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O Monge de Cister

Capítulos 15

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O Monge de Cister: Tomo I III - A CAÇADA

Hora devees de saber que aquel boom alaão de Bravor, comprido dardimento e de boomdades, segundo saa naturesa, era assi acostumado, que... nem porco nem husso, nem outra animalia com que se encontrasse, nom avia de travar em ella, a menos de lho mandarem fazer.
FERNÃO LOPES, Cr. de D. Fern., Cap. 99.

 

– Vinte dias e outras tantas noites – prosseguiu Fr. Vasco –, com uma cota de malha vestida por baixo do pelote e da capa e com o meu punhal na cinta, vagueei horas inteiras em redor da pousada de Lopo Mendes. Muitas vezes o vi sair e descer para a banda de Valverde, ao longo da muralha do norte. Seguia-o de longe, até o ver sumir-se nas mas tortuosas e escuras do coração da cidade. Eu subia então outra vez a encosta e vinha curtir tardanças da hora de sangue nas cercanias das casas de Álvaro Pires. Finalmente essa hora suspirada bateu.

 

«Era pela manhã cedo de um dia de Fevereiro. O tempo ia sereno, posto que frio. Aquela noite, bem como as outras, mal passara pelo sono, e ainda este povoado do sonhos horrendos. Apenas rompeu a alva, montei a cavalo e, seguido do meu pajem, voltei à ocupação quotidiana. Atravessei a cidade, saí pela Porta de Santa Catarina, e corri com o muro ao longo da barbacã. Quando cheguei defronte do postigo de Álvaro Pais vi cousa que me fez parar.

 

«Montado em um corredor ruço-pombo e vestido de monte, Lopo Mendes saía para o arrabalde. Acompanhavam-no um pajem e o falcoeiro com um galgo e um alão atrelados e um nebri em punho. Cortejou-me ao perpassar. Com um movimento convulso apertei o conto do meu punhal e também o saudei. Partiu. Segui-o de longe: por montes e ladeiras, por lugares selvosos e chãos calvos, nunca o perdi de vista. Ele perseguia as aves e alimárias inocentes: eu perseguia-o a ele. Qual de nós seria mais feliz? Nem eu o sabia, nem ele.

 

«Por bicadas de montes e por barrocais, por entre os silvados e olivedos entremeados de vinhas que se penduram pelas encostas até as margens do Alcântara, nunca me alonguei dele. Tinha deixado o meu cavalo ao pajem; também ele deixara o corredor ao seu. Só com o falcoeiro, metia-se por brenhas e saía às clareiras. Eu, como o seu anjo mau, ia muitas vezes bem perto dele, cosido com os cômoros e sebes ou sumido pelos algares das torrentes ou pelos córregos das quebradas. Chegou a uma ponte de madeira e atravessou o rio para a banda do ocidente. A serra fronteira, calva aqui e acolá, é pela maior parte enredada de urzes e tojos, por entre os quais apenas se encontram estreitas trilhas de pastores. É, talvez, este o único sítio dos arredores a que se possa chamar um ermo. Deixei-o embrenhar e transpus o rio após ele. Por alguns momentos julguei que o tinha perdido, mas divisei-o por fim sobre um penedo a meia serra. Acerquei-me o mais perto que era possível. Escutei: batia-me o coração com força. Ouvi-o gritar: "Bravor, ao fojo!" Era ao galgo que falava. Vi partir este destrelado por entre penedias: uma lebre corria adiante; o cão ia alcançá-la. De repente um e outro desapareceram, como se a terra os houvera engolido,

 

«Lembrei-me então de me haverem contado que por toda esta serra se encontram caminhos subterrâneos cuja origem se ignora. Uns os supõem obra da natureza, outros dos homens. Tinham-me dito que os caçadores, usados a frequentar estes sítios, conheciam as entradas e saídas desses corredores tortuosos e escuros e que muitas vezes se aproveitavam disto para lançarem os lebréus por um cabo e dividirem-se para lhes tomar as saídas. Começara a desanimar; mas esta lembrança me avigorou a esperança.

 

«Não me enganei. Ouvi Lopo Mendes falar com o falcoeiro, e vi partir este, levando o nebri em punho e o alão atrelado. O cavaleiro seguiu a pista do galgo e, como ele, desapareceu entre o fraguedo.

