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O Monge de Cister

Capítulos 15

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O Monge de Cister: Tomo I XI - DOCTOR MATER-GALLA

Penson sempre nas cousas de sua vantagem, nem lhe nembrando de seus peccados, males e falecimentos.
LIV. D'EL-REI D. DUARTE, Conselho I.

 

Pouco havia que cessara o bulício na vasta quadra da tavolagem, quando os que ficavam defronte da porta interior viram sair dentre os umbrais um punho de mão calosa, que sustinha candeia afumada e de luz frouxa, depois dela um braço estendido e uma cabeça de perfil, e depois o corpo achavascado do besteiro, que, caminhando lentamente, olhava para trás de si. Ap6s ele, não tardou a surdir do corredor escuro um vulto que, atentas as suas formas extravagantes, reteremos um instante no limiar para que se possa reparar nele. Prima facie, dir-se-ia que era um cepo de açougue, equilibrado por mecanismo oculto sobre duas achas de pinho, e servindo de pedestal a uma abóbora moganga para cima da qual se houvesse atirado ao desdém a cabeleira ruça e cerdosa de um desembargador da antiga Mesa da Consciência ou da Casa da Suplicação. Esta cousa com pretensões de figura humana vinha ensacada em um gibão de engrês preto e numas calças de atrás da mesma cor, que, descendo justas até aos pés, iam meter-se nuns sapatos tombos de couro negro, trajo burguês, que, se no talhe desdizia um és-não-és da pragmática de Afonso IV, ao menos respeitava-a na qualidade da matéria-prima, ao passo que no grave da cor indicava que seu dono pertencia por algum lado a uma das duas classes que naquele tempo se arrogavam a posse quase exclusiva da ilustração, à dos jurisconsultos ou à da clerezia.

 

O personagem recém-vindo, averiguado bem o caso, era uma criatura da nossa espécie e ninguém menos que o licenciado Mem Bugalho, de alcunha Pataburro, alcunha enxertada na família por culpa ou por virtude de seu pai, cidadão de Celorico, que tivera tanto de casmurro quanto o filho tinha de bonacheirão e comunicativo. Cursara Mem Bugalho a escola de degredos ou decretais na Universidade de Lisboa e voltara à terra natal com a reputação de mui visto em direitos e de sabedor consumado. Devera isso principalmente às suas propensões eruditas, propensões que sobrenadavam nos seus discursos, lardeados por via de regra de bastos textos, dos quais fizera em estudante arrazoado pecúlio. O reitor da colegiada de Santa Maria de Celorico, posto que assaz duro da orelha latina, ou antes porque o era, não se cansava de elogiar o licenciado pela sua proficiência na língua do Mantuano. Jurava e tresjurava que mais de uma vez lhe ouvira citar passagens de autores romanos que até ele reitor não saberia de golpe reduzir a português. Daqui se vêem duas cousas: primeira, que o prelado de Santa Maria era modesto; segunda, que Mem Bugalho era um sábio. Sábio? Que dizemos nós? Sapientíssimo. Era cousa conhecida de todos em Celorico, e ainda nas aldeias dos arredores, o como ele herdara a designação paterna. É caso que lhe faz honra, aliás calar-nos-íamos. Quando chegou da Universidade, seu pai estava já debaixo do chão, e a alcunha de Pataburro andava, digamos assim, à matroca e quase apagada da memória dos homens. Mem Bugalho queria aceitar a herança, não absolutamente inglória, que lhe legara o seu defunto progenitor, burguês honrado e pé-de-boi, embora se chamasse Pataburro, nome na verdade áspero e malsoante, mas que nem por isso desacreditaria moralmente quem a si o apropriasse. Pôs-se a cismar o bom do licenciado, e tanto cismou que lhe veio uma ideia feliz. Foi a de alatinar aquela alcunha, satisfazendo assim à piedade filial e às orelhas pechosas. Reflectia, e com agudeza, que Pataburro se compunha de dois vocábulos pata e burro; que pata, falando do animal homem, a quem muitas vezes é aplicado e aplicável, vinha a ser sinónimo de pé, e que pé, se não mentia o Catholicon de Joanes de Jânua, espécie de Magnum Lexicon da Idade Média, soava em latim pés; que burro era a olhos vistos o mesmo que asno, e que asno latinizado dava asinus, quer natural, quer metaforicamente. Restava uma dificuldade: Pes-asinus, versão literal de Pataburro, cheirava a uma ou antes a duas heresias, uma contra a elegância, outra contra a gramática, ao passo que, transpondo pés e declinando asinus, estava achado um bizarro apelido, o de Asinipes, onde, estampada, a piedade filial passaria aos tempos vindouros em ressonante coriambo. Já daqui se conhece que, se o nosso decretalista houvera vivido nos princípios do século XVI ou nos fins do XVIII, não teria sido Pedro Nunes o inventor do nónio ou Watt o das verdadeiras máquinas de vapor. Faculdade inventiva, até ali. E ainda não era nada. Mem Bugalho Asinipes, ou Dictus Asinipes (para conservar a natureza característica de alcunha), constituía um todo contraditório, monstruoso, macarrónico. A esta desordem acudiu ele com o mesmo tino. Um erudito de água doce contentar-se-ia com Menendus Bugalius. Veio-lhe essa ideia à cabeça, é verdade. Mas que fez? Desatou a rir. Menendus Bugalus?!... Pelo amor de Deus! Vocábulos tais fariam arrepiar debaixo da lousa as cinzas de Cícero. Digam lá o que disserem os que vão para aí. Eram bárbaros, barbaríssimos. A velha palavra portuguesa madre já começava a ser dulcificada pelos pintalegretes do tempo de D. João I em mãe, e Mem, pronunciado rapidamente, não fazia diferença sensível. Estabelecido este facto, é evidente que, traduzindo Mem por mates não só ficava latim da gema, mas também dava uma graciosa adivinha. Assentou nisto o licenciado e, se é licito julgar um varão tão grande, parece-nos que assentou bem. Quanto a Bugalho, o negócio resolviase por si mesmo. Desde que no mundo há bugalhos e latim, nunca o leve e oco fruto do robusto e vividouro carvalho se chamou senão gaita no idioma venerando de Varrão, Columela e Virgílio. Foi por esta série de raciocínios, não menos agudos e severos que os do Livro da Razão Pura de Kant, que o ilustre pimpolho da viçosa Celorico chegou a organizar definitivamente o seu nome, digamos assim, de guerra, nome indispensável naquele e nos seguintes três séculos, em que um doutor que se assinasse em vulgar cometeria um pecado tão grosso como nestes nossos tempos um adepto que, ao entrar no templo do supremo arquitecto para chorar pelo defunto Adonirão, não se desbaptizasse, no átrio, do seu nome de baptismo.

