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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO X

Felicidade do autor no país dos huyhnhnms Os agradáveis prazeres que saboreia com as conversas entabuladas com eles Modo de vida que leva naquela região É banido desse país por ordem do parlamento.

 

 

Fui sempre amigo da ordem e da economia, e, em qualquer situação em que me encontrasse, arranjei sempre de modo a regularizar e a industriar a minha maneira de viver. Meu amo, porém, marcara terreno para minha moradia quase a seis passos da casa, e essa moradia, que era uma cabana conforme o uso do país e muito parecida com a dos Yahus, não era agradável nem cômoda. Fui buscar barro com que fiz quatro paredes e um sobrado e, com um junco, fabriquei uma esteira com a qual cobri a moradia. Apanhei cânhamo, que crescia à vontade pelo campo. Limpei-o, fiei-o e do fio manufaturei uma espécie de pano, que enchi de penas de aves, para arranjar uma cama macia, onde dormisse à vontade. Com a minha faca e o auxílio do alazão fiz uma cadeira e uma mesa. Quando minha roupa ficou completamente esfarrapada, engendrei outra de peles de coelho a que juntei as de certos animais chamados nnuhnoh, que são muito bonitos e quase do mesmo tamanho, e cuja pele  é  coberta  de  um  finíssimo  pêlo.  Com  esta pele arranjei também excelentes meias. Talhei para solas dos sapatos pedaços de madeira muito adelgaçados e substituí o cabedal por pele de Yahu. Quanto à comida, além da que acima aludi, apanhava algumas vezes mel dos troncos das árvores e comia-o com o meu pão de aveia. Ninguém experimentou tanto como eu que a natureza com pouco se contenta e que a necessidade é mãe do engenho.

Gozei de uma saúde perfeita e de um sossego de espírito inalterável. Não me via exposto nem à inconstância e traição dos amigos, nem às invisíveis ciladas ocultas dos inimigos. Não tinha tentações para vir vergonhosamente fazer corte a um fidalgo ou à amante, para me conceder honra da sua proteção e da sua benevolência. Não era obrigado a precaver-me contra a fraude e a opressão; não tinha aí espião ou denunciante pago, nem lord-mayor crédulo, político estouvado ou malfazejo. Aí não receava ter a minha honra menoscabada por absurdas acusações, e a minha liberdade vergonhosamente roubada por conspirações indignas nem ordens de prisão sacadas por alicantinas. Naquele país não havia médicos para me envenenarem, procuradores para me arruinarem, nem autores para me aborrecerem. Não me via rodeado de trocistas, de gracejadores, de maldizentes, de críticos, de caluniadores,  de  ratoneiros,  de  espíritos  fracos, de hipocondríacos, de tagarelas, de caturras, de facciosos, de sedutores, de falsos sábios.

Não havia por lá mercadores fraudulentos, peralvilhos, loquazes, desenxabidos, delicados, namoradores adamados, presumidos, espadas de arrasto, bêbados, invertidos e pedantes.

Os meus ouvidos não tinham sido enxovalhados por conversas licenciosas e ímpias; os meus olhos não eram impressionados nem pela presença de um maroto rico e educado nem pela de um honrado homem abandonado tanto à sua virtude como ao seu mau destino.

Tinha a honra de me entender muita vez com os senhores huylmlinms, que visitavam meu amo, que consentia que eu, de vez em quando, entrasse na sala para me aproveitar da sua conversa. Aquela sociedade dirigia-me às vezes algumas perguntas, às quais eu tinha a honra de responder. Acompanhava também meu amo nas suas visitas, mas permanecia sempre em silêncio, salvo se me interrogavam. Fazia de personagem auditor com infinito prazer: tudo o que ouvia era útil e agradável e sempre expresso em poucas palavras, porém com graça; o melhor bem-estar era observado sem cerimônia; cada um dizia o que lhe podia agradar. Nunca se interrompiam, nunca se davam a longas e fastidiosas narrativas, nunca havia discussões, nunca se chicanava.

Tinham por máxima que, numa sociedade, é bom que o silêncio reine de vez em quando, e parece-me que tinham razão. Neste intervalo, e durante esta espécie de tréguas, o espírito fornece-se de idéias novas e a conversa torna-se depois mais animada e viva. As conversas baseavam-se sempre sobre as vantagens e agrados da amizade, sobre os deveres da justiça, a bondade, a ordem, as admiráveis obras da natureza, as antigas tradições, as condições e limites da virtude, as invariáveis regras do raciocínio; algumas vezes sobre as deliberações da próxima reunião do parlamento e muitas outras sobre o mérito dos seus poetas e as qualidades da boa poesia.