 

«Ajoelhei. Dava graças ao Céu, que devia rejeitar a minha gratidão blasfema.

 

«Erguendo-me, parecia-me que o coração se me dilatava. Tinha as mãos, o rosto, os joelhos feridos e ensanguentados; mas já não era preciso arrastar-me por mais tempo, como a víbora, por valados, balsas e sarças. O tigre arrojava-se acima da preia com a fronte erguida, com o bramido do contentamento e diante da luz do Sol.

 

«Este havia começado a sua declinação diária quando cheguei àquelas concavidades, cujo ádito, escondido entre a penedia, só divisei ao dar de rosto com ele. Era virado ao ocidente, e a claridade da tarde, já bastante amortecida, batendo nas paredes irregulares da primeira gruta, penetrava indecisa até meia área da caverna imediata, por um arco de pedras amareladas e brutescas como o resto do covão. No meio daquele arco um vulto de homem, curvado para diante e firmando as mãos sobre os joelhos, parecia tentar o ver alguma cousa através das sombras que tinha diante de si. Escusado é dizer-vos cujo era esse vulto.

 

«Com os braços cruzados, contemplei-o imóvel da entrada do subterrâneo: estava tão embebido em esperar o seu lebréu, que não deu tino de mim.

 

«Entrei: o chão era barrento e húmido. Ajudado por esta circunstância, caminhei com passos lentos e subtis, por tal modo que estava junto de Lopo Mendes, e de não me sentia.

 

«Aferrei-o por um ombro sem dizer palavra: ele apenas pôde voltar meio corpo, dando um estremeção.

 

«– Que me quereis? Quem sois? – perguntou perturbado.

 

«– Um vilão que vem dizer-te o seu nome, para o mandares açoutar como um mouro fugidiço.

 

«– Entendo, senhor cavaleiro! Mas escolhestes mau lugar e hora para renovar requesta. Em tanto aqui a aceito, se me disserdes vosso nome...

 

«– O meu nome? – gritei eu. – O meu nome e Vasco da Silva! Conhece-lo? Requesta já ta fiz: não a aceitaste. Querias o meu nome para atirar-me a cabeça aos pés do algoz? Tu és vil, Lopo Mendes; vil como tua mulher, que se prostituiu a ti, atraiçoando-me, porque tinhas mais dois avós, mais dois punhados de dobras. Repto!... É tarde para falar nisso.

 

«Dizendo estas palavras, levei a mão à cinta e arranquei meio punhal.

 

«– Mas é um assassínio!...

 

«– Adivinhaste!

 

«Lopo Mendes pretendeu desembaraçar-se. Pobre cortesão! Os ossos do ombro rangeram-lhe debaixo da minha mão ensanguentada pelas urzes e silvados: vergou e caiu de joelhos.

 

«– Por vosso pai, por vossa irmã, Vasco da Silva, que não me assassineis!

 

«– Meu pai – tornei-lhe eu com uma tranquilidade que devia ser horrível – foi morto por um homem tão vil como tu; irmã já não a tenho: converteu-se numa barregã tão infame como tua mulher.

 

«– Por Deus, que não queirais lançar a minha alma no inferno! Não me mateis sem confissão!

 

«Não lhe respondi: sentia na boca um gosto de sangue: cor de sangue me parecia a frouxa luz que me alumiava. Ergui o punhal e cravei-lho duas vezes no peito: caiu. Ajoelhei ao pé dele, curvando-me, e gritando-lhe ao ouvido:

 

«– No inferno nos encontraremos!

 

«Quando saí da caverna o Sol ia-se pondo; quando passei o Alcântara, tocava o sino da oração. Chegando ao lugar onde deixara o pajem com o ginete, cavalguei sem dizer palavra: atravessei os campos e as ruas da cidade já desertas, e tanto que entrei na pousada, sem tomar nenhum alimento, sem saber o que fazia, encerrei-me na minha câmara.