 

Se o leitor achar um pouco estranhas estas particularidades biográficas do licenciado Mater-Galla-Dictus-Asinipes ou Mem Bugalho Pataburro, dir-lhe-emos que redondamente se engana. Se o apresentássemos em público sem dar explicações acerca do seu nome, aparentemente extravagante, saltavam-nos todos os críticos de fôlego curto e letras rabudas que há nesta bem-aventurada terra de Portugal; e nós respeitamos sobremodo os ditos críticos; porque de mais ciência, tacto e agudeza não cremos que se achem em todo o mundo, sem exceptuar o reino de Pegu, a Polinésia e a Cafraria.

 

Em compensação das miudezas a que descemos e que eram indispensáveis para se completar pelo lado moral o retrato material que fizemos do indivíduo ultimamente chegado à tavolagem das Portas do Mar, passaremos de fugida pelo resto da sua história. Eleito vereador poucos anos depois de voltar a Celorico, não tardara a ocupar cargo mais importante, o de juiz de foro ou ordinário da sua terra. Então é que bendisse o talento e ciência que Deus repartira com ele e deu por bem empregadas as vigílias que dedicara a fazer a conversão do próprio nome. As palavras Doctor-Mater-Gaiía-DictusAsinipes, escritas em letra grande e garrafal no fundo de um pergaminho, davam às suas sentenças uma solenidade, um ar de mistério científico, um grandioso que infundia santo e salutar temor na gente de Celorico, embora no trato ordinário, e sobretudo pelas costas, lhe chamassem o doutor Pataburro. Depois, para diversas cortes que sucessivamente foram celebradas, após as de Coimbra de 1384, no Porto, em Coimbra, em Braga e agora em Lisboa, o licenciado fora constantemente eleito procurador do município.