Posso dizer, sem vaidade, que eu próprio fornecia, algumas vezes, conversa, isto é, dava ensejo a fortes raciocínios; porque meu amo narrava-lhes, de vez em quando, as minhas aventuras e a história do meu país, o que lhes fazia ter reflexões muito pouco vantajosas para a raça humana e que, por essa razão, não apontarei. Observarei apenas que meu amo parecia conhecer melhor a natureza dos Yahus que vivem nas outras partes do mundo que eu próprio conhecia. Descobria a fonte de todos os nossos desvairamentos, profundava a matéria dos nossos vícios e das nossas loucuras, e adivinhava uma infinidade de coisas de que eu nunca falara. Isto não deve parecer incrível, pois conhecia a fundo os Yahus do seu país, de maneira que, supondo neles um pequeno grau de raciocínio, calculava o que seriam capazes com esse acréscimo, e o seu cálculo era sempre justo.

Confessarei aqui ingenuamente que as poucas luzes e filosofia que hoje possuo, apanhei- as nas sábias lições desse caro amo e nas conversas de todos esses seus judiciosos amigos, conversas preferíveis às doutas conferências das academias de Inglaterra, Alemanha e Itália. Tinha por todos esses personagens uma inclinação mesclada de respeito e temor, e sentia-me penetrado de reconhecimento pela bondade que tinham para comigo, não me confundindo com os seus Yahus e de me crerem um pouco menos imperfeito do que os do meu país.

Quando me lembrava de minha família, dos meus amigos, dos meus compatriotas e de toda a raça humana em geral, representavam-se-me todos como verdadeiros Yahus, pelo rosto e pelo carácter, contudo um pouco mais civilizados, com o dom da palavra e um pequeno grau de raciocínio. Quando vi o meu rosto na água pura de um límpido regato, desviei-me imediatamente, não podendo suportar a vista de um animal que me parecia tão disforme como um Yahu. Os meus olhos, costumados à nobre figura dos huyhnhnms, só neles encontrava beleza animal. À força de os contemplar e de lhes falar, tomara um pouco das suas conveniências, dos seus gestos, das suas atitudes, dos seus passos e hoje, que estou na Inglaterra, os meus amigos dizem-me, algumas vezes, que troto como um cavalo. Quando falo ou rio parece-lhes que rincho. Vejo- me todos os dias assediado a este respeito sem sentir o menor desgosto.

Nesta feliz situação, enquanto saboreava as doçuras de um perfeito repouso, em que me julgava tranqüilo para todo o resto da minha vida, e que o meu estado era o mais agradável e o mais digno de inveja, um dia meu amo mandou-me chamar mais cedo do que era costume. Quando me encontrei junto dele, reparei em que estava muito sério, com ar inquieto e perturbado, querendo falar e não podendo abrir a boca. Depois de algum tempo de silêncio dirigiu-me estas palavras:

— Não sei como hei-de principar, meu querido filho, o que tenho a dizer-lhe. Ficará ciente de que na última assembléia do parlamento, na ocasião em que foi posto em discussão o caso dos Yahus, um deputado representou à assembléia que era indigno e vergonhoso para mim desse guarida em minha casa a um Yahu, a quem eu tratava como a um huyhnhnm; que me havia visto conversar com ele e sentir prazer em ouvi-lo, como se fosse um semelhante meu; que era um processo contrário à razão e à natureza e que nunca se ouviu falar de uma coisa semelhante. Sobre este ponto, a assembléia exortou-me a fazer, de duas coisas, uma: ou juntá-lo aos outros Yahus, que vão mutilar num dia destes, ou a fazê-lo partir para o país de onde veio. A maioria dos membros que o conhece e que o viu em minha casa, rejeitou a escolha e sustentou que era muito injusto e contrário à benevolência colocá-lo entre os Yahus deste país, em vista de ter um começo de raciocínio e que seria mesmo para lastimar que lhes comunicasse algum que os tornaria piores ainda; que além disso, sendo misturado com os Yahus,, poderia armar uma conspiração, sublevá- los, conduzir todos a uma floresta ou ao cimo de uma montanha, em seguida pôr-se à testa deles e vir cair sobre todos os huyhnhnms para os destroçar e destruir. Esta opinião foi aprovada por unanimidade de votos e, enfim, fui exortado a fazê-lo sair o mais breve possível. Apresso-me a dar-lhe conta deste resultado e não posso adiá-lo. Aconselho-o, pois, a que se ponha a nado ou então construa um pequeno objeto semelhante àquele que o trouxe a estes lugares e de que me fez descrição e que volte por mar, conforme veio. Todos os criados desta casa e até os dos meus vizinhos auxiliá-lo-ão nessa tarefa. Se fosse só por mim, conservá-lo-ia toda a vida para serviço, porque tem boas inclinações, se se corrigir de alguns defeitos que possui e também de alguns maus costumes, pois tem feito todo o possível para se conformar, tanto quanto a sua desgraçada natureza era capaz, com a dos huyhnhnms.

Notarei, de passagem, que os decretos da assembléia geral da nação dos huyhnhnms se exprimem sempre pela palavra hnhnloyn, que significa exortação. Não podem conceber que se possa obrigar e constranger uma criatura racional, como se ela fosse capaz de desobedecer à razão.

Este discurso caiu-me aos pés como um raio; fiquei logo em grande prostração e desespero: e, não podendo resistir à impressão da dor, desmaiei junto do meu amo, que me julgou morto.