 

«Que noite, padre! que noite!.. – Estes cabelos não estavam brancos no outro dia; mas a alma tinha-me envelhecido vinte anos. Acordado, com os olhos abertos, via Lopo Mendes, ensanguentado, entre chamas, em pé diante de mim: os seus olhos eram dois carvões acesos, que se lhe revolviam à flor do rosto. Cerrava os meus; via-o através das pálpebras, imóvel, silencioso! O suor corria-me da fronte em bagas. A oração fora o meu único refúgio naquela afrontosa agonia; mas não havia uma só palavra de oração de que o espírito se recordasse ou que os lábios pudessem repetir. O rezar é para os inocentes: eu tinha escrito o meu nome com sangue no livro maldito dos grandes criminosos.

 

«No outro dia, com a luz, com o tumulto da vida, os meus terrores asserenaram. Recobrei o sentimento da vingança; mas já não era tão inteiro e violento, porque com ele se misturavam remorsos. O pajem que comigo trouxera mandei-o voltar para o meu castelo, tomando por pretexto algumas ordens que tinha de comunicar ao mordomo do solar. A morte de Lopo Mendes devia divulgar-se, e eu temia que as desconfianças estouvadas do pajem me atraiçoassem. Não receava o castigo; mas considerava-me como ligado à missão de sangue que meu pai me incumbira na hora da morte. Desempenhada esta, nada me importava morrer, e pouco mais que o lugar da agonia fosse uma cama de frouxel e telas alvas ou o cepo duro e coberto de luto do cadafalso.

 

«Era pelo fim da tarde quando saí da pousada. Encaminhei-me para o sítio da morada de Lopo Mendes: queria saber o que se passara, e a ninguém podia encarregar disso sem alevantar suspeitas. Quando aí cheguei, já o crepúsculo da noite mal deixava enxergar os objectos. Pelas frestas das casas contíguas às de Álvaro Pires bruxuleava o clarão das candeias e tochas, mas nessa habitação tudo estava fechado e escuro como um sepulcro. Pelo profundo portal do edifício entravam e saíam vultos negros e silenciosos. Cheguei mais perto, e então percebi distintamente os choros e prantos das carpideiras misturados com os salmos religiosos e com as orações pelos finados. Transpirando através das vidraças e portas cerradas, estes sons frouxos e discordes vinham bater-me nos ouvidos e, em vez de me causarem prazer, como eu imaginara nos meus sonhos de vingança, esmagavam-me o coração e faziam-me eriçar os cabelos.

 

«Era evidente que o cadáver de Lopo Mendes tinha sido encontrado; mas importava-me saber como e se havia algumas suspeitas acerca do matador. Dirigi-me a um daqueles vultos que incessantemente entravam e saíam, e perguntei-lhe o motivo dos prantos que ouvia.

 

«Soube então que o falcoeiro voltara em busca de seu senhor e que, encontrando-o assassinado, correra à cidade como louco a dar conta daquele sucesso; que a justiça, guiada por ele, fizera conduzir o cadáver para ser sepultado, o que nessa noite se verificava; que, a princípio, algumas suspeitas tinham recaído sobre o falcoeiro; mas que estas se haviam desvanecido, atendendo a que era um antigo e leal servo e a que, se tivesse sido o assassino, não seria ele que por si próprio se viesse oferecer ao castigo; que, todavia, tinha sido posto a ferros até se averiguar quem havia cometido aquele homicídio, o que ainda era um mistério.

 

«Ainda bem não tinha acabado de ouvir esta narração, quando a luz viva de muitas tochas alumiou subitamente as escadarias e o pátio da casa, e os prantos e hinos reboaram distintamente pelas abóbadas. Era o saimento que descia. Encostei-me para o ângulo do edifício e dali contemplei a minha obra infernal.

 

«Os frades de S. Francisco vinham adiante com os capuzes metidos na cabeça e tochas acesas nas mãos, rezando em voz baixa e soturna: seguia-se a tumba, levada em colos de homens e coberta de panos negros. O suor corria-me em fio da fronte; os dentes batiam-me uns contra os outros. Porque estava eu ali? Não o sabia. Oh, venerável Fr. Lourenço, era o meu crime que me tinha de sua mão: era ele que não me deixava tirar os olhos daquela horrível tumba! Vergava-me o coração debaixo do peso dos remorsos, e, todavia, lembrava-me de que ainda me faltavam mais vitimas!

