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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO III

Fenômeno explicado pelos filósofos e astrônomos modernos Os Lapucianos são grandes astrônomos De como o rei logra apaziguar as sedições.

 

 

Solicitei licença do soberano para ver as curiosidades da ilha; concedeu-me e ordenou a um dos seus cortesãos que me acompanhasse. Quis principalmente saber em que consistia o segredo natural ou artificial que causava os diversos movimentos de que vou dar ao leitor uma nota exata e filosófica.

A ilha volante é perfeitamente redonda; o seu diâmetro é de sete mil e oitocentos e sete toesas e meia, isto é, quase quatro mil passos, e, por conseguinte, contém aproximadamente dez mil acres. O fundo desta ilha ou a superfície inferior, tal como parece a quem a vê por baixo, é como um largo diamante, polido e talhado regularmente, que reflete a luz a quatrocentos passos. No subsolo há muitos minerais, situados seguindo a fila ordinária das minas, e por cima existe um terreno fértil de dez a doze pés de profundidade.

A inclinação das partes da circunferência para  o  centro  da  superfície  superior  é  a  causa natural de todas as chuvas e orvalhos que caem na ilha serem conduzidos por pequenos regatos para o meio, onde se juntam em quatro grandes tanques, tendo cada um deles quase meia milha de circuito. A duzentos passos de distância do centro desses tanques, a água é continuamente atraída e evaporada pelo sol durante o dia, o que impede o extravasamento. Demais, como depende do poder real erguer a ilha acima da região das nuvens e dos vapores terrestres, pode, quando lhe apraz, impedir a queda da chuva e do orvalho, o que não está no poder de nenhum outro potentado da Europa, que, não dependendo de pessoa alguma, depende sempre da chuva e do bom tempo.

No centro da ilha existe um buraco com perto de vinte e cinco toesas de diâmetro, pelo qual descem os astrônomos a um largo zimbório que, por este motivo, é chamado Flandona gagnole, ou Cava dos Astrônomos, situada a uma profundidade de cinqüenta toesas acima da superfície superior do diamante. Nesta cava havia vinte lâmpadas sempre acesas que, pela reverberação do diamante, espalham uma grande luz por todos os lados. Este local é guarnecido de sextantes, de quadrantes, de telescópios, de astrolábios e de outros instrumentos astronômicos; a maior curiosidade, porém, de que depende  até  o  destino  da  ilha,  é  uma  pedra magnética   de   prodigioso  tamanho,   talhada   em forma de naveta de tecelão.

Tem o comprimento de três toesas e, na sua maior espessura, mede pelo menos toesa e meia. Este ímã está suspenso por um grosso eixo giratório de diamante, que passa pelo meio da pedra, sobre a qual gira, e que está colocado com tanta precisão que um fraco impulso pode fazê-la mover; está rodeada por um círculo de diamante com a configuração do cilindro cavado, com quatro pés de profundidade, com muitos pés de espessura e com seis toesas de diâmetro, colocado horizontalmente e mantido por oito pedestais, todos de diamante, tendo cada um a altura de três toesas. Do lado côncavo do círculo há uns entalhes profundos de doze polegadas, em que estão colocadas as extremidades do eixo, que gira quando é preciso.

Força alguma pode deslocar a pedra, porque o círculo e os pés do círculo são de uma só peça com o corpo do diamante que forma a base da ilha.

É por meio deste ímã que a ilha se levanta, se baixa e muda de lugar; porque, em relação a este ponto da terra em que reside o monarca, a pedra é munida, em um dos seus lados, de um poder atrativo e no outro de um poder repulsivo. Assim, quando o ímã está voltado para a terra pelo seu pólo amigo, a ilha desce; mas, quando o pólo inimigo está voltado para a mesma terra, a ilha sobe. Quando a posição da terra obliqua, o movimento da ilha é igual, porque, nesse ímã, as forças agem sempre em linha paralela à sua direção; é pelo movimento oblíquo que a ilha é conduzida às diferentes partes dos domínios do soberano.

Este monarca seria o príncipe mais absoluto do universo, se pudesse arranjar ministros que lhe obedecessem em tudo, mas estes, possuindo terrenos em baixo, no continente, e considerando que o furor dos príncipes é passageiro, não se importam de causar prejuízo a si próprios oprimindo a liberdade dos seus compatriotas.

Se alguma cidade se revolta ou recusa pagar impostos, o rei tem duas maneiras de dominá-la. A primeira e mais moderada é estacionar a sua ilha por cima da cidade rebelde e das terras próximas; dessa maneira priva a região do sol e do orvalho, o que causa doenças e mortandade; mas, se o crime o merece, atira-lhes grandes pedras do alto da ilha, de que só podem livrar-se refugiando-se nos celeiros e nos subterrâneos, onde passam o tempo a beber enquanto os telhados das suas casas são despedaçados. Se continuam temerariamente na sua teimosia e na sua revolta, o rei recorre então ao último remédio, que é deixar cair a ilha a prumo sobre as suas cabeças, o que esmaga todas as casas e todos os habitantes. No entanto, o príncipe raramente lança mão desse temível extremo, que os ministros não se atrevem a aconselhar-lhe, visto que esse violento processo os tornaria odiosos ao povo e prejudicaria também a eles, que possuem os seus bens no continente, porque a ilha só pertence ao rei, que também apenas possui a ilha como domínio.

Há ainda uma outra razão mais forte pela qual os reis deste país fogem sempre de aplicar esse último castigo, salvo num caso de absoluta necessidade; é porque, se a cidade que se quer destruir fica situada perto de alguns rochedos altos (porque os há neste país, assim como em Inglaterra, perto das grandes cidades que foram expressamente construídas junto dessas rochas, para se preservarem das cóleras régias) ou se tem grande número de campanários e pirâmides de pedra, a ilha real, com a sua queda, podia quebrar-se. São principalmente os campanários que o rei teme e o povo sabe isso perfeitamente. Assim, quando Sua Majestade está deveras agastado, faz sempre descer a ilha muito suavemente, com medo, diz ele, de esmagar o seu povo, mas, no íntimo, o que mais teme é que os campanários lhe quebrem a ilha. Nesse caso, os filósofos supõem que o ímã não poderia ampará-la mais e cairia fatalmente.


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