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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO III

O autor entrega-se ao estudo de aprender bem a, língua e o huyhnhnm, seu amo, aplica-se em ensinar-lha Muitos huyhnhnms vêm, por curiosidade, visitar o autor Faz a seu amo um sucinto relato das suas viagens.

 

 

Entreguei-me extremamente ao estudo da língua que o huyhnhnm meu amo, (é assim que o tratarei de hoje em diante), seus filhos e criados tinham muita vontade de ensinar-me. Olharam- me como um prodígio e estavam surpreendidos de que um animal irracional tivesse todas as maneiras e todos os sinais naturais de um animal racional. Apontava cada coisa com o dedo e perguntava o nome, que retinha de memória e que não deixava de inscrever no meu pequeno registro de viagem, quando estava só. Com respeito à acentuação, tentei apanhá-la, apurando atentamente o ouvido. O alazão, porém, foi um grande auxiliar.

Preciso é confessar que a pronúncia desta língua me pareceu muito difícil. Os huyhnhnms falam, ao mesmo tempo, com a garganta e o nariz; e a sua língua, tanto nasal como gutural, se aproxima muito da dos alemães, mas é muitíssimo mais graciosa e expressiva. O imperador   Carlos   V   fizera   esta   curiosa observação; assim, dizia ele, se tivesse de falar com o seu cavalo, falar-lhe-ia em alemão.

O meu amo sentia-se tão impaciente por me ouvir falar na sua língua para poder conversar comigo e satisfazer a sua curiosidade, que empregava todas as suas horas de descanso em dar-me lições e em ensinar-me todos os termos, todos os rodeios e finuras dessa língua. Estava convencido, como mais tarde me declarou, de que eu era um Yahu; mas o meu asseio, a minha delicadeza, a minha docilidade, a minha disposição para aprender, admiravam-no: não podia ligar essas qualidades com as de um Yahu, que é um animal grosseiro, sujo e indócil. O meu vestuário causava-lhe também embaraço, imaginando que fazia parte integrante do meu corpo, pois não me despia senão à noite para me deitar, quando todos na casa estavam ferrados no sono, e me vestia de manhã ao levantar, antes de acordarem. Meu amo tinha vontade de saber qual era o meu país, onde e como adquirira esta espécie de raciocínio, que transparecia de todas as minhas maneiras e, enfim, de conhecer a minha história. Gabava-me de ter aprendido tudo isso, rapidamente, visto o progresso que eu fazia dia a dia na compreensão e na pronúncia da língua. Para auxiliar um pouco a minha memória, formei um alfabeto com todas as palavras que aprendera, e escrevia-as com o termo correspondente em inglês por baixo. Depois, não tive dificuldade em escrever na presença de meu mestre as palavras e frases que aprendia; não podia, contudo, compreender o que eu fazia, porque os huyhnhnms não faziam idéia alguma do que seja escrita.

Enfim, ao cabo de dez semanas, encontrei-me em estado de entender diversas vezes as suas perguntas, e três meses depois fiquei bastante habilitado para lhes responder regularmente. Uma das primeiras perguntas que me dirigiu, quando lhe pareceu que eu estava em condições de responder-lhe, foi indagar de que país eu vinha e como aprendera a fazer-me animal racional, não passando de um Yahu, porque os Yahus, com os quais ele me encontrava semelhanças no rosto e nas patas dianteiras, tinham, dizia ele, uma espécie de conhecimentos, com astúcias e malícias, porém não tinham esta concepção e esta docilidade que notava em mim. Respondi-lhe que vinha de muito longe e tinha atravessado os mares com outros da minha espécie; que viajara numa grande construção de madeira; que os meus companheiros me haviam deixado nas costas deste país, abandonando-me. Foi-me preciso, então, juntar à linguagem muitos sinais para me fazer compreender. Meu amo replicou-me que era certo que me enganava e que tinha dito uma coisa que não era, isto é, mentia. (Os huyhnhnms não possuem na sua língua vocábulos para exprimir a verdade ou a mentira).

Não podia compreender que houvesse terras de além-mar e que um vil rebanho de animais pudesse fazer flutuar sobre esse elemento uma grande construção de madeira e conduzi-la à sua vontade. E acrescentou:

— Ninguém, salvo um huyhnhnm, poderia fazer semelhante coisa. Confiar o governo de uma construção dessas a um Yahu, é obra de insensatos.

