O Monge de Cister: Tomo I VI - O PUNHAL
Viestes a religiom pera serdes temptados mas nom vencidos nem sobrepujados:... e posto que a vida nos ano/e ou agrave com estes trabalhos e paixoens, saibamos que nom ha de ser coroado, senom quem trabalhar e pelejar fortemente.
FR. J. ÁLVARES, Cart. II.
– E essa mulher é capaz?
– Sim, padre. A tia Domingas é uma boa velha cristã de Restelo. Entreguei-lhe a bolsa de dobras e meias dobras que me destes, e ela me jurou que nada faltaria à pobre donzela. Podeis ficar descansado.
– Bem! Agora a Restelo, e afreta uma barca. Irás comigo para Lisboa.
Esta conversação passava-se entre Fr. Lourenço e o mouro Ale, no meio da senda ou azinhaga que, partindo da aldeia, ia dar à morada do chocarreiro, o qual parecia ter trocado a sua vida truanesca em duradouros hábitos de sisudeza e compostura. Depois de duas compridas horas, que o bom do bernardo passara junto da miserável enxerga da desconhecida, saíra a encontrar-se com o seu companheiro e com Ale que por ele espetavam, Pr. Vasco passeando de um lado para outro lado, e o mouro assentado ao sol ardente do meio-dia. Fr. Lourenço trazia o olhar esgazeado, os lábios descorados e nas faces todos os sinais de um susto e inquietação que debalde tentava encobrir. Entregou então uma bolsa ao mouro, ordenando-lhe procurasse com toda a brevidade e diligência, alguma boa mulher que viesse residir na almuinha para tratar da desconhecida, que ele Fr. Lourenço tomava debaixo da sua protecção. Ale partiu imediatamente, e dali a pouco voltou acompanhado da tia Domingas (pessoa conhecida já do leitor), cujos escrúpulos tinham sido completamente removidos com a vista da bolsa recheada de excelentes dobras e meias dobras de el-rei D. Pedro, moeda que era a melhor ou, talvez, a única boa daquele tempo e que nunca, de memória de homens, mercador judeu, mouro, veneziano, genovês, flamengo ou biscainho recusara aceitar em troco de suas mercadorias.
Depois de haver dado em segredo várias instruç5es à velha, que respondia a cada palavra do frade com uma mesura e com as fórmulas sabidas de «Vá vossa reverência descansado; deixe vossa reverência isso ao meu cuidado; percebo, percebo, reverendíssimo», Fr. Lourenço partira, seguido de Fr. Vasco e de Ale, caminho da aldeia. Conhecia-se pelo andar do bom do monge, ora demasiado lento, ora excessivamente apressado, que a sua alma ia embrenhada em graves cuidados. Ao passar pelo sítio onde tivera com Fr. Vasco a conversação que Lemos no capítulo antecedente, parara de repente e olhara para a nogueira frondosa na qual ficara cravado o punhal do moço monge. Ainda lá estava. Fr. Lourenço erguera os olhos e as mãos ao céu e, parando, havia-se assentado numa grande pedra que ficava à borda da azinhaga. Depois de cismar por bom espaço, fizera subitamente ao mouro a pergunta por onde este capítulo começa e dera-lhe ao mesmo tempo a ordem para ir adiante afretar a barca que os devia conduzir todos três a Lisboa.
Quem tivesse reparado em Fr. Vasco perceberia facilmente que na sua alma se passava também alguma cousa extraordinária. Parecia que a inquietação de Fr. Lourenço se havia comunicado ao seu companheiro, o qual, desde que saíra de casa do truão até àquele momento, não proferira uma só palavra, mas dava no gesto visíveis sinais de que o seu coração não estava sereno. Ou fosse que o aspecto carregado do mestre de Teologia e o lançar-me a espaços os olhos de relance, como quem buscava descortinar-lhe alguma cousa no fundo da alma através dos seus gestos e meneios, ou fosse que o estado daquela nova penitente de Fr. Lourenço tivesse despertado na memória do mancebo passadas amarguras, o certo é que ambos os dois monges, tão amigos, tão prontos sempre em comunicar um ao outro os seus menores e mais íntimos pensamentos, caminhavam juntos, mas em silêncio, como dois cúmplices de um crime afastando-se do lugar onde o perpetraram, ou como dois homens que se insultaram sem precauções oratórias e que, dirigindo-se para o lugar de um duelo estúpido, não esquecem durante o caminho um único item das regras de boa cortesania, o que lhes não tolhe que daí a pouco se assassinem honradamente e na melhor harmonia do mundo.
