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Viagens de Gulliver

Capítulos 12

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Viagens de Gulliver CAPÍTULO VII

Paralelo entre os Yahus e os homens.

 

 

O leitor estará talvez escandalizado com os retratos fiéis que tracei, então, da espécie humana, e da sinceridade com que falei ante um soberbo animal que formava já uma tão má opinião acerca dos Yahus; confesso, porém, ingenuamente, que o carater dos huyhnhnms e as excelentes qualidades desses virtuosos quadrúpedes tinham feito uma tal impressão sobre o meu espírito, que não podia compará-los a nós outros, humanos, sem desprezar os meus semelhantes. Este desprezo fez-me vê-los como quase indignos de toda consideração. Além disso, meu amo tinha a inteligência muito penetrante e notava todos os dias na minha pessoa defeitos enormes, de que me não percebera e que olhava simplesmente como ligeiras imperfeições. As suas judiciosas observações inspiraram-me um espírito crítico e misantropo, e o amor que tinha pela verdade me fez detestar a mentira e tirar todo o disfarce às minhas narrativas.

Confessarei, contudo, ainda outra ingenuidade, um outro princípio da minha sinceridade.  Quando  passei  um  ano  entre  os huyhnhnms, senti por eles tanta amizade, respeito, estima e veneração, que resolvi então nunca mais pensar em voltar ao meu país, mas acabar os meus dias nesta feliz região, aonde o céu me conduziu para me ensinar a cultivar a virtude. Por muito feliz me daria, se a minha resolução tivesse sido eficaz! Mas o azar, que sempre me perseguiu, não me permitiu que eu gozasse dessa felicidade. Seja como for, agora que estou em Inglaterra, sinto-me bem contente por não ter dito tudo e haver ocultado aos huyhnhnms três quartos das nossas extravagâncias e vícios; empalidecia até, de vez em quando, tanto quanto me era possível, os defeitos dos meus compatriotas. Embora os revelasse, usava de restrições mentais e tentava dizer o falso sem mentir. Não era eu digno de desculpa nisto? Quem não é um pouco parcial, quando se trata da própria pátria?

Relatei até aqui a súmula das conversas que tive com meu amo, durante o tempo em que me honrei de estar a seu serviço; mas, para evitar ser prolixo, passei em claro muitos outros assuntos.

Um dia, em que mandou chamar-me de madrugada e ordenou que me sentasse a alguma distância dele (honra que ainda me não havia dado), falou assim:

 

— Passei pelo meu espírito tudo que me tem dito, quer a seu respeito, quer a respeito do seu país. Vejo claramente que o senhor e os seus compatriotas têm uma centelha de espírito, sem que possa adivinhar como esse pequeno dom lhes coube em partilha; mas vejo também que o uso que fazem dele é apenas para aumentar todos os seus defeitos naturais e para adquirir outros, que a natureza lhes não deu. É certo que se parecem com os Yahus deste país pela configuração exterior e que só lhes falta, para serem perfeitamente iguais a eles, força, agilidade e garras mais compridas. Mas, pelo lado dos costumes, a semelhança é completa. Odeiam-se mortalmente e o motivo que encontramos para isso é que vêem reciprocamente a sua fealdade e a sua odiosa configuração, sem que nenhum olhe para si próprio. Como os senhores possuem um átomo de raciocínio e compreendem que a vista recíproca da impertinente figura dos seus corpos era igualmente uma coisa insuportável e que os tornaria odiosos mutuamente, têm o bom senso de os encobrir por prudência e amor-próprio; mas, apesar desta precaução, não se odeiam menos, porque outros assuntos de divergência, que reinam entre os nossos Yahus, também reinam entre os senhores. Se, por exemplo, atiramos carne a cinco Yahus, que bastaria para saciar cinqüenta, esses cinco animais, gulosos e vorazes, em vez de comerem em paz o que se lhes dá em abundância, lançam-se uns contra os outros, mordem-se, dilaceram-se e todos querem tudo para si, de maneira que temos de os servir à parte e mesmo prender os que já estão saciados, com receio de que se lancem sobre os outros, que ainda não o estão. Se alguma vaca da vizinhança morre de velhice ou de acidente, os nossos Yahus mal sabem da agradável notícia, entram todos em campo, rebanho contra rebanho, curral contra curral, a ver qual se apossará da vaca. Batem-se, arranham-se, dilaceram-se, até que a vitória penda para um lado e, se não há morticínio, é porque não têm o raciocínio dos Yahus da Europa para inventar máquinas de carnificina e outras espécies de armas assassinas. Temos, em alguns pontos da região, certas pedras brilhantes de diversas cores, que os nossos Yahus muito apreciam. Quando as encontram, fazem o possível para as desenterrar de onde estão ordinariamente metidas; trazem-nas para as suas habitações e fazem delas um montão, que ocultam cuidadosamente e que vigiam sem descanso como um tesouro, tomando cuidado em que os companheiros não o descubram. Não pudemos ainda compreender de onde lhes provém tão forte tendência para estas pedras brilhantes e para que lhes podem ser úteis; mas suponho agora que essa avareza dos seus Yahus, a que aludiu, se encontra também nos nossos, e que é isso que os torna apaixonados pelas pedras brilhantes.

