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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver Quarta Parte: Viagem ao País dos Huyhnhnms

CAPÍTULO I

O autor empreende ainda uma viagem na qualidade de capitão de navio A sua tripulação insubordina-se, prende-o, acorrenta- o e põe-no em terra num ponto desconhecido Descrição dos Yahus Dois Huyhnhnms vêm ter com ele.

 

 

Passei cinco magníficos meses na doce companhia de minha mulher e de meus filhos e posso dizer que, então, era feliz, se pudesse verificar que o era; fui, porém, desgraçadamente tentado a fazer ainda nova viagem, principalmente quando me foi oferecido o orgulhoso título de capitão a bordo do Aventura, navio mercante de trezentas e cinqüenta toneladas. Entendia muito bem de navegação e, demais, estava cansado do título subalterno de cirurgião de bordo. Não renunciei, contudo, à profissão, e soube exercê-la, quando se me ofereceu ensejo. Por então contentei-me em levar comigo, nesta viagem, um moço praticante. Despedi-me de minha mulher, que ficava grávida. Embarcando em Portsmouth, fiz-me de vela a 2 de Dezembro de 1710.

Durante a viagem as doenças levaram-me parte da tripulação, de maneira que fui obrigado a recrutar gente nos Barbados e nas ilhas de Leward,  onde  os  negociantes,  com  quem  eu comerciava, tinham dado ordem para arribar; cedo, porém, tive ensejo para me arrepender de ter feito aquele maldito recrutamento, pois a mor parte era constituída por bandidos, que tinham sido piratas. Estes patifes insubordinaram o resto da minha tripulação e todos juntos combinaram apoderar-se de mim e do navio. Certa manhã, pois, entraram no meu camarote, atiraram-se a mim, amarraram-me e ameaçaram-me de me lançar ao mar se ousasse opor a menor resistência. Disse-lhes que a minha sorte estava nas suas mãos e que consentia, antecipadamente, no que eles quisessem. Obrigaram-me a proferir estas palavras sob juramento, e, em seguida, desamarraram-me, contentando-se em me acorrentar em pé à cabeceira da cama e em postarem uma sentinela à porta do meu camarote, com ordem de me fazer saltar os miolos se fizesse alguma tentativa de fuga. O seu projeto era fazer pirataria com o meu navio e dar caça aos espanhóis; para isso, porém, não eram muitos os tripulantes; resolveram, primeiramente, vender a carga do navio e ir a Madagascar para aumentar a sua gente. Entretanto, conservavam-me prisioneiro a bordo do meu camarote, muito inquieto com a sorte que me esperava.

A 9 de Maio de 1711, um tal Jacques Welch entrou e disse-me que recebera ordem do senhor capitão  para  me   desembarcar.  Quis,  mas baldadamente, conversar com ele e dirigir-lhe algumas perguntas; recusou até dizer-me o nome daquele a quem tratava por senhor capitão. Fizeram-me descer para o escaler, depois de me haverem permitido arranjar o meu fardo e levar as minhas coisas. Deixaram-me o meu sabre e tiveram a delicadeza de não me revistar as algibeiras, onde havia algum dinheiro. Após quase uma légua de navegação, deixaram-me numa praia. Perguntei aos que me acompanhavam que região era aquela.

— Por nossa fé — responderam — sabemos tanto como o senhor, mas tome cuidado, não vá a maré surpreendê-lo. Adeus.

Em seguida o escaler afastou-se.

Abandonei a praia e subi a um outeiro para me sentar e deliberar sobre o caminho que tinha a tomar. Quando me senti um pouco descansado, avancei por esses terrenos, resolvido a aproveitar- me do primeiro meio de salvação que se me oferecesse e resgatar a minha vida, se pudesse, por algumas sementes, por alguns braceletes e outras bagatelas, de que os viajantes não deixam de munir-se e de que tinha uma certa quantidade nas algibeiras.