 

Neste ponto da sua narrativa o monge calou-se por alguns momentos, como quem buscava atar o fio partido das ideias e trabalhava por cobrar novas forças para prosseguir. O mestre de Teologia tinha os olhos fitos nele, sem pestanejar, e nas suas feições transparecia o horror em que lhe afogava o ânimo tão medonha e abominável história.

 

– A tumba havia passado os umbrais da casa continuou o moço frade – e ainda eu a seguia com os olhos, quando, após tantos vultos negros, um alvejar de roupas atrás do ataúde me distraiu. Era ela: era Leonor! Pendia-lhe da cabeça um longo capuz de vaso, flutuando sobre a túnica de almáfega alvacenta, que lhe arrastava até o chão. Chorava e soluçava pelo morto! E eu ali; traído, esquecido, miserável, criminoso por ela! Era ainda formosa: mais, porventura, que no tempo dos nossos amores! Não sei o que me reteve que não me arrojasse a seus pés e Unos beijasse e lhe pedisse perdão e depois a apunhalasse. O meu arquejar devia soar bem longe: mas não disse nada. Padeci e sofri.

 

«Donas, donzelas e cavaleiros, também vestidos de burel branco e com as cabeças cobertas de vaso, rodeavam Leonor. Após eles mais nada, senão algum povo que começava a ajuntar-se. O portal ficou deserto, e apenas se ouvia, lá em cima nos aposentos, o choro das pranteadeiras, que provavelmente não tinham ousado acompanhar o morto com suas lágrimas venais.

 

«Meti-me entre o povo e segui o saimento. Aquele complexo de frades e cavaleiros e donas e donzelas e hinos e rezar baixo e soluçar e carpir, entre cujo mover incerto e lento, entre cujo ruído soturno e temeroso, eu via a menor acção de Leonor, ouvia o menor acento da sua mágoa acerba e afogada em choro, era como um redemoinho que me arrastava e embebia em si irresistivelmente. Vago e monstruoso, como aquele longo vulto de muitos vultos, como aquele vozear de muitas vozes, era o que se passava em mim: se aflição ou prazer, remorsos do crime ou contentamentos da vingança, sede de mais sangue ou desejo de perdão, ódio imenso ou amor desperto de novo com dobrada ânsia é o que não saberei dizer-vos. Porventura, era isso tudo, que a um tempo me assaltava e despedaçava o coração.

 

«Chegando à Igreja de S. Francisco, o saimento atravessou o portal do meio e seguiu ao longo da nave central. No cruzeiro estava um estrado coberto de negro: depositaram em cima o ataúde; abriram-no, e os salmos da morte, momentaneamente interrompidos, reboaram de novo por aquelas fundas arcadas.

 

«Havia-me encostado a uma das colunas das naves, para ali ir bebendo gole a gole o meu cálix de amargura. Quando abriram o ataúde, lancei para lá os olhos, sem saber o que fazia. Vi a face lívida do morto: tinha os dentes cerrados, as feições contraídas, e de cada canto da boca pendia-lhe um fio de sangue negro e gelado, como devia estar o que eu lhe deixara nas veias. Voltei os olhos num relance, mas continuei a vê-lo... então... depois... agora mesmo.., talvez para sempre... talvez na hora tremenda da derradeira agonia!

 

O moço frade não disse, murmurou ou antes rugiu estas últimas palavras: afastouse com ímpeto de Fr. Lourenço, apertou a testa com as mãos ambas e exclamou:

 

– Ai, quem me tira isto daqui!

 

Este brado, semelhante ao grito de homem que matam a ferro, despedaçava o coração.

 

Um grande crucifixo estava encostado à parede na cela de Fr. Lourenço. O velho monge atirou-se de joelhos, abraçando os pés da cruz e derramando rios de lágrimas.

 

– Pelas tuas divinas chagas, por teu sangue vertido sobre a cruz, Redentor do mundo, perdoa a este mísero, como perdoaste aos algozes que te crucificaram!

 

Estas palavras ainda as ouviu Fr. Vasco. Depois a oração de Fr. Lourenço soava apenas como um murmúrio de aragem da tarde por campina de ervas rasteiras. Era a oração que os ouvidos dos homens não ouvem; aquela que Deus entende. E à proporção que o rezar do velho se afervorava, as mãos confrangidas de Fr. Vasco lhe iam descendo da fronte, e esta se lhe asserenava. Ficou imóvel olhando para o ancião, cujas longas melenas brancas varriam o ladrilho do aposento. Também dos olhos lhe rebentaram algumas lágrimas.