O mouro partira, e Fr. Lourenço, com os cotovelos fincados nos joelhos e a cabeça entre as mãos, havia tornado a embrenhar-se nas suas reflexões. Fr. Vasco, em pé diante dele, torcia e destorcia um vime que arrancara no valado fronteiro. Este torcer e destorcer significava que o seu espírito estava mui longe dali.
O mestre de Teologia alçou a cabeça, olhou para ele fito um pedaço e, por fim, com voz solene e triste, disse-lhe, batendo com as pontas dos dedos na extremidade da pedra em que estava assentado:
– Fr. Vasco, descansa aqui um pouco.
O mancebo deu um estremeção, como se de salto o houvessem despertado de sono profundo. Não respondeu nada e assentou-se ao pé do seu companheiro. Este olhou fito outra vez para ele e, depois de um momento de silêncio, prosseguiu:
– Filho de S. Bernardo, haveria neste mundo algum sacrifício que não fizesses para esquecer as desventuras da tua vida, sufocar os remorsos do teu coração, domar o teu amor insensato e poder alevantar-te sobre as asas da esperança até o seio amoroso da piedade de Deus?
Fr. Vasco apertou o peito com a mão direita e ergueu os olhos para o céu: depois, correndo-os pela grosseira estamenha de que estava vestido, respondeu com leve sorriso:
– Nenhum!
Fr. Lourenço compreendeu qual era o abismo de amargura que havia neste olhar e nesta palavra.
– Entendo, mancebo – continuou o velho monge.
– Qual sacrifício haverá aí que não faça por obter paz e perdão aquele que no viço da mocidade saiu da estrada suave da glória e do gozo para tomar pela vereda agra e coberta de abrolhos da penitência? Que haverá aí impossível ou sequer dificultoso para quem trocou o arnês dos combates pela estamenha monástica, as esporas douradas de cavaleiro pelas pobres sandálias dos que peregrinam após a cruz? Tu o disseste, monge de Cister: nenhum! E todavia, o que eu quero pedir-te é fácil. Se o fizeres, o Senhor se amerceará de ti: o teu amor criminoso extinguir-se-á: os teus sonhos de remorsos desvanecer-se-ão: a sombra ensanguentada de Lopo Mendes, que povoa de terrores as tuas noites não dormidas, resolver-se-á como aquele fumozinho que se alevanta de Restelo e que o vento espalha e resolve no ar. E sabes o que é, meu desgraçado irmão? É o que há poucos meses, a teus pés e de joelhos, este pobre velho, que te ama como a filho, te pediu em nome de Deus: perdão! perdão!
– Para quem, padre?! Para quem?! – atalhou Fr. Vasco, pondo-se rapidamente em pé.
– Para tua irmã, coberta de miséria, saciada de agonias, moribunda sobre a enxerga rota que lhe cedeu para morrer a caridade de um truão.
– Beatriz?! Beatriz ali?! – bradou o moço cisterciense, rangendo os dentes e estendendo os punhos cerrados para o vale onde alvejava a casinha do maninelo. – Ela ali, e o meu punhal aqui! Vasqueanes, teu filho ainda vive!... Não jazerás desonrado para sempre no túmulo onde dormes.
Proferindo estas palavras, Fr. Vasco estendeu a mão para a grande árvore, arrancou o punhal e deu a primeira passada para voltar atrás. Os olhos faiscavam-lhe, como os do lobo no meio das trevas.
Mas Fr. Lourenço estava já em pé diante dele. Não para o reter, lutando braço a braço, se erguera o monge. Que podia prestar a oposição violenta de um homem de idade grave e enfraquecido por vigílias de estudo e de penitência a um mancebo robusto e cego de furor? Era para empregar contra aquele furioso a resistência passiva e a força moral que lhe dava a consciência de que cumpria o seu dever que Fr. Lourenço, com os braços cruzados sobre o peito, vendo arrancar o punhal da árvore, se pusera como uma estátua diante do seu companheiro.
– Em nome de Deus ou do demónio, deixai-me passar, padre! – rugiu como um tigre Fr. Vasco.
– E embargo-vos eu que passeis? – respondeu com mansidão evangélica e em voz baixa o bom do religioso. – Que ides vós fazer? Assassinar vossa irmã; livrá-la do peso da vida alguns minutos antes daquele em que Deus, talvez, a houvesse de chamar para si. Que ides vós ser? Um fratricida. Pois bem. Ajuntai o crime menor ao maior: sede também homicida. Para vos despenhardes no inferno, não receeis de saltar por cima do cadáver do monge que vos consolou nos dias dos remorsos e das agonias, que vos ama como pai, que amastes como filho. Ouvi-me bem, Fr. Vasco!... O caminho por onde esse punhal pode chegar ao seio da desgraçada Beatriz passa através deste coração. Segui-o. Aqui ninguém nos vê, sendo Deus; e que vos importa Deus? Também ele vos verá no momento em que vossa irmã se vos debater aos pés, revolvendo-se em sangue e pedindo-vos ainda, no meio das vossas injúrias e pragas, o perdão e o beijo e o abraço fraterno: ele vos verá lá, réprobo e maldito: ele ouvirá o último grito da infeliz. Eu, ao menos, morrerei calado... Aqui me tendes!... Passai!