Quis uma vez tirar a um dos nossos Yahus o seu querido tesouro; o animal, vendo que lhe tinham arrebatado o objeto da sua paixão, desatou a gritar com todas as forças dos seus pulmões; enfureceu-se e depois caiu em grande fraqueza; tornou-se lânguido, não comeu, não dormiu, não trabalhou até que eu desse ordem a um dos meus criados para lhe restituir o tesouro, colocando-o no sítio de onde o havia tirado. Então o Yahu começou a voltar ao seu habitual bom humor e nunca mais deixou de esconder os seus tesouros em outro ponto mais seguro. Quando um Yahu descobre, num campo, uma dessas pedras, muitas vezes aparece um outro que lha disputa; enquanto se agridem, vem um terceiro e arrebata a pedra; assim finda a questão. Segundo o que me disse, as suas questões não acabam tão depressa no seu país, nem com tão pouca despesa. Aqui, os dois pleiteantes (se esse nome se lhes pode aplicar) ficam quites por nem um nem outro ficar com o objeto disputado; em contrário do que acontece no seu país, onde, pleiteando-se, se perde o que se quer ter e o que não se tem. Muitas vezes os nossos Yahus são atacados por uma fantasia, cuja causa não podemos perceber. Gordos, bem alimentados, dormindo em boas camas, tratados com meiguice pelos donos, cheios de saúde e de força, caem de repente num abatimento, num desgosto, numa negra melancolia, que os torna moles e estúpidos. Neste estado, fogem dos seus companheiros, não comem, não saem; parecem sonhar com o canto das suas habitações e abismar-se nos seus lúgubres pensamentos. Para os curar dessa doença, encontrámos apenas um remédio: é despertá-los por um tratamento um pouco rude e empregá-los em trabalhos difíceis. A ocupação que lhes damos põe em movimento todo o seu espírito e faz readquirir a sua natural vivacidade.

Quando meu amo me narrou este fato com pormenores, não pude deixar de pensar no meu país, em que muitas vezes acontece a mesma coisa e em que se vêem homens cumulados de bens e honras, cheios de saúde e de robustez, cercados de prazeres e livres de todas as inquietações, cair de repente em tristeza e languidez, tornar-se pesados a si próprios, consumir-se em quiméricas reflexões, apoquentar-se, acabrunhar-se e não fazer uso algum da sua razão, entregues aos flatos hipocondríacos. Estou persuadido de que o remédio que convém a estas doenças é aquele que se dá aos Yahus, e que uma vida laboriosa e árdua é um excelente regime para a tristeza e a melancolia. É um remédio que eu próprio experimentei e aconselho ao leitor amigo para prevenir o mal, incito-o a nunca ser ocioso; e, posto que não tenha situação alguma definida, peço-lhe que observe que há diferença entre nada fazer e nada ter que fazer.

— Os nossos Yahus — prosseguiu meu amo — têm uma violenta paixão por certa raiz que dá muito sumo. Buscam-na com entusiasmo e sugam-na com extremo prazer e sem se cansar. Então se os vê ora a acariciar-se, ora a esgatanhar-se, ora a gritar e fazer caretas, ora a pairar, dançar, deitar-se no chão, rolar e adormecer na lama. As fêmeas dos Yahus parecem recear e fogem à aproximação dos machos; não consentem que as acariciem abertamente à vista de outrem; a menor liberdade em público fere-as, revolta-as e põem-nas zangadas; quando, porém, uma dessas castas fêmeas vê passar num ponto desviado algum Yahu novo e perfeito, oculta-se por detrás de uma árvore ou num silvado, mas de maneira que o Yahu possa vê-la ao passar e abordá-la. Logo ela foge, mas olhando muitas vezes para trás, e conduz tão bem o seu manejo que o apaixonado Yahu, que a persegue, atinge-a por fim num local favorável ao mistério e aos seus desejos. Aí, doravante ela aguardará o seu novo amante, que não deixará de comparecer à entrevista, salvo se alguma aventura idêntica se apresenta no seu caminho e lhe faz esquecer a primeira. Mas a fêmea é a própria que falha algumas vezes; a mudança agrada aos dois sexos e a diversidade é tanto do gosto de um como do outro. O prazer de uma fêmea consiste em ver os machos cair, morder-se, arranhar-se, dilacerar-se por sua causa; excita-os ao combate e torna-se o prêmio do vencedor, ao qual se entrega para o agatanhar em seguida ou para se deixar agatanhar por ele próprio, e é assim que findam todos os amores. Amam loucamente os filhos; os machos, que se julgam os pais, querem-nos, ainda que lhes seja impossível assegurar-se de que tenham concorrido em parte para o seu nascimento.

Esperava que sua honra me fosse dizer mais alguma coisa com respeito aos costumes dos Yahus e que nada lhe escaparia dos seus vícios. Corava de antemão pela honra da minha espécie e temi que me fosse descrever todos os gêneros de impudência que reinam entre os Yahus do seu país; teria sido terrível a imagem das nossas devassidões em moda, em que a natureza não basta para os nossos desenfreados desejos, em que esta natureza se procura sem se encontrar, e em que inventamos prazeres desconhecidos aos outros animais, vício odioso para o qual só os Yahus têm tendência, e que o raciocínio não pôde banir do nosso hemisfério.


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