 

Fr. Lourenço ergueu-se por fim. Reluzia-lhe no rosto uma alegria celeste. Fr. Vasco arrojou-se outra vez no seio do homem justo. Que consolação há aí semelhante à de alma crivada de remorsos, quando se encosta a outra cujos pensamentos moram aos pés do trono do Senhor? Comparada com ela, a do nu e faminto, recebido no regaço do abastado, pode-se chamar desconsolo.

 

Leonor, Beatriz, meu pai, D. Vivaldo, a vingança – prosseguiu Fr. Vasco – tudo me desapareceu da alma com aquela vista medonha. Saí como louco da igreja. Precisava de ar, porque me faltava a respiração; precisava das trevas da noite, porque a luz que aí havia era luz de mortos. Vagueei horas inteiras pelas mas da cidade, àquela hora ermas e tenebrosas, até que, meio desfalecido, me recolhi à pousada.

 

«Era meia-noite. Esta, e as que se lhe seguiram foram semelhantes à antecedente, povoadas de visões e de terrores – Lembrei-me umas poucas de vezes de atirar a minha alma ao inferno, apunhalando-me; mas avaliava já os seus tormentos, e não ousei tanto. Crede-me, Fr. Lourenço, um homem que se mata a si próprio ou é um louco ou tem coração tão danado que desconhece os remorsos. Só quem passasse pelo que eu passei entenderia plenamente a significação destas palavras condenação eterna.

 

«Foi depois de quinze dias de insuportável padecer que um raio de esperança aluminou as trevas desta alma. Lembrei-me de buscar-vos. Todos vos diziam bom, e que tínheis a virtude de asserenar as tempestades do espírito...

 

– Fr. Vasco interrompeu o velho monge com aspecto severo –, esses milagres fá-los Deus, e não o vaso de barro que é seu instrumento e que, depois de servir, ele parte no dia em que se tornou inútil.

 

– Procurei-vos. O meu intento era contar-vos tudo; mas desfaleci no propósito. Ouvistes só metade da minha negra história: agora aí tendes nu este coração. Por Deus, que não amaldiçoeis o pobre Vasco: por Deus, que não o amaldiçoeis quando ele vos disser que este santo hábito, amortecendo os seus terrores, fez ressumbrar de novo o amor, a sede da vingança, a memória do legado paterno, todos os sentimentos que o fizeram criminoso. Oh, reverendo nono, eu perdoaria tudo, menos uma afronta ao nome de meus avós; eu esquecer-me-ia de tudo, menos de um amor puro e ardente, como era o meu, desprezado, escarnecido por mulher leviana e refalsada; eu cerraria os ouvidos a todas as sugestões, mas não posso cerrá-los à voz de meu pai, que lá debaixo da terra me brada: Vingança!

 

– Vasco, Vasco! Desgraçado! Aquele fez mais do que isso: amou e abençoou os que lhe cuspiram nas faces e lhe tiraram a vida nos tormentos da cruz.

 

E apontava para o crucifixo.

 

– Não posso murmurou o moço frade.

 

Fr, Lourenço ajoelhou de novo e curvou a fronte para o chão. Desta vez, não aos pés da imagem do Salvador, mas aos pés de li. Vasco, ora beijando-lhos, ora abraçandoo pelos joelhos.

 

– Meu irmão, filho de S. Bernardo, não queiras perder a tua alma. Este pobre velho to pede chorando! Perdoa! perdoa! Se os que te ofenderam viessem agora ajoelhar-te aos pés e implorar piedade, negar-lha-ias tu? Não! E se o fizesses... – aqui Fr. Lourenço ergueu-se rapidamente, e em pé, com o braço mirrado e pálido estendido para Fr. Vasco, e saído um pouco fora da manga do hábito, tomou a postura e o aspecto de um profeta que fala em nome de Deus – se o fizesses, o Senhor lhes perdoará por ti, e réprobo foras tu, não eles. Talvez a estas horas desejem dizer-te peccavi! Talvez chorem com lágrimas de sangue! E tu? Blasfemas. Se não se arrependerem, crês que a justiça divina dorme? Vasco, também tu és réu, como eles. Perdoa, se queres perdão. O juiz de nós todos é o que mora nos céus.