Quando recuperei um pouco os sentidos, disse-lhe com voz fraca e ar tristonho que, embora não pudesse insurgir-me contra a exortação da assembléia geral, nem contra a solicitude de todos os seus amigos, que o apressavam a afastar-me, parecia-me, contudo, segundo o meu fraco entender, que poderiam deliberar contra mim um castigo rigoroso; que me era impossível pôr-me a nado, pois o mais que poderia nadar seria uma légua e que, no entanto, a terra mais próxima ficava talvez afastada cem léguas; que, com respeito à construção de um barco, nunca encontraria no país o que seria necessário para semelhante trabalho; que, contudo, queria obedecer, apesar da impossibilidade de fazer o que se me aconselhava e me dizia respeito como uma criatura que está para morrer; que a presença da morte não me aterrorizava e que a esperava como o menor dos males de que estava ameaçado; que, posto que pudesse atravessar os mares e voltar ao meu país por qualquer aventura extraordinária, teria então a desgraça de me encontrar com os Yahus, com os quais seria obrigado a passar o resto da minha existência e cair, em breve, em todos os seus maus hábitos; que sabia bem que as razões que haviam levado os senhores huyhnhnms a essa resolução, eram muito fortes para que lhes  pudesse opor as de um desgraçado Yahu como eu; que, nessa conformidade, aceitava o cativante oferecimento que me fazia dos seus criados para me auxiliar a construir o barco; que lhe pedia apenas que tivesse a bondade de me conceder certo prazo de tempo suficiente para dedicar-me a uma tarefa tão difícil, que era destinada à conservação da minha miserável existência; que, se algum dia chegasse à Inglaterra, trataria de me tornar útil aos meus compatriotas, traçando-lhes o perfil e as virtudes dos ilustres huyhnhnms e apresentando-os para exemplo a todo o gênero humano.

Sua honra replicou-me em poucas palavras, e disse que me concedia dois meses para a construção do barco e, ao mesmo tempo, ordenou ao alazão meu companheiro (porque me é lícito dar-lhe este nome na Inglaterra) que seguisse as minhas instruções, porque dissera a meu amo que só ele me bastaria e eu sabia que me era muito afeiçoado.

A primeira coisa que fiz foi ir com ele para o sítio da costa, onde aportara havia tempo. Subi a um outeiro e, estendendo a vista para todos os lados na solidão dos mares, julguei enxergar para o nordeste uma ilhota. Com o meu telescópio vi-a nitidamente, e calculei que estivesse afastada cinco léguas. Quanto ao bom alazão, dissera apenas que era uma nuvem. Como nunca vira outra terra além daquela em que nascera, não tinha vista capaz para distinguir no mar objetos afastados, como eu, que passara a vida sobre esse elemento. Foi para esta ilha que primeiramente me resolvi dirigir, quando o meu barco estivesse pronto.

Voltei à casa com o meu companheiro, e, depois de termos conversado um pouco, fomos a uma floresta, que estava um tanto longe, onde eu, com uma faca, e ele, com uma pedra cortante, encabadas com muita perfeição, cortámos a madeira necessária para o trabalho. A fim de não enfastiar o leitor com os pormenores da minha tarefa, basta dizer que, dentro de seis semanas, fizemos uma espécie de canoa, à maneira dos índios, mas muito mais larga, que cobri com peles de Yahu, cosidas com fios de linho. Manufaturei uma vela com peles idênticas, tendo escolhido para isso as dos Yahus novos, porque as dos velhos teriam sido muito duras e muito espessas; forneci-me de quatro remos; fiz provisão de uma porção de carne cozida, de coelhos e aves, com duas vasilhas, uma cheia de água e outra cheia de leite. Fiz a experiência da minha canoa num grande lago e corrigi todos os defeitos que lhe pude notar, tapando todas as aberturas com sebo de Yahu e tentando pô-la em estado de me levar com a minha pequena carga. Coloquei-a, então, sobre uma pequena carroça e fi-la conduzir à margem por Yahus, sob as ordens do alazão e de um outro criado.

Quando tudo estava pronto e chegou o dia da minha partida, despedi-me de meu amo, da senhora sua esposa e de toda a família, tendo os olhos rasos de lágrimas e o coração trespassado de dor. Sua honra, fosse por amizade, fosse por curiosidade, quis ver-me na canoa e dirigiu-se para a costa com muitos amigos da vizinhança. Fui obrigado a esperar mais de uma hora em virtude da maré; então, notando que o vento estava de feição para me levar à ilha, fiz as últimas despedidas a meu amo. Ajoelhei-me a seus pés para lhos poder beijar e ele deu-me a honra de levantar o pé dianteiro até a minha boca. Se relato essa circunstância não é por vaidade; imito todos os viajantes, que não deixam de mencionar todas as honras extraordinárias com que foram recebidos. Fiz uma profunda reverência a toda a sociedade e, entrando na canoa, afastei-me da praia.


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