O Monge de Cister: Tomo I VIII - O POSPASTO
Ca bem sabereis, senhor, que vós sois posto no mundo, por autoridade do apostolo, para louvor dos bons e vingança dos mãos.
INFANTE D. PEDRO, Carta a el-rei seu irmão.
À roda de um bufete, onde se viam em pratos de metal, não rico, mas polido e brilhante, alguns restos de iguanas, estavam assentados três frades. Uma lâmpada, pendente do tecto profundo da casa por uma delgada cadeia de ferro, dava um clarão bastante forte sobre o bufete e banhava em luz as faces dos três monges, cujas feições discordavam completamente. Um tinha o aspecto alegre, com todos os sinais de vigorosa saúde, e os cabelos espessos, posto que já grisalhos; outro, cujo rosto era macilento e magro, tinha a fronte calva, os olhos encovados, porém serenos e ao mesmo tempo penetrantes, e viam-se-lhe na testa rugas que aí havia sulcado não tanto a idade como o hábito de fundo meditar; o terceiro era um destes homens, em cujo crânio Gall nada poderia adivinhar; em cujas feições Lavater gastaria debalde toda a sua perspicácia: crânio sem prominências; feições sem linguagem muda: homem que hoje prestaria, quando muito, para par do remo ou deputado, e que, apesar de lançado na vida activa, não seria capaz nem de um crime, nem de uma verdadeira virtude; enfim, um destes caracteres safados, como as moedas demasiado antigas, aos quais quadra às mil maravilhas um título que o mundo costuma dar a quem se acomoda com todos os seus preconceitos e respeita todos os vícios: o título de excelente pessoa.
O frade calvo e macilento tinha começado a falar, e os outros dois escutavam-no em silêncio.
– Já vejo, reverendo abade, que vos lembrais ainda do noviciado de Fr. Vasco, cuja história acabais de ouvir: agora resta-me contar-vos a de sua desgraçada irmã, para poderdes fazer-me essa mercê de que vos falei, com que se dará por bem pago o pobre Fr. Lourenço, a quem, segundo afirmais, a Ordem de Cister deve bons e longos serviços.
– Prossegui, reverendo doutor – respondeu D. João de Ornelas, que escutava o mestre de Teologia enquanto o outro frade, o reitor de S. Paulo, cabeceava e sentia cerrarem-se-lhe os olhos quase invencivelmente. Mas, primeiro que tudo, dizei-me como soubestes a história da irmã de Fr. Vasco, a quem, se me não engano, destes o nome de Beatriz?
– Uma e outra cousa vos direi em breves palavras – acudiu Fr. Lourenço. – Chamado hoje para ouvir de confissão uma pobre mulher de Restelo, fui encontrar essa mal-aventurada donzela, que o seu roubador deixara entregue ao próprio destino logo que dela se aborrecera. Sozinha, abandonada por aquele malvado, sem conhecer ninguém em Lisboa, teria morrido ao desamparo, se não fosse a caridade de um pobre mouro, truão de ofício, que lhe deu gasalhado e alimentou largo tempo. Acompanhavame Fr. Vasco; mas não a viu. Só depois de partirmos lhe disse que a pessoa que eu acabava de confessar era sua irmã; era Beatriz. Custou-me a retê-lo, impedindo que voltasse atrás e a assassinasse. Mas salvei-a e salvei-o a ele. Agora pedir-vos-ei a mercê que espero me concedais.
– E qual é ela? – interrompeu D. João de Ornelas?
– Que faleis a el-rei neste caso atroz e que imploreis a sua justiça a favor de um monge da nossa ordem e de sua mesquinha irmã.
– Atroz... sim atroz... – tornou o abade, hesitando e fazendo uma pausa a cada palavra que proferia – atrocíssimo!... Mas, em verdade, reverendo Fr. Lourenço, que quereis que el-rei faça? Tais crimes, em tempos trabalhosos como estes, convém disfarçá-los; porque el-rei há mister de bons cavaleiros...
– Perdoai-me, dom abade! – atalhou Fr. Lourenço, a cujas faces subira o rubor da indignação.
– O que mais convém a um rei em todos os tempos é ser justo. Quem tira uma filha da casa paterna sem consentimento do que a gerou; quem, para enganar uma donzela inocente, troca por nome suposto o verdadeiro nome e que, satisfeitas as suas paixões brutais, entrega a mal-aventurada à desonra e à miséria, é um infame. Que a aceite por esposa ou caia sobre ele a pena da lei: seja infamado para sempre e perca seus bens. Não faltarão a Portugal cavaleiros honestos para o salvar das mãos dos inimigos. A bênção de Deus valerá bem a el-rei a espada e a lança de um homem traiçoeiro, embaiador e vil.