Esta palavra huyhnhnm, na sua língua, significava cavalo, e quer dizer, conforme a sua etimologia, a perfeição da natureza. Respondi a meu amo que me faltavam as expressões, mas, dentro de algum tempo, ficaria em estado de lhe referir coisas, que, decerto, o surpreenderiam. Exortou a senhora égua sua mulher, os senhores seus filhos, o potro e a eguazinha, e todos os seus criados, a concorrer com zelo a aperfeiçoarem-me na língua, e ele próprio, todos os dias, consagrava para esse fim duas a três horas.

Muitos cavalos e éguas de distinção vieram, então, visitar meu amo, excitados pela curiosidade de ver um extraordinário Yahu, que, pelo que tinham ouvido, falava como huyhnhnm e fazia brilhar, com as suas maneiras, as chispas do seu raciocínio. Sentiam prazer em dirigir-me perguntas ao meu alcance, às quais redarguia conforme  podia.  Tudo  isto  contribuía  para  me fortalecer no uso da língua, de sorte que, ao cabo de cinco meses, compreendia tudo o que me diziam e exprimia-me muito bem sobre a mor parte das coisas.

Alguns huyhnhnms, que vinham à casa de meu amo para me ver e conversar comigo, não queriam acreditar que eu fosse um Yahu, porque, diziam, tinha uma pele muito diferente da daqueles animais; não me viam, acrescentavam, uma pele aproximadamente parecida com a dos Yahus senão no rosto e nas patas dianteiras, porém peladas. Meu amo sabia bem o que isso era, porque uma coisa que aconteceu uns quinze dias antes tinha-me obrigado a descobrir-lhe esse mistério, que ocultara sempre até então com receio de que me tomasse por um verdadeiro Yahu e me pusesse na companhia deles.

Já disse ao leitor que todas as noites, quando toda a casa estava recolhida, o meu costume era despir-me e cobrir-me com o casaco. Certo dia, meu amo mandou-me, de madrugada, o seu lacaio alazão. Quando entrou no meu quarto, dormia eu profundamente; o meu casaco estava caído e tinha a camisa arregaçada. Acordei com o barulho que ele fez e notei que dava conta do recado com ar inquieto e embaraçado. Foi logo ter com o amo e contou-lhe confusamente o que vira. Quando me levantei fui dar os bons dias a sua honra (é o termo usado entre os huyhnhnms, que corresponde aos nossos: alteza, grandeza e reverência) . Perguntou-me logo o que havia, o que o seu lacaio lhe tinha contado de manhã; que lhe dissera que não era o mesmo acordado que dormindo; que, quando dormia, tinha uma pele que não possuía durante o dia.

Tinha, até essa data, ocultado esse segredo, como já disse, para não ser confundido com a maldita e infame raça dos Yahus; mas, então, foi preciso desvendá-lo, contra minha vontade. Além disso, o meu vestuário e o meu calçado estavam já muito usados, e como precisavam de ser substituídos pela pele de um Yahu, ou de qualquer outro animal, eu previa que o meu segredo não ficaria por muito tempo oculto. Confiei a meu amo que, no país de onde eu vinha, os da minha espécie costumavam cobrir o corpo com o pêlo de certos animais, preparado com arte, quer por decência e comodidade, quer para se precaver contra o rigor das estações; que, pelo que me dizia respeito, estava pronto a fazer-lhe ver claramente o que acabava de dizer; que me ia despir e que só ocultaria o que a natureza nos inibe de mostrar. O meu discurso pareceu admirá-lo; não podia, principalmente, conceber que a natureza nos obrigasse a ocultar o que nos deu.

— A natureza — dizia ele — fez-nos presentes vergonhosos, furtivos e criminosos? Quanto a nós — acrescentou — não coramos com esses dotes e não nos envergonhamos de os expor às claras. No entanto — prosseguiu — não quero contrariá-lo.

Despi-me, pois, decentemente, para satisfazer à curiosidade de sua honra, que deu grandes mostras de admiração ao ver a configuração de todas as partes decentes do corpo. Levantou o meu vestuário, peça por peça, tomando-o entre o casco e a ranilha e examinou-o atentamente; gabou-me, acariciou-me e deu várias voltas em torno de mim; em seguida, disse com gravidade que era evidentemente um Yahu, e que não diferia de todos os da minha espécie senão por ter a carne menos dura e mais branca, com uma pele mais macia; que não tinha pêlo na maior parte do corpo; que tinha garras mais curtas e de configuração um pouco diferente, e que afetava andar apenas com as patas traseiras. Não quis ver mais e deixou-me vestir, o que me causou prazer pois já começava a sentir frio.