Descortinei grandes árvores, vastas campinas e campos, onde a aveia crescia por todos os lados. Caminhava   com   precaução,   receando   ser surpreendido ou receber alguma flechada. Depois de ter andado algum tempo, fui sair em uma estrada, onde se me depararam muitas pegadas de cavalos e algumas vacas. Vi, ao mesmo tempo, grande número de animais no campo e um ou dois da mesma espécie empoleirados numa árvore. A sua figura surpreendeu-me e, tendo-se aproximado alguns, ocultei-me por detrás de um maciço para melhor os examinar.

Cabelos compridos lhes caíam para a cara; o peito, as costas e as patas dianteiras eram cobertas de um espesso pêlo; tinham barba no queixo como os bodes, mas o resto do corpo era pelado e deixava ver uma pele muito cinzenta. Não tinham cauda; estavam ora sentados na relva, ora deitados, ora de pé nas patas traseiras; saltavam, pulavam e trepavam nas árvores com a agilidade dos esquilos, tendo garras nas quatro patas. As fêmeas eram um pouco menores do que os machos; tinham longos cabelos e apenas uma ligeira penugem em muitos sítios do corpo. Os seios pendiam entre as duas patas dianteiras e algumas vezes rojavam-se pelo chão, quando caminhavam. O pêlo de uns e de outros era de diversas tonalidades: cinzento, vermelho, preto e louro. Finalmente, em nenhuma das minhas viagens vira animal tão disforme e tão desagradável.

Depois de os haver examinado suficientemente, segui pela estrada, na esperança de que me conduziria a alguma choupana de índios. Tendo caminhado um pedaço, encontrei, a meio da estrada, um desses animais que se encaminhava diretamente para mim. Ao ver-me, estacou, fez uma infinidade de caretas e pareceu olhar-me como um animal cuja espécie lhe era desconhecida; depois, aproximou-se e levantou para mim a pata dianteira. Desembainhei o sabre e bati-lhe de leve, não querendo feri-lo, com receio de ofender aqueles a quem estes animais poderiam pertencer. O animal, sentindo-se magoado, desatou a fugir e a gritar de tal maneira que atraiu a atenção de uns quarenta animais da sua espécie, que correram para mim fazendo horríveis caretas. Corri para uma árvore, onde me encostei, mantendo-me em guarda com o sabre; logo saltaram aos ramos das árvores e começaram a estercar em cima de mim. Repentinamente puseram-se todos em fuga.

Então, deixei a árvore e continuei o meu caminho, ficando muito surpreendido de que um súbito terror lhes tivesse feito fugir; mas, olhando para a esquerda, vi um cavalo trotando gravemente no meio de um campo; fora a presença deste cavalo que fizera dispersar tão depressa o bando que me assaltara. Aproximando-se de mim, o cavalo estacou, recuou  e,  em  seguida,  olhou-me  fixamente, parecendo um pouco espantado; examinou-me por todos os lados, andando por várias vezes em volta de mim.

Quis andar para a frente, mas colocou-se diante de mim na estrada, olhando-me meigamente e sem praticar violência alguma. Examinámo-nos mutuamente durante certo tempo; por fim, atrevi-me a colocar-lhe a mão sobre o pescoço, acariciando-o, assobiando e falando à maneira dos palafreneiros, quando querem acariciar um cavalo; mas o animal, soberbo, fazendo pouco da minha delicadeza e da minha bondade, carregou a vista e levantou orgulhosamente uma das suas patas dianteiras para me obrigar a retirar a minha mão familiar demais. Ao mesmo tempo, desatou a relinchar três vezes, mas com uns sons tão variados, que comecei a crer que falava uma linguagem que lhe era própria e que tinha uma espécie de sentido ligado aos seus relinchos Imediatamente apareceu um outro cavalo, que cumprimentou o primeiro muito delicadamente; ambos se trataram muito bem e começaram a relinchar de cem diferentes modos, que pareciam formar sons articulados; em seguida, deram alguns passos juntos, como se quisessem conferenciar sobre qualquer assunto; iam e vinham, marchando gravemente a par, semelhantes  a  pessoas  que  deliberam  sobre coisas importantes; no entanto, não tiravam os olhos de cima de mim, como se temessem que eu tentasse a fuga.

Surpreendido por ver animais portarem-se assim, pensei de mim para comigo:

— Visto que neste país os animais raciocinam assim, é porque os homens são de uma suprema inteligência.

