatei a correr com toda a presteza e agilidade possível sobre essa espécie de estrado, batendo aqui e ali sobre o teclado, servindo-me dos bastões com toda a força, de maneira que acabei por tocar uma giga inglesa com grande contentamento de Suas Majestades. Forçoso é, porém, confessar que nunca fiz exercício mais violento nem mais fatigante.

O rei, como já disse, era um príncipe cheio de espírito, e dava muitas vezes ordem para me trazerem na caixa e colocarem-me na secretária do seu escritório. Então pedia-me para que tirasse uma das cadeiras para fora da caixa e me sentasse de modo que ficasse no nível do seu rosto. Desta forma, frequentemente, com ele falei. Certo dia, tomei a liberdade de dizer a Sua Majestade que o desprezo que ele concebera pela Europa e pelo resto do mundo não estava em harmonia com as excelentes faculdades de espírito que o distinguiam; que a inteligência nada tinha com o tamanho do corpo; que, pelo contrário, havíamos observado, no nosso país, que os indivíduos de elevada estatura não eram, em geral, os mais engenhosos; que, entre os animais, as abelhas e as formigas gozavam da reputação de ter mais indústria, artifício e sagacidade; e, finalmente, que, embora ele pouca importância ligasse à minha figura, contudo esperava poder prestar grandes serviços a Sua Majestade. O rei ouviu-me com grande atenção e principiou a olhar-me de outro modo e a não avaliar a minha inteligência pelo meu tamanho.

 

Ordenou-me então que lhe fizesse uma exata relação do governo da Inglaterra, porque, ainda que os príncipes estejam ordinariamente prevenidos a favor das suas máximas e dos seus usos, ficaria bem satisfeito por saber se haveria alguma coisa no meu país que lhe fosse útil imitar. Imagine o meu querido leitor qual não seria o meu desejo em possuir o engenho e a língua de Demóstenes e de Cícero, para ser capaz de descrever dignamente a minha pátria, Inglaterra, e traçar dela uma idéia sublime.

Principiei por dizer a Sua Majestade que os nossos Estados eram constituídos por duas ilhas que formavam três poderosos reinos governados por um único soberano, sem que figurassem em linha de conta as nossas colônias na América. Alarguei-me deveras sobre a fertilidade do nosso território e sobre a variedade do nosso clima. Em seguida, descrevi a constituição do Parlamento inglês, composto, em parte, de uma corporação ilustre chamada Câmara dos Pares, personagens do sangue mais nobre, antigos proprietários e senhores das mais belas terras do país. Disse do extremo cuidado que havia na sua educação com relação às ciências e às armas para os tornar capazes de serem conselheiros natos do reino, de terem parte na administração do governo, de serem membros da mais elevada categoria da magistratura, de que não havia apelo, e da sua pátria,   pelo   seu   valor,   comportamento   e fidelidade; que esses senhores eram o ornamento e o esteio do reino, dignos sucessores dos seus antepassados, cujas honras haviam obtido como recompensa de uma virtude insigne e que nunca se vira a sua posteridade degenerar; que a esses senhores estavam agregados santos homens, que tinham o seu lugar entre os bispos, cujo cargo particular era velar pela religião e por aqueles que a pregam ao povo; que se buscavam e se escolhiam no clero os mais santos e os mais sábios homens para serem investidos nessa eminente dignidade.

Acrescentei que a outra parte do Parlamento era uma assembléia respeitável denominada Câmara dos Comuns, composta de nobres, escolhidos livremente, e até deputados pelo povo, unicamente por causa das suas luzes, dos seus talentos e do seu amor pela pátria, a fim de representar o saber de toda a nação. Disse que esses dois corpos formavam a mais augusta assembléia do universo que, de acordo com o príncipe, dispunha de tudo e regulava, de certo modo, o destino de todos os povos da Europa.