 

O monge não respondeu nada.

 

Também nós não protrairemos por mais tempo esta cena de luta moral, em que o virtuoso velho trabalhava por salvar um desgraçado, que nascera bom e honesto, e que a sociedade fizera culpado. Mentirosa, corrupta e má, a vida social, cheia de erros, preocupações e vícios, danada nas instituições e nas leis, nas crenças e nos costumes, educa as gerações e os indivíduos, legando-lhes largo cabedal de perdição; e quando os arbustos plantados em terra peçonhenta, tendo bebido uma seiva venenosa, produzem seus frutos de morte, o mundo, ao mesmo tempo malvado e hipócrita, horroriza-se, abomina a sua obra e, ajuntando-se à roda do cadafalso dos supliciados, que ele próprio lá conduziu, saúda uma cousa a que pôs por nome justiça e que não é mais que uma desculpa embusteira da ignorância e da perversidade, não do indivíduo criminoso, mas desse vulto hediondo e informe chamado sociedade, para o qual não há, nem leis, nem punição, nem algozes. Semelhante ao nosso, semelhante aos que hão-de vir, era o século XIV; e Fr. Vasco, lançado na carreira do crime pelo pundonor de cavaleiro e de nobre, pela exageração de fortes paixões, era uma vítima das ideias do seu tempo, como tantos o são das do nosso.

 

Desde o dia em que se passou o diálogo que deixamos escrito, Fr. Lourenço foi como o anjo-da-guarda do pobre Vasco. Uma simpatia inexplicável para ele o unia a este mancebo, a quem o velho ganhara amor de pai. Era que entre estas duas almas havia uma harmonia; ambas elas eram nobres e generosas. Como duas árvores gémeas nascidas num vale roto por algum fojo profundo, que misturam as raízes em abraço fraterno e das quais uma, posta na aresta do abismo, tem o tronco e os ramos de um verde mal-assombrado pendentes sobre a voragem, que ameaça tragá-la, enquanto a outra, aprumada e alegre, braceja vergônteas para o ar e para o sol, assim destas duas almas, ambas na essência formosas, uma se balouçava triste às bordas do inferno, enquanto a outra fugia nas asas dos santos pensamentos para o seio de Deus.

 

E como das duas árvores a que está mais firme obsta a que a outra se despenhe, assim Fr. Lourenço tinha da sua mão o mal-aventurado mancebo.

 

As paixões deste eram daquelas que só fulminando soam. Sem vícios, sem ânsia de gozar, porque o gozo não era para a sua alma queimada pelo padecer; afável, bom e humilde com todos os que o tratavam, porque o ódio guardava-o como um tesouro contra quem o tinha ofendido; compadecido dos opressos e desventurados, porque também ele o era, Fr. Vasco passava no Colégio de S. Paulo e S. Elói por um futuro sucessor de Fr. Lourenço em santidade e boas obras. Tendo-se entregado com fervor ao estudo, como um meio de afugentar pensamentos cruéis, criam que o amor da ciência o obrigava a passar as noites sobre os livros, enquanto ele o fazia só porque a vigília sobre o livro mais sensabor é um folguedo comparado com a vigília no leito do repouso, que tantas vezes se converte em Getsémani de agonia.

 

Assim, Fr. Vasco, indigitado como futuro santo e futuro sábio, estava bem longe de ser uma ou outra cousa. Fr. Lourenço era quem o conhecia; quem passava horas e horas pedindo a Deus salvasse aquela alma. Todavia, se houvesse alguém que perguntasse ao porteiro Fr. Julião ou a qualquer outro leigo do Colégio de S. Paulo e S. Elói qual era o carácter de Fr. Vasco, ouviria uma linda novela, em que não haveria uma só palavra de verdade.

 

E no fim o donato, empertigando-se, concluiria com aquelas palavras, que nós e tu, leitor, temos ouvido a tantos donatos que ainda há no mundo:

 

– Conheço-o por dentro e por fora!

 

Parvos!

 

Mas a nossa barca, ou antes a barca afretada por Fr. Lourenço, abicou a Restelo. Saltemos em terra com os dois cistercienses. 

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