Dizendo isto, Fr. Lourenço curvou a cabeça como o mártir resignado sob a segure do algoz. As suas últimas palavras foram proferidas em tom soturno, mas firme e solene. O moço cisterciense sentiu correr-lhe o suor frio da fronte; porque conheceu que a resolução do mestre de Teologia era inabalável como um decreto da Providência. Os cabelos eriçaram-se-lhe de horror. Deixou cair o punhal e, escondendo o rosto entre as mios, exclamou:
– Oh desgraçado de mim!
– Acertaste, Vasco, acertaste! – acudiu Fr. Lourenço, lançando-lhe um braço à roda do pescoço e encostando a cabeça do mancebo sobre o ombro. – Mal-aventurado és tu, não pelos infortúnios da tua vida, mas porque ainda não percebeste o que é ser cristão; porque não entendeste que a lei de Jesus foi resumida na última expressão do Verbo sobre o Calvário: «Perdoai-lhes, pai.» O derradeiro arranco do Justo foi um grito de amor e perdão a favor de cruéis inimigos. E tu queres vingar-te! Vingar-te de teu próprio sangue, de tua irmã, porque, inocente, foi enganada; porque, fraca, foi vencida; porque, amante, caiu nos braços de um homem vilmente hipócrita. Queres puni-la, porque cedeu a uma paixão que só Deus condena quando se converte em crime. Mas quem te punirá a ti de cederes a outra paixão absurda, vil, amaldiçoada no brotar, no crescer, no vigorar, no satisfazer-se? Sabes quem te há-de punir? O teu passado com os mal sopitados remorsos, que reverdecerão; o teu presente com os que provarás de novo;
o teu futuro, que será para sempre maldito, até que desças ao inferno...
– Por piedade, não digais mais nada! –. exclamou o mancebo, afastando-se de Fr. Lourenço com gesto de agonia íntima e erguendo as mãos.
As palavras deste vibravam através de sua alma como centelhas de fogo.
– De joelhos, monge de Cister! De joelhos, criminoso! – bradou o velho com aspecto severo.
Fr. Vasco ajoelhou aos pés dele.
– Jura diante desse astro do dia, que é uma pobre imagem da glória do Senhor; debaixo desse firmamento, sumido sob os degraus do seu trono, que perdoas a Beatriz o erro que por si mesmo a puniu!
Fr. Vasco jurou que perdoava a sua irmã.
– Agora, filho de 8. Bernardo, ergue-te e abraça o pobre frade, que, se te afligiu, foi porque te amava muito!
Isto era dito com tanta brandura e unção, que o moço cisterciense atirou-se a chorar aos braços de Fr. Lourenço.
– Partamos para Lisboa – prosseguiu o mestre de Teologia. – Não convém que neste momento vejas Beatriz. Ela está com os pés na sepultura. O ver-te e abraçar-te seria matá-la: melhor suportaria, talvez, a tua maldição que os teus afagos. Pelo caminho te contarei a sua triste história, e verás então que ela é mais infeliz que culpada e mais digna de compaixão que tu.
Dizendo isto, Fr. Lourenço travou do braço do seu companheiro e seguiu com ele ao longo da estreita senda que por entre os dois montes ia dar a Restelo.
O império de Fr. Lourenço no ânimo violento do moço monge era na verdade espantoso. Parecia que Deus tinha posto no mundo o mestre de Teologia como um anjoda-guarda para salvar de si mesmo o mancebo. Mas, ai de nós, que, se um anjo bom vigia à nossa direita, um demónio está sempre da esquerda, convocando-nos para sócios do inferno!... Muitas vezes os dois espíritos, o da luz e o das trevas, vestem formas humanas: são dois inimigos mortais que se guerreiam e que ambos se chamam nossos amigos. O campo da sua peleja é o coração do homem, de que por fim toma posse um deles, o vencedor. O preço da vitória é a nossa alma; e os hinos que celebram essa vitória reboam sempre fora dos âmbitos do mundo, ou nas alturas do Céu ou no império das trevas. Fr. Vasco teve o seu anjo bom; terá também o seu anjo mau. Qual deles ganhará a vitória? Esse, por ora, é o segredo de cima, que só a série dos acontecimentos que vamos referindo nos há-de revelar.
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