Em seguida, desci aos arcanos da justiça, onde tinham assento veneráveis intérpretes da lei, que decidiam as diferentes contestações dos particulares, que puniam o crime e protegiam a inocência. Não deixei de falar da sábia e econômica administração das nossas finanças e de me esplanar sobre o valor e as expedições dos nossos guerreiros de mar e de terra. Computei o número do povo, contando também que havia milhões de homens professando diversas religiões e diferentes partidos políticos entre nós. Não omiti nem os nossos jogos, nem os espetáculos, nem nenhuma outra particularidade que eu supusesse dar honra ao meu país, e terminei com uma pequena narração histórica das últimas revoluções da Inglaterra, desde há cem anos para cá, pouco mais ou menos.

Esta conversa durou cinco audiências, cada uma delas de grande número de horas, e o rei ouviu tudo com a máxima atenção, escrevendo o extrato de quase tudo o que lhe dizia e marcando, ao mesmo tempo, os pontos sobre que tencionava interrogar-me.

Assim que concluí estes meus longos discursos, Sua Majestade, numa sexta audiência, examinando os seus extratos, apresentou-me muitas dúvidas e grandes objeções acerca de cada assunto. Perguntou-me quais eram os meios vulgares empregados para cultivar o espírito da nossa juvenil nobreza; quais as medidas que se tomavam, quando uma casa nobre se extinguia, o que podia dar-se de tempos a tempos; quais as qualidades precisas aos que deviam ser criados como novos pares; se o capricho do príncipe ou uma importante quantia dada de propósito a uma dama da corte e a um favorito, ou um desejo de fortalecer um partido de oposição ao bem público, não eram nunca motivos para essas promoções; qual era o grau de ciência que os pares possuíam acerca das leis do seu país, e como se tornavam capazes de decidir em último recurso dos direitos dos seus compatriotas; se eram sempre isentos de avareza e preconceitos; se os santos bispos de que eu falara, alcançavam sempre esse alto cargo pela sua ciência sobre matérias teológicas e pela santidade da sua vida; se nunca tiveram fraquezas; se nunca tinham intrigado enquanto padres, se não tinham sido outrora esmoleres de um par, por intermédio do qual conseguiam ser elevados a bispos e se, neste caso, não seguiam sempre, cegamente, a opinião do par e não serviam a sua paixão ou o seu preconceito na assembléia do Parlamento.

Quis saber como se procedia para a eleição daqueles que chamara de comuns; se um estranho, com uma bolsa recheada de ouro, não podia, algumas vezes, ganhar o sufrágio dos eleitores à força do dinheiro, fazer-se preferido ao seu próprio senhor, ou aos mais importantes e mais distintos da nobreza na vizinhança; por que é que havia tamanha paixão em se ser eleito para a assembléia, pois que esta eleição dava ensejo a uma grande despesa e não rendia coisa alguma; que era preciso, pois, que os eleitos fossem homens de um completo desinteresse e de uma eminente e heróica virtude, ou, ainda, que contassem ser indenizados e reembolsados com usura pelo príncipe e pelos ministros, sacrificando por eles o bem público. Sua Majestade apresentou-me, sobre esta matéria, dificuldades extraordinárias, que a prudência me não permite repetir.

Acerca do que lhe disse dos arcanos da justiça, Sua Majestade quis ser esclarecido em muitíssimos pontos. Estava bem no caso de satisfazê-lo, pois em outros tempos quase ficara arruinado com um longo processo em estado de ser julgado; se ficava muito caro um pleito; se os advogados tinham liberdade para defender as causas evidentemente injustas; se nunca se havia notado que o espírito partidário e de religião tivesse feito pender a balança; se esses advogados tinham algum conhecimento dos primeiros inícios e das leis gerais de equidade, ou se não se contentavam em saber as leis arbitrárias e os costumes locais do país; se eles e os juízes tinham o direito de interpretar e comentar as leis a seu modo; se os pleiteantes e as sentenças não estavam algumas vezes em contradição uns com outros na mesma espécie.

Depois, começou a interrogar-me sobre a administração das finanças, e disse-me que eu tinha desprezado esse assunto, porque não fizera subir senão a cinco ou seis milhões por ano os impostos; que, no entanto, a despesa do Estado ia muito além e excedia muitas vezes a receita.