 

À força de repetidas viagens à capital, no ardente contacto das paixões políticas, Mem Bugalho mudara muito. Circunstâncias que fora tão longo como inútil narrar tinham estabelecido entre ele e D. Henrique Manuel, conde de Seia, certa intimidade, sincera da sua parte, calculada da parte deste. Nas mãos do conde, o honrado procurador era um instrumento que ele ia afeiçoando às suas miras na grande luta, ora oculta ora patente, do povo e dos conselheiros da Coroa com as classes privilegiadas, entre cujos chefes (segundo se depreende do pulverulento e vetustíssimo manuscrito de que nos aproveitámos para tecer esta verídica história) D. Henrique Manuel tinha um dos mais distintos lugares. Sem o sentir, Mem Bugalho estava outro homem. Chegara, enfim, a crer uma cousa que nunca sonhara, isto é, que os concelhos nas suas invectivas contra a nobreza e contra o clero podiam alguma vez não ter razão. Determinar os pontos em que esta circunstancia se dava, eis o que excedia a sua capacidade, apesar de ser, como vimos, tão descomunal. Deste modo não era raro achá-lo sucessivamente no mesmo dia, na mesma hora até, de duas opiniões diversas acerca dos negócios públicos, opiniões que, seja dito sem ofensa do carácter moral do ilustre decretalista, também vacilavam um pouco segundo a direcção que lhes imprimiam os particulares instintos e pretensões deste.

 

Resta-nos, por último, saber quais eram as causas por que Mem Bugalho se achava naquele lugar assim a desoras e em companhia de personagens tais e tão fidalgos, ele pobre vilão da Beira; porque no fim de contas o licenciado não passava de um vilão.

 

Exporemos essas causas nas mais breves palavras que soubermos.

 

Os artigos, agravamentos ou capítulos que os procuradores de cortes traziam às assembleias políticas da nação eram de duas espécies, gerais e particulares. Estes diziam respeito às necessidades, pretensões e queixumes de cada concelho; aqueles aos de todo o país. Uns, os especiais, eram determinados e escritos pelos magistrados municipais, e nesta parte o mister de procurador traduzia-se no de mensageiro; outros, os gerais, é evidente que deviam ser redigidos de comum acordo pelos representantes das cidades e vilas, aos quais neste ponto cumpria deixar um livre arbítrio maior ou menor. Mas era justamente essa parte da sua missão que importava mais directamente às classes privilegiadas: era nos artigos gerais que se agrediam os abusos da nobreza e do clero e que os delegados do povo combatiam com mais ardor os seus naturais inimigos. Ai, a grande voz do homem de trabalho fazia-se, muitas vezes sem ele o saber, intérprete dos desejos da Coroa, que parecia ceder às petições populares e que na realidade só cedia ao instinto do próprio interesse. Assim, os terríveis missionários do poder real, os juristas, deviam promover aquelas manifestações da má vontade dos pequenos contra os grandes, e estes últimos buscar amortecê-las ou anulá-las. O saber de antemão quais das seriam facilitava os meios de as combater, ou predispondo o ânimo do monarca, ou recorrendo-se a outro qualquer meio, dos muitos que costumam excogitar os temores, os ódios e as ambições políticas.

 

As cortes que se iam celebrar em Lisboa na época em que se passaram os sucessos contidos na presente narrativa começavam então– Os procuradores tinham chegado e faziam repetidas conferências, a algumas das quais, segundo se contava, assistira já o próprio chanceler. Por ditos soltos, que haviam escapado aos menos prudentes, difundiam-se notícias que inquietavam os chefes do bando aristocrático e que indicavam não estarem os concelhos resolvidos a abandonar a situação vantajosa em que os acontecimentos dos últimos quatro anos os haviam colocado. Preparavam-se, portanto, os nobres também para a luta, e nos seus conventículos ideavam os meios a que recorreriam para embargar o curso à torrente.

 

Antes de tudo, importava conhecer exactamente qual era a substância das petições populares, e num desses conventículos o conde de Seia havia-se gabado de que obteria antecipadamente a revelação dos artigos gerais dos concelhos. Contava com a fragilidade de Mem Bugalho e com as seduções de que costumava valer-se para o embair. Era dificultoso o empenho, e os outros fidalgos tinham-se mostrado incrédulos. Excitado pelo amor-próprio, D. Henrique Manuel foi mais longe. Ofereceu-se a apostar uma soma avultada em como lhes faria ouvir da boca de um dos procuradores as revela- ções em que tanto interessavam, uma vez que quisessem executar o que ele lhes ordenasse. Foi aceita a aposta e a condição, e naquela noite decidia-se quem devia perder ou ganhar.

 

Os cavaleiros estavam a mira: apenas o honrado Asinipes entrou, ergueram-se a um tempo. A luz das lâmpadas batera de chapa no rosto cucurbitáceo do antigo magistrado de Celorico. O brrruu do riso mal comprimido sussurrou, posto que indistintamente, por cima do estrépito que faziam ao levantarem-se; mas o bom do procurador ficara demasiado perplexo por se achar de súbito em tão esplêndida companhia; mal podia reparar em que nos gestos se revelava um sorriso dúbio, que não chegara a romper em estrondosa gargalhada.