– Quê? Pois D. Vivaldo não se chama assim? – replicou maquinalmente o abade, a quem as reflexões morais de Fr. Lourenço começavam a secar sofrivelmente.
– Não! Tomou esse nome enquanto residiu nos paços de Vasqueanes. O verdadeiro revelou-o a Beatriz quando a arremessou no abismo da perdição, asseverando-lhe que o escondera, porque entre a sua família e a dela subsistiam ódios antigos que só o tempo podia destruir. Com este pretexto a persuadiu à fuga; com este pretexto a obrigou a viver oculta em Lisboa. Foi também por esse meio que pôde rir-se impunemente da vingança de Vasco, que o teria apunhalado, se o imaginário D. Vivaldo não fosse uma sombra vã, que de não podia encontrar. Sabeis quem é o miserável hipócrita? É um escudeiro cortesão e gentil-homem: um nobre fidalgo, valido de D. João I; é Fernando Afonso, o irmão mais moço de João Afonso de Santarém.
Ouvindo aquele nome, D. João de Ornelas recuou o tamborete em que estava assentado e ia soltar uma exclamação; mas conteve-se. Abaixou a cabeça e começou a esfregar as mãos e a estorcer os dedos com grande rapidez, mexendo os beiços, com quem falava consigo mesmo, sem proferir palavra.
Houve um largo espaço de profundo silêncio.
– Se vós, padre abade – disse por fim Fr. Lourenço com visível ansiedade –, não quereis tomar sobre vossos ombros o peso deste negócio, permiti que eu, monge sem valia e desconhecido, o faça; que vá pedir justiça a D. João I. El-rei é generoso e justo: não a negará ao pobre frade, quando de invocar, além das leis do céu, as da terra, que seu avô promulgou e que seu virtuoso pai soube fazer respeitar por tal arte que mereceu dos maus o nome de cru, dos bons o de justiceiro.
– Não! reverendo Fr. Lourenço! – acudiu D. João de Ornelas, como quem caía em si. – Falei de leve. Agradeço-vos essa linguagem, severa mas justa, que me revoca ao sentimento do próprio dever. Estou, pela minha situação, no caso de contribuir para a boa execução das leis. Fernando Afonso é nobre, mimoso de el-rei e protegido pelo insolente prelado de Braga; mas, à fé, que um abade de Alcobaça mostrará que não vale menos que o metropolita da Galiza. Obrigarei el-rei a fazer justiça contra esse miserável, que abusou do gasalhado recebido; que lançou uma nódoa indelével sobre o nome de uma família honrada; que se cobriu a si próprio de infâmia. Fernando Afonso, Fernando Afonso, a espada da lei está erguida sobre a tua cabeça!... O braço que há-de descarregar o golpe é o de D. João de Ornelas. Saberás se ele é duro! Juro que o saberás!
Dizendo isto, o abade desandou uma punhada sobre o bufete, com tal violência que o reitor meio adormecido deu um pulo e levou as mãos à cabeça. Fr. Lourenço tomou as palavras e o murro do abade por um movimento sublime de santo zelo de justiça.
Santo homem era o bom de Fr. Lourenço!
– Reverendo reitor – prosseguiu D. João de Ornelas erguendo-se –, preciso de recolher-me à cela que me está destinada. Avisai também o irmão Fr, Vasco de que ainda esta noite lhe quero falar: dispenso para isso qualquer disposição em contrário, que me possais apontar da nossa santa regra.
– Padre abade – disse Fr. Lourenço, interrompendo o reitor que ia responder –, a santa regra ordena que um monge de idade grave pouse sempre junto com um dos mancebos. Fr. Vasco é o meu companheiro desde que veio para S. Paulo. Avisá-lo-ei de que deve comparecer ante vos, e por Jesu-Cristo vos rogo tranquilizeis aquela alma, onde entraram de novo todos os sentimentos de ódio e vingança, desde que soube quem era o roubador de sua irmã e as artes infames de que se valera para a fazer desgraçada.
– Oh, por esse lado – tornou o abade – podeis ficar descansado, virtuoso Fr. Lourenço. Buscarei restituir a paz ao coração do mancebo. Espero que não resista às minhas consolações e conselhos. Fiai-vos em mim!
– Mal o conheceis, senhor! – respondeu tristemente o mestre de Teologia.
– Permiti-me, padre-mestre, dizer que conheço melhor que vós os segredos do coração humano. É que vós tendes a ciência dos livros, e eu tenho a ciência do mundo.
Dito isto, D. João de Ornelas encaminhou-se para a porta do aposento, lançando os olhos de través para Fr. Lourenço e sorrindo com um sorriso em que havia o que quer que era diabólico.
Dali a pouco os passos dos três monges soavam ao longo do dormitório contíguo.
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