Não podia, dizia ele, conceber como é que um reino ousava despender além do seu rendimento e comer os seus bens como um particular. Perguntou-me quais eram os nossos credores e se nós teríamos com que lhes pagar; se mantínhamos a seu respeito as leis da natureza, da razão e da equidade. Estava admirado da pormenorização que lhe fizera das nossas guerras e das despesas excessivas que exigiam. Era preciso, certamente, dizia ele, que nós fôssemos um povo bem irrequieto e bem questionador ou que tivéssemos maus vizinhos.

— Que têm vocês a deslindar — acrescentava ele — fora das ilhas? Possuem aí outro negócio que não seja o comércio? Devem pensar em fazer conquistas? E não lhes basta tomar conta dos portos e das costas?

O que deveras o assombrou, foi saber que mantínhamos um exército no seio da paz e no meio de um povo livre. Disse que, se fôssemos governados com o nosso próprio consentimento, não podia imaginar que tivéssemos medo e contra quem nos havíamos de bater. Perguntou-me se a casa de um particular não seria melhor defendida por ele próprio, pelos filhos e pelos criados do que por uma cáfila de patifes e de gatunos tirados ao acaso da escória do povo, com salário diminuto, e que poderiam ganhar cem vezes mais.

Riu muito da minha extravagante aritmética, (como lhe aprouve chamar), quando computei o número dos nossos habitantes, calculando as diferentes seitas que vivem entre nós, com relação à religião e à política.

Notou que, entre as diversões da nobreza, eu mencionara o jogo. Quis saber em que idade era essa diversão ordinariamente praticada e por quanto tempo, e se algumas vezes não se alterava a fortuna dos particulares e lhes não fazia cometer ações baixas e indignas; se homens vis e corruptos não podiam, algumas vezes, pela sua habilidade nesse mister, adquirir grandes riquezas, ter mesmo os nossos pares em uma espécie de dependência, acostumá-los a viver em más companhias, desviá-los inteiramente da cultura do seu espírito e do cuidado dos seus negócios particulares e forçá-los pelas perdas que podiam causar, ensiná-los talvez a servir-se dessa mesma habilidade infame que os arruinara.

Ficara extremamente admirado com a narrativa que lhe fizera da nossa história do último século, que não passava, segundo ele, de um encadeamento horrível de conjurações, de rebeliões, de chacinas, de morticínios, revoluções, de  exílios  e  dos  mais  horrendos  defeitos  que  a avareza e o espírito de facção, a hipocrisia, a perfídia, a cruzada, a raiva, a loucura, o ódio, a inveja, a maldade e a ambição podiam engendrar.

Sua Majestade em uma outra audiência teve o trabalho de recapitular a substância de tudo quanto eu dissera, comparou as perguntas que me dirigira com as respostas que lhe dera; depois, tomando-me nas suas mãos, e afagando-me carinhosamente, exprimiu-se por estas palavras, que nunca esquecerei assim como não esquecerei o modo por que as pronunciou:

— Meu querido amiguinho Grildrig, fizeste um panegírico bem extraordinário acerca do teu país; provaste à evidência que a ignorância, a preguiça e o vício podem ser, às vezes, as únicas qualidades de um homem de Estado; que as leis são esclarecidas, interpretadas e aplicadas o melhor possível por indivíduos cujos interesses e rapacidade os levam a corrompê-las, a embrulhá- las e a iludi-las. Noto entre vós a constituição de um governo que, no seu princípio, foi talvez suportável, porém que o vício desfigurou por completo. Não me parece até, por tudo quanto me disseste, que uma única virtude seja requerida para alcançar alguma função ou algum lugar eminente. Vejo que os homens não são enobrecidos pela virtude; os sacerdotes, não avançam pela piedade ou pela ciência; os soldados,  pelo  seu  comportamento  ou  pelo  seu valor; os juízes, pela sua integridade; os senadores, pelo amor da pátria, nem os homens de Estado pelo seu saber. Mas quanto a ti, que passaste a mor parte da vida em viagens, quero crer que não tenhas enfermado dos vícios do teu país; mas, por tudo o que me referiste a princípio, e pelas respostas que te obriguei a dar às minhas objeções, suponho que a maioria dos teus compatriotas é a mais perniciosa casta de insetos que a natureza jamais suportou que rastejasse sobre a superfície da terra.


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