 

Os únicos que haviam conservado imperturbável seriedade eram o conde de Seia e os dois monges de Alcobaça.

 

– Ah, sois vós?! – exclamou D. Henrique Manuel, dirigindo-se ao sábio decretalista. – Ainda vos não esperava! Embora. São todos amigos nossos quantos vedes. Iam partir depois de uma frugal colação; mas folgam, por certo, de os haverdes colhido em flagrante. Favoreceu-os a fortuna, porque poderão conhecer de perto um dos mais eminentes letrados de Portugal. Não é isto, meus amigos? Não folgais assaz?

 

Todos, à excepção do das Galés, se inclinaram profundamente em sinal de completo assenso.

 

Mem Bugalho estacara: olhava alternativamente para o conde e para as duas fileiras de vultos variegados e brilhantes e desfazia-se em vénias e rapapés. Quis falar; mas só lhe ocorreu a fórmula então vulgar: «Mantenha-vos Deus, senhores!» As mãos, sobretudo, incomodavam-no. Não sabia o que fizesse das mãos. Levou-as a cabeça para se coçar: viu que não iam para ali bem. Pôs-se a dar piparotes na gola do gibão; mas o gibão não tinha pó. Desceu com elas para a barriga, mas a barriga, posto que de respeitável prominência, não ameaçava desabar. Sentia que também aí eram inúteis. Achou, enfim, um mister em que as empregar. Deu alguns passos para diante e deitouas ao braço do conde, levando-o agarrado para o ângulo oposto do aposento e dizendolhe em voz baixa:

 

– Mas respondestes-me que, para estarmos sós, era necessário vir esta noite à tavolagem das Portas do Mar, e acho-me...

 

D. Henrique Manuel interrompeu-o no mesmo tom:

 

– È verdade! E que remédio, se o diabo meteu na cabeça a estes estafermos cearem aqui? Não podia, nem tinha direito a despedi-los. São, como vedes, as mais nobres lanças de Portugal. Mas se o negócio é urgente!...

 

– Trago os artigos – replicou Pataburro, abaixando ainda mais a voz.

 

– Os artigos? Quais artigos?

 

– Os artigos de cortes.

 

– Agora, agora! Mas que tenho eu...?

 

– Pois não me pedistes com multiplicadas instâncias e com promessa de inviolável segredo que, apenas resolvidos, vo-los mostrasse?

 

– Ai meus pecados! Perdoai, doutor! Esta minha cabeça! esta minha cabeça! Não me recordava de tal. Também era simples curiosidade!

 

– Curiosidade, ou interesse – interrompeu o procurador de Celorico, que não era absolutamente parvo – cumpro a minha palavra.

 

– Bem! – replicou D. Henrique. – Deixaremos sair a turba e vê-los-emos. Todavia, cuidei ser negócio vosso, objecto para mim de maior monta...

 

O doutor Pataburro tomou o ar de misteriosa gravidade.

 

– Este não é de pouca. Os procuradores estão bravos; muito bravos...

 

– Arreda, Castela! – replicou D. Henrique Manuel, com um riso que bem se conhecia não vir da alma. – Nós os amansaremos. Agora trata-se de outra cousa. Aqueles cavaleiros vê-se que nos esperam. Vamos assentar-nos.

 

– Mas eu não sou da parçaria – disse o procurador, encolhido e forcejando por soltar o braço da mão do conde, que o obrigava agora a retroceder pata a mesa, donde ele o afastara.

 

– Uma pessoa como vós é sempre desejada e bem-vinda em toda a parte em que houver espíritos grandes e que saibam quanto valeis.

 

Dizendo isto, D. Henrique tinha literalmente arrastado Mem Bugalho até junto da mesa. Os fidalgos, que se haviam assentado e cochichavam rindo, calaram-se.

 

– O doutor Mem Bugalho anui às rogativas que lhe fiz de ser nosso convidado.

 

– Viva o doutor Bugalho! – exclamaram os fidalgos.

 

Um lugar para o doutor Bugalho... onde há i lugar para o doutor Bugalho?

 

– Aqui, aqui! – bradou o marechal.

 

– Vinde, doutor, vinde – insistia o conde, levando após si o decretalista, a quem tanta lhaneza animara, e que dizia lá consigo:

 

«E teimam aqueles diabos que os fidalgos são inimigos do povo! Queria que vissem isto! Ah, senhores procuradores, senhores procuradores, sois demasiado injustos! Ainda que cuide de vender os meus torrões em Celorico e de sacudir na portagem o pó dos meus sapatos, não assinarei os capítulos. O meu voto é livre, livre e desapaixonado. Digo que não quero. Que me importa o chanceler? Nada.»