Esta reflexão incutiu-me tanta coragem que resolvi avançar por essa região até que descobrisse qualquer casa e encontrasse algum habitante, o que deixara ali os dois cavalos soltos; um deles, porém, que era ruço-malhado, vendo que me ia embora, começou a relinchar junto de mim de maneira tão expressiva que julguei perceber o que ele queria; voltei-me e acerquei-me dele, dissimulando o meu embaraço e a minha perturbação tanto quanto me era possível, porque, no fundo, não sabia em que daria tudo isso.

Os dois cavalos chegaram-se mais perto e puseram-se como que a examinar-me o rosto e as mãos. O meu chapéu parecia surpreendê-los, assim como a fazenda da minha roupa. O ruço- malhado pôs-se a gabar a minha mão direita, parecendo encantado, e a macieza e a cor da minha pele; mas apertou-ma tanto entre o casco e  a ranilha que  não pude deixar de gritar com toda a força dos meus pulmões, o que me atraiu mil outras carícias, cheias de amizade. Os meus sapatos e as minhas meias inquietaram-nos, farejaram-nos e apalparam-nos por diversas vezes e fizeram sobre este assunto muitos gestos parecidos com os de um filósofo que tenta explicar um fenômeno.

Enfim, a atitude e as maneiras desses dois animais pareceram-me tão racionais, tão prudentes, tão judiciosas, que concluí de mim para mim que talvez fossem encantadores que se haviam transformado em cavalos com qualquer desígnio e que, encontrando um estranho no seu caminho, tinham querido divertir-se um pouco à sua custa, ou tinham ficado atônitos com as suas feições, roupas e maneiras. Foi por isso que tomei a liberdade de falar-lhes nestes termos:

— Senhores cavalos, se são feiticeiros, como tenho motivos para crer, decerto compreendem todas as línguas; assim, tenho a honra de lhes dizer, na minha, que sou um pobre inglês que, por fatalidade, naufraguei nestas costas e peço ou a um ou a outro que, se são realmente cavalos, me deixem subir para a garupa, a fim de descortinar alguma aldeia ou casa onde possa recolher-me. Como reconhecimento, ofereço-lhes este punhal e este bracelete.

Os dois animais pareceram ouvir o meu discurso com atenção e, quando acabei, puseram-se a relinchar cada um por sua vez, voltados um para o outro. Compreendi então, claramente, que aqueles relinchos eram significativos e encerravam palavras com que, talvez, se pudesse fazer um alfabeto tão claro como o dos chineses.

Ouvi-os repetir várias vezes a palavra Yahu, de que distinguia o som sem lhe perceber o sentido, ainda que, enquanto os dois cavalos conversavam, tentasse compreender-lhe o significado. Quando acabaram de falar, desatei a gritar com toda a força: Yahu! Yahu! tentando imitá-los. Isto pareceu surpreendê-los em extremo, e então o ruço-malhado, repetindo duas vezes a mesma palavra, pareceu querer ensinar- me o modo de pronunciá-la. Repeti-a após ele o melhor que me foi possível e quis me parecer que, embora estivesse muito longe da perfeição, da acentuação e da pronúncia, tinha, no entanto, feito algum progresso. O outro cavalo, que era baio, ao que me pareceu, quis também ensinar- me uma outra palavra muito mais difícil de pronunciar e que, sendo reduzida à ortografia inglesa, pode ser escrita assim: huyhnhnm. Não me saí tão bem da pronúncia desta como da primeira, mas depois de alguns ensaios já ia melhor, e os dois cavalos notaram que eu era inteligente.

Após alguns momentos de conversa (decerto a meu respeito) despediram-se com o mesmo cerimonial com que se tinham acercado de mim. O baio fez-me sinal para caminhar adiante dele, o que julguei a propósito fazer enquanto não encontrasse outro guia. Como caminhasse muito vagarosamente, pôs-se a relinchar, hhuum, hhuum. Compreendi o seu pensamento e dei-lhe a entender, conforme pude, que estava muito cansado e me custava muito a andar. Percebendo-o, deteve-se caridosamente para me deixar descansar.


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