Demonstrei a sua honra quanto me mortificava que me desse seriamente o nome de um animal infame e odioso. Supliquei-lhe que me poupasse uma denominação tão ignominiosa e que recomendasse a mesma coisa a sua família, aos seus criados e a todos os seus amigos; foi em vão. Pedi-lhe, ao mesmo tempo, a bondade de não dar parte do meu segredo, que lhe confiara, a pessoa alguma, com relação ao meu vestuário, ao menos enquanto não tivesse necessidade de mudá-lo, e que, com respeito ao seu lacaio alazão, sua honra lhe ordenasse que não desse palavra sobre o que vira.

Prometeu guardar silêncio e o caso permaneceu secreto até que minha roupa ficasse imprestável e me fosse preciso procurar com que me vestisse, como direi mais tarde. Ao mesmo tempo exortou-me a que me aperfeiçoasse ainda na língua, porque ficara muito mais admirado de me ouvir falar e raciocinar, do que me ver branco e pelado, e que tinha uma extrema vontade de saber de mim as coisas admiráveis que eu tinha prometido explicar-lhe. Desde então, teve mais empenho em instruir-me. Ia com ele, sempre que saía, e fazia com que eu fosse tratado bondosamente em toda parte e com todas as considerações, a fim de estar sempre de boa disposição (como me disse particularmente) e de me tornar mais agradável e mais alegre.

Todos os dias, quando estava com ele, além do trabalho que tinha em ensinar-me a língua, dirigia-me mil perguntas a meu respeito, às quais respondia o melhor que me era possível, o que lhe dava já algumas idéias gerais e imperfeitas do que devia dizer-lhe pormenorizadamente mais tarde. Seria inútil explicar aqui como consegui travar com ele uma conversação longa, séria e seguida; direi apenas que a primeira conversa teve lugar da forma que passo a expor:

Disse a sua honra que vinha de um país muito afastado, como já tinha tentado fazer-lhe compreender, acompanhado de quase cinqüenta meus semelhantes; que num navio, isto é, uma construção feita de pranchas, tínhamos atravessado o mar. Descrevi-lhe a forma desse navio o melhor que pude e, tendo desdobrado o lenço, fiz-lhe compreender como o vento, que inchava as velas, nos fazia caminhar. Disse-lhe que, por ocasião de uma discussão levantada entre nós, tinha sido desembarcado nas costas da ilha em que atualmente me encontrava; que ficara a princípio muito embaraçado, não sabendo onde estava, até que sua honra tivera a bondade de me livrar da perseguição dos vis Yahus.

Perguntou-me, então, quem tinha construído o tal navio, e como os huyhnhnms do meu país o haviam confiado ao governo de uns animais irracionais. Retorqui que era impossível responder à sua pergunta e continuar a minha narrativa se não me desse a sua palavra, e se não me prometesse sobre sua honra e sobre a sua consciência, que não se ofenderia com tudo o que lhe dissesse; que, sob esta única condição, prosseguiria a minha narrativa, e lhe exporia com sinceridade    as    maravilhosas    coisas    que    lhe prometera contar.

Assegurou-me, positivamente, que não se ofenderia com coisa alguma. Então, disse-lhe que o navio fora construído por criaturas parecidas comigo e que, no meu país e em todas as partes do mundo por onde viajava, eram os únicos animais senhores e denominados racionais; que, ao chegar àquela região, ficara extremamente surpreendido por ver os huyhnhnms procederem como pessoas dotadas de raciocínio, do mesmo modo que ele e os seus amigos estavam muito admirados de encontrar provas desse raciocínio numa criatura a quem lhes aprouvera tratar por Yahu, e que de fato se parecia com esses vis animais pela sua configuração exterior, e não pelas suas qualidades de alma. Acrescentei que, se algum dia o céu permitisse que voltasse ao meu país e publicasse a relação das minhas viagens, e em especial a minha permanência entre os huyhnhnms, toda a gente acreditaria que eu diria uma coisa que não era, e que seria uma história fabulosa e impertinente que eu tinha inventado; em suma, apesar de todo o respeito que ele me merecia, e toda a sua honrada família, e todos os seus amigos, ousava afirmar-lhe que no meu país ninguém acreditaria que um huyhnhnm fosse um animal racional e que um Yahu fosse um animal irracional.


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