 

E na força deste acto mental de fervor contra as injustas preocupações dos seus colegas, Mem Bugalho chegou ao topo inferior da vasta mesa de castanho. O conde largou-lhe a mão; mas o licenciado começava a entrar em si. Tomou resolutamente pela esquerda, dirigindo-se ao lugar que lhe fora oferecido – Os cavaleiros enfileirados daquele lado ergueram-se e, arredando os tamboretes, voltaram-se com toda a gravidade. No momento em que passava por diante de cada um deles, o digno procurador de Celorico virava-se, desbarretava-se, curvava-se, tornava a virar-se, a endireitar-se, a cobrir-se, para de novo se revirar, desbarretar-se e curvar-se. Achara todo o seu elastério ante aquela renque de vultos esplêndidos, multicores, ridentes, que também o saudavam. Apenas o viu ao pé de si, o marechal, segurando-o pelo braço, fê- lo assentar com doce violência. Como um mar que se achana depois do frémito da procela e do banzar das vagas, o alto rumor da tavolagem asserenou gradualmente até cair em calma silenciosa.

 

Seguindo o exemplo do conde de Sei a, os cavaleiros pegaram a um tempo nas taças:

 

– À saúde – exclamou D. Henrique, levantando alto a sua copa cheia a trasbordar – ; à saúde do sabedor que não vai buscar na ciência das leis armas para combater a nobreza de Portugal: à saúde daquele que por ódios ruins e vilãos não quebra os laços da boa amizade! Honremos o homem que, procurador do povo, tem o ânimo desafogado de tristes rancores e não duvida assentar-se entre nós, como irmão, como igual nosso que é, porque a sabedoria e o lustre que dela vem à pátria comum o enobreceram e ilustraram.

 

E levando a taça aos beiços, repetiu:

 

– À saúde do doutor Mem Bugalho.

 

– À saúde do doutor Mem Bugalho – ecoou a chusma dos fidalgos.

 

E as amplas copas, empinadas vagarosamente, ficaram por alguns instantes assestadas para a grande lâmpada pendente do fecho da abóbada.

 

O licenciado ergueu-se. Estava comovido; e a comoção puxava-lhe as lágrimas aos olhos, ao passo que o desejo de se mostrar senhor de si lhe impelia o sorriso às faces. Naquela contradição de inflexões, o seu rosto espaçoso, vermelho, curvilíneo, daria à risada mais doida, mais garganteada, mais inextinguível, um título indisputável de legitimidade.

 

As ideias e os afectos emaranhados, tumultuosos, não lhe inspiravam uma única frase. Contentou-se com pôr a mão sobre o peito, curvando-se até onde lho consentia a borda da grande mesa da tavolagem.

 

Depois, pegou na taça e, fazendo razão à saúde, começou lentamente a despejá-la.

 

Entretanto Álvaro Gonçalves Camelo, prior de S. João e marechal da hoste, isto é, chefe militar imediato ao Condestável, como o Condestável o era ao rei, sopesando um pesado talhadouro de cabo esmaltado ou de obra de Limoges, ia retalhando a magnífica peça de assado que fumegava: os pratéis reluzentes passavam de mão em mão, e as conversações interrompidas recomeçavam já entre dois, entre quatro, entre seis; acaloravam-se, esmoreciam, limitavam-se, expandiam-se, generalizavam-se, bem como as chispas numa tela queimada da qual o fogo tornou a apoderar-se, que correm trémulas, incertas, fugitivas, separando-se, unindo-se, serpeando, alastrando-se, até a retingirem toda da sua cor abraseada.

 

No meio daquele sussurro, dois escudeiros mancebos, lançando de relance a vista ao digno procurador de Celorico, murmuraram ao mesmo tempo um para o outro:

 

– Não vês? Não vês?

 

E, abaixando as cabeças, riam de socapa a bom rir.

 

– Ih! – fungou um terceiro, que, ouvindo aquilo, olhara também.

 

O conde de Seia, que estava ao pé deles, voltou-se com semblante severo para os três estouvados.

 

Mas o rir mal supresso grunhia de todas as partes.

 

O conde, olhando então para o topo da mesa, deu de rosto com o licenciado e custou-lhe igualmente a conter-se. Que alma chorona poderia, de feito, ficar impassível ao contemplar o gesto do pobre Asinipes?

 

Estava em pé ainda, com a cabeça enterrada de todo entre os ombros; os olhos esbugalhados revolviam-se-lhe nas órbitas; com a boca escancarada, aspirava ansiosamente, quase sufocado, o ar que lhe pipitava nos brônquios; o vinho jorrava-lhe pelos narizes, e a sua tez cor de rábano requintara na de beterraba roxa.

 

Perturbado, ao corresponder à saúde dos fidalgos, dera-lhe o vinho no goto. Estava engasgado.

 

D. Henrique Manuel viu o perigo; uma gargalhada que destruísse o encanto do decretalista fazia-lhe perder a ele uma soma avultada, ao passo que feria todas as conveniências políticas. Era necessário conter aquela imprudente hilaridade.

 

– Sabeis o que corre, senhores? – perguntou em voz alta.

 

Voltaram-se todos.

 

– João das Regras está enfermo, muito enfermo.

 

Fora a primeira mentira que lhe lembrara.

 

– Muito enfermo o chanceler! – exclamou a turba admirada.

 

– Perdoai, conde – disse o mestre de Christus. – Ainda esta manhã vi o velho raposo no paço.

 

– Também eu!

 

– E eu.

 

– E eu.

 

Pois ouvi-o de mais de uma boca esta tarde... – balbuciou o conde.

 

– História! – interrompeu Fernando Afonso.

 

– Esta tarde o vi eu à porta de Martim Docém. Vinha da Sé e voltava ao Arco do Caranguejo. Por sinal que o maldito ia mesmo com uma cara! Cara de pecado.

 

– Então, enganaram-me – replicou D. Henrique.

 

– Trocais-me as alegrias em tristezas.

 

Mentia. Estava a rir-se lá por dentro; porque tinha obtido distrair a atenção geral do pobre Mater-Galla, que começava a desembuchar, e cujo rosto ia voltando à cor nativa de rábano.

 

– Não; de doença não morre ele – prosseguiu o camareiro-menor. – Só se for a tiro daqueles trons infernais que os Castelhanos trouxeram a Aljubarrota, ou então, se lhe cair em cima a sorte do que rezam os astros.

 

– Os astros!? – perguntou D. Henrique. – Que quer dizer isso?

 

– Não vos contei ainda de uma profecia que há tempos me fez mestre Guedelha, o físico judeu?

 

Nunca vos ouvi tal!

 

– Referir-vo-la-ei, pois, agora. Examinando os aspectos dos planetas, mestre Guedelha leu neles sinais infalíveis que anunciavam a morte próxima de uma pessoa notável. Até aqui nada há estranho; mas o que e monstruoso e horrível é o modo!. – – Não imaginais qual... Se a sorte caísse naquele velho malvado!...

 

– Mas o modo? o modo?! – interromperam várias vozes, porque a reputação de vidente do, depois tão célebre, astrólogo de el-rei D. Duarte já era assaz ruidosa para excitar viva curiosidade.

 

– O infeliz morrerá amarrado a um poste, na Praça de Valverde, queimado pela mão do algoz.

 

– Santo breve! – clamaram muitos com o acento irónico da incredulidade. – O astrólogo é descaroável!

 

– Caso singular! – acudiu com gesto pensativo o senhor de Resende. – Mestre Zacuto do Porto fez-me o ano passado a mesma profecia. O físico Guedelha não vos disse mais nada?

 

– Nada.

 

– Pois mestre Zacuto asseverou-me que, em conjunção com os sinais que indicavam esse terrível sucesso, se viam no céu um hábito de monge, uma garnacha de doutor e uma opa de rei, e três vezes escrita a palavra Joane.

 

– Quereis que vos interprete o prognóstico?

 

– perguntou a rir Fernando Afonso.

 

– Venha a interpretação! – foi o brado geral.

 

– Quer dizer que el-rei há-de fazer queimar a ossada podre e bolorenta do chanceler por conselho do escrivão da puridade. Três vestiduras: de frade, de doutor e de rei; três Joanes: Fr. João Martins, mestre João das Regras, D. João I. Será ou não será?

 

Estrondosos aplausos vitoriaram a feliz inspiração do áugur extemporâneo.

 

– Prouvera a Deus, Fernando – disse Gonçalo Vasques Coutinho –, que o teu prognóstico se verificasse!... Mas por que motivo há-de el-rei atirar a uma fogueira aquele velhaco? Tem-no servido bem. Contra nós é que ele desafoga a sua maldade, o vilão ruim!

 

– Quem sabe? Os decretos da Providência são inescrutáveis! – interrompeu o digno prelado de Alcobaça, num tom que fora difícil determinar se era místico se irónico. – As afeições dos reis parecem-se com as grimpas dos campanários no Inverno. Raras vezes viram só por metade. Depois da nortada o sul: depois do vendaval a nortada. O sorriso e a sentença de morte não se repelem quando se topam nos lábios dos príncipes. Tem-se visto tantas vezes perpassar!

 

Proferindo estas palavras, fitou o olhar de gerifalte no camareiro-menor.

 

– Que Deus vos ouvisse, dom abade! – exclamou o prior de S. João. – Nesse dia estávamos salvos.

 

– Salvos? – acudiu Gonçalo Vasques. – Como assim? Não rezam todos os do conselho pelo mesmo breviário?

 

– E porque seria um deles o sucessor do bendito chanceler? – observou o conde de Seia, o qual no jeito que levava a conversação achara ensejo de lisonjear indirectamente a sua vítima. – Não saem do estudo que el-rei D. Fernando trouxe de Coimbra para Lisboa doutores em leis e em decretais?

 

A tormenta em que se debatera o glorioso pimpolho da viçosa Celorico tinha asserenado. A glote do honrado procurador voltara ao seu estado normal. O licenciado fitou a orelha ao ouvir a patriótica reflexão do seu ilustre amigo.

 

– Sim há – replicou Gonçalo Vasques. – Mas falai a el-rei em qualquer que não seja dos de Itália. São os seus homens...

 

– Dizei antes que são os homens de João das Regras. Tirai-o afora, e a seita cairá em pedaços.

 

– Duvido!

 

– Não duvideis. Só aquele embaidor soube igualar e, talvez, exceder o Condestável na privança do Mestre de Avis. Se morresse, credes que Nun'Álvares e nós com ele não teríamos influência bastante para pôr ao lado de el-rei um chanceler afeiçoado à nobreza e para arredar pouco a pouco esse bando de harpias que, empoleiradas nos degraus do trono, não cessam de dar bicadas em nossos privilégios e liberdades?

 

– Vamos lá! – redarguiu o prior. – Suponde que o vento da morte varreu o pestífero hipócrita da face da terra. Quem escolheríeis para seu sucessor?

 

– Ninguém determinadamente – respondeu D. Henrique, fitando os olhos no procurador. – Mas que não seja um desses echacorvos roazes de Bolonha, de Pádua ou Pisa. Seja um discí1nilo dos Sanches ou dos Albernazes: um homem que não despreze as leis dos nossos maiores, os bons usos da sua terra, o direito claro e simples do velho Portugal, para nos enredam não sei em que subtilezas estranhas, que só os tais doutores de Itália entendem. Seja qualquer, menos um dos doutores de Itália!.. Doutores! – prosseguiu ele com gesto de profundo desprezo. – Perguntai-lhes o que anuncia o aspecto dos astros; interrogai-os sobre os mistérios da alquimia, com que se transformam as pedras em metais; falai-lhes dos preceitos mais triviais da cetraria ou da montaria, das nobres artes de justas e torneios, de solaus e rimances, de padrões e linhagens! Ignoram tudo; tudo quanto é útil, difícil e belo na ciência humana. Contentam-se com a geringonça não sei de que leis pagãs, com que pretendem governar cristãos. É ou não é isto verdade?

 

– Tendes razão, tendes razão! – exclamou a turba.

 

– Eis aí porque eu quero um chanceler português de alma; um chanceler alumiado, que saiba respeitar a justiça e o direito antigo, e não um dos garnachas italianos.

 

– Abaixo os italianos!

 

– Dor de reira consuma o Regras, o ignorante, o hipócrita!

 

– Ou levadigas de peste, de peste que o mate!

 

– E os outros? O que dizeis dos outros?

 

– O Gomide, por exemplo; o escrivão da câmara?

 

– E o da puridade; aquele beato de Fr. João?

 

– Oh lá, esse tem a alma negra como o hábito. Não fora ele bento! Ema melhor que o reverendo se metesse em Pombeiro a governar os seus frades...

 

– Deixa ver se ele faz assar o das Regras.

 

– Ah, ah, ah!

 

– Então, esquecem-se do chanceler-mor, do Fogaça, porque está em Inglaterra?

 

– Nada: o Fogaça nada, que é fidalgo-cavaleiro e dos nossos.

 

– Não é, não é!

 

– Sim senhor; é!

 

– Nada, não: o Fogaça não!

 

– E o corregedor da Corte, o santarrão de Gil Eanes?

 

– Falai-me nesse! A terra com ele!

 

– Todos, todos os garnachas negras! A terra os garnachas!

 

– E Pisa e Bolonha? Arrasadas sejam Pisa e Bolonha!

 

– Amen Jesus! – rosnava Lourenço Brás, que chegara por aquela parte com o pichel na mão para encher as taças e que ouvira o nome de Gil Eanes, com quem tinha antiga teiró.

 

Falavam, gritavam, bracejavam, riam, enfureciam-se. O que se passava na tavolagem das Portas do Mar era a repetição de cenas anteriores, representadas em mais numerosas reuniões de fidalgos, donde estes safam asseverando que trabalhavam em derribar João das Regras, o terrível valido, que tanto detestavam.

 

E João das Regras sabia-o, calava-se, abaixava humildemente a cabeça e, quando via ocasião oportuna, destruía-lhes um privilégio, promulgava uma lei que os ferisse, lançava-lhes às pernas os molossos populares.

 

Era um santo e pacato tomem aquele João das Regras!

 

Mas, digamos a verdade inteira: tão bom homem como o licenciado Asinipes, lá isso não era.

 

De orelha fita, o doutor Bugalho tinha escutado aquela conversação, a que suprimimos as pausas e entremeios, produzidos pela masticação, deglutição e haustos convivais. Vinham assaz transparentes as alusões à sua respeitável pessoa, e uma voz íntima dizia-lhe: <(Não te fazem favor nenhum!» Era o testemunho da própria consciência. Infelizmente, isto de consciência, se fosse entidade de músculos e ossos, iria muitas vezes dar com eles nas galés ou em África por testemunha falsa. As cócegas de ambição insensata e impossível em que se espreguiçava a sua alma não tem expressão condigna na linguagem dos homens. Tão enlevado estava nessas delicias, que se transportou mentalmente à quadra superior da Torre da Escrivaninha, onde algumas vezes entrara mais tímido e acanhado ainda que na tavolagem do besteiro. Repotreavase na poltrona de João das Regras; dava ordens aos escribas, assinava mercês, aconselhava el-rei, citava textos das decretais, ralhava, governava enfim. Governar Lisboa, o reino inteiro, ele, juiz de foro de Celorico; ele, a cujo talento e ciência o mundo ainda não fizera justiça! Ema uma ideia suavíssima, bem-aventurada. Mas o vulto severo do chanceler interino (e todavia mais efectivo que o chanceler-mor Lourenço Anes Fogaça), robusto, sadio, noivo nesse mesmo ano, apesar dos seus sessenta bem medidos, começava de novo a coagular-se-lhe na imaginativa, donde momentaneamente se desvanecera, e em breve lhe converteria os dourados sonhos em água chilra, se antes disso a matinada díabólica do tutti final dos fidalgos, nas suas imprecações contra os barbas grisalhas do conselho de el-rei não o houvesse revocado à realidade da situação, fazendo-o cair de alturas onde um momento revoara nas asas extáticas da esperança.

 

As copas ou taças giravam de novo. O pichel do besteiro, provido e esgotado três ou quatro vezes, alimentava o bom humor, e o restrugir das risadas sobrelevava de quando em quando por cima da algazarra, em que todos falavam e ninguém se entendia. O grave prior de S. João, o conde de Seia e o abade de Alcobaça eram os únicos que pareciam preocupados e que mediam pelas suas forças digestivas o número das libações, enquanto Fm. Vasco se abstinha de tocar na taça, inutilmente cheia diante dele, como se abstivera de entrar em conversação com alguém. O prior-marechal, que parecia interessado em fazer ganhar a aposta a D. Henrique Manuel, olhava repetidas vezes para de, interrogando-o com um meneio de cabeça, e a cada aceno de D. Henrique fazia sinal a Lourenço Brás para que enchesse a malga do procurador, cujo raio visual ia começando a representar-lhe na alma dois vultos por cada circunstante. Pataburro sentia-se verdadeiramente feliz. Estava capaz de abraçar Belzebu, se ali lhe aparecesse, e até de mostrar boa cara a seu compadre João Boroa, mordomo de Celorico, com quem tivera uma demanda de cinco anos, antes de ser juiz ordinário, sobre as horas de água que tocavam a cada um para a rega de dois campos limítrofes.

 

As disputas, os motejos, o comer e sobretudo o bebem prolongaram-se por mais de uma hora. D. João de Ornelas distinguia-se entre os mais pela sua jovialidade, e ninguém diria que esse monge flórido, vermelho, folgazão, era o terror dos desgraçados moradores dos coutos de Alcobaça. Pelo contrário, o seu companheiro jamais saíra daquela espécie de insensibilidade que mostrara desde o princípio. Lisboa repousava profundamente, e só do edifício mourisco das Portas do Mar transpirava um ruído duvidoso de orgia, que, sussurrando ténue a alguma distância, se escoava pelos estreitos becos da judiaria mais próximos da catedral e fazia durante alguns momentos pôr à escuta a molda estremunhada dos homens de armas do alcaide-mor, que passavam cabeceando ao longo da vizinha